CARTA DE BRAGA – “da dignidade da vida” por António Oliveira

 

Fui surpreendido pelas declarações de Pepe Mujica, o singular ex-presidente do Uruguai, a um jornalista que o interrogava sobre os problemas que estes tempos nos estão a descarregar em cima; a certa altura, foi ele mesmo que colocou uma questão, tanto ao jornalista como a si próprio, ‘Pergunto-me se os humanos estão a chegar ao limite biológico da capacidade política? Nada demais, diziam os gregos, por tudo ter limites e a natureza também, só que o esquecemos; não se deve navegar sem rumo; com a globalização também o esquecemos, pois é a força do mercado e a tecnologia a conduzir, e não houve consciência política em todo o processo’.

E perante o silêncio do repórter, Mujica tece uma série de considerações sobre o que se passou e se irá certamente passar, da acusação das gentes ao Estado, com todos a falar em reindustrializar, da soberania farmacêutica e sanitária, que tudo começou com a pandemia, e como irão aparecer os nacionalismos chauvinistas e os baixos salários, como os autoritarismos vão ter a sua primavera, tal como a especulação, a tentar apropriar-se de valores a preços de ruínas. 

Não posso continuar a transpor para aqui o retrato que fez sobre o que estamos a passar, mas não sou capaz de deixar de resumir as questões com que ele terminou a entrevista, ‘Seremos capazes de nos reconduzir como espécie, e não como classe ou país? Verá mais longe a política, para poder haver maridagem, com a ciência? Recolheremos a lição do desastre e ver como revive a natureza? A medicina, o ensino, o trabalho digital mais a robótica se empenharão para entrarmos numa nova era? Tudo depende de nós mesmos!

Tenho a certeza de que a maioria de quem nos lê, aqui neste blogue, já se fez estas mesmas perguntas ou outras parecidas, por se ter dado conta da forma como as governanças dessacralizaram o idealismo para sacralizar o materialismo, o mercantilismo, o abandono das Artes e Humanidades, a substituição dos valores pela sua quotização, a relativização suprema do utilitarismo, com todas as consequências que estamos a caminho de vir a penar. 

Escreveu uma vez Giorgio Agamben, na sua obra ‘A comunidade que vem’, que a tecnologia, a arma e o engodo da própria expansão homogeneizadora, fez da política contemporânea ‘Este devastador experimentum linguae, que em todo o planeta desarticula e esvazia tradições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades’, afinal o drama da individuação, do isolamento e da separação dos homens, pela autonomização da comunicação que une e separa ao mesmo tempo, pois basta olhar o poder sacrossanto do telemóvel, da interiorização do ecrã e da tecnologia, a autêntica ‘casa’ da rotina e da imagem de cada um. 

Transformou-se na alternativa para a falta de tempo para as pessoas investirem e gastarem consigo próprias, uma vez que o processo urbano também atomiza, mecaniza, stressa, e faz da competição a primeira prioridade. E neste processo, global, todos são iguais e solidários, por isolados e solitários, também resultado de uma sociedade onde a competitividade começa nas primeiras aulas, da primeira escola que frequentámos e em todos os sítios onde estudámos. 

O compositor e também historiador Eurico Carrapatoso, afirmou recentemente a um diário nacional, ‘Deploro o tempo de negócio em que nos mergulharam, que nos retira o direito ao ócio e nos transforma, à viva força, em potros de competição dispostos em linha de montagem’ e um outro historiador daqui ao lado, completa bem esta afirmação, ‘Não podemos viver sem utopias, sem horizontes de esperança, sem sonhar com um mundo mais agradável para todos os que o habitamos. Não é apenas uma questão de respeito, é também de sobrevivência’!

Alguém escreveu, já não me lembro que, ‘As pessoas têm o direito de saber que nada há mais valioso nesta vida, do que aquilo que a torna digna de ser vivida’.

Ámen!

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

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