A guerra na Ucrânia — “Crimeia, objetivo número um da Ucrânia na nova de fase da guerra”, por Juan Antonio Sanz

Nota de editor

há apenas alguns dias publicámos um texto deste autor intitulado “Biden nega mísseis de longo alcance a Zelenski, enquanto se abrem frechas no apoio europeu a Kiev” (ver aqui). Afinal, como relata neste artigo não se tratou mais do que uma mentira pública, e Biden irá enviar os ditos mísseis para a Ucrânia. À falta de resultados da tão apregoada contra-ofensiva ucraniana (como diz Caitlin Johnstone, morre-se por polegadas de terreno na Ucrânia), a atenção ocidental vira-se agora para a Crimeia, de onde verdadeiramente não tem estado ausente. Mais um passo numa guerra a que os seus promotores não querem ver o fim, tornando-a a maior feira de armas do mundo. Agora apregoa-se a nova fase da guerra. Contudo, as dúvidas em torno de quantos mísseis (uns poucos… ?) e quando serão entregues leva a questionar sobre que objetivos os desta nova fase. Não se tratará de mais do mesmo: prolongar sem fim à vista uma guerra completamente evitável e deliberadamente provocada, como reconhecido pelo chefe da NATO?

FT


Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Crimeia, objetivo número um da Ucrânia na nova de fase da guerra

 Por Juan Antonio Sanz

Publicado por em 27 de Setembro de 2023 (original aqui)

 

Tanques desfilam na celebração do Dia da Independência da Ucrânia em Kiev, Curania, a 23 de agosto de 2023. — Maxym Marusenko / NurPhoto / AFP

 

A operação Crimeia está em andamento. A península anexada pela Rússia é alvo prioritário da nova fase do contra-ataque ucraniano e também dos mísseis de longo alcance entregues pelo Ocidente.

O exército ucraniano redobrou os seus ataques contra alvos na Península da Crimeia através do uso de mísseis e drones. O iminente uso pelo exército ucraniano dos mísseis de longo alcance ATACMS americanos, capazes de atingir qualquer alvo nesta península anexada pela Rússia há nove anos, poderia marcar um ponto de viragem na guerra.

A Crimeia tem um valor histórico muito especial para russos e ucranianos. Mas não só isso. A sua posição no norte do Mar Negro faz desta península um espaço estratégico para as rotas de comércio, transporte de hidrocarbonetos e controle militar dessa bacia marinha do leste da Europa, que faz fronteira também com o Cáucaso e a península da Anatólia, às portas do Médio Oriente.

O recente bombardeamento do quartel-general da frota russa em Sevastopol com mísseis Storm Shadow, que resultou em dezenas de mortos, os ataques a aeródromos, linhas de abastecimento, depósitos de combustível, defesas costeiras de artilharia, navios e outras instalações militares russas evidenciam a crescente eficácia dos ataques ucranianos na Crimeia, enquanto no resto da frente a contraofensiva mal avança.

O porta-voz da Inteligência de defesa da Ucrânia, Andrii Yusov, justificou esta ofensiva na península uma vez que está a ser utilizada pela Rússia como “centro logístico” da sua invasão.

 

Crimeia é alvo dos mísseis doados à Ucrânia

A Crimeia tornou-se assim o alvo preferencial dos bombardeamentos ucranianos fora da zona da frente e onde os danos são mais notáveis. A sua difusão mediática é mais rápida e tem mais alcance do que os magros resultados conseguidos nas frentes de Zaporiyia ou Donetsk. A linha defensiva russa resiste tenazmente aos avanços ucranianos e o exército de Kiev é incapaz de abrir uma brecha ampla que limpe o caminho para uma ofensiva com tanques de combate e armamento pesado.

Os tanques M1 Abrams já estão a chegar à Ucrânia, por enquanto apenas uma dezena dos 31 prometidos, como confirmou o presidente americano, Joe Biden, ao seu homólogo ucraniano, Volodímir Zelenski, durante a cimeira bilateral realizada na semana passada em Washington.

Estes tanques juntar-se-ão aos Leopards europeus e outros tipos de tanques de combate que já estão a participar na contraofensiva ucraniana, embora sem poder desbaratar as três linhas defensivas russas. A Ucrânia não dispõe de uma aviação que possa respaldar esse avanço dos tanques num setor concreto, para romper a defesa russa, e por isso Kiev continua a reclamar o envio de caças F-16, embora sem resultados.

 

Mudança de opinião. Agora haverá ATACMS

No entanto, a visita de Zelenski à Casa Branca, a eficácia dos bombardeamentos ucranianos na Crimeia e a chegada do mau tempo, que travará muitas das operações terrestres, fizeram o governo dos EUA reconsiderar a sua recusa em enviar mísseis de longo alcance ao exército ucraniano e agora parece disposto a fornecer uma arma que pode mudar as coisas no campo de batalha.

Trata-se dos mísseis ATACMS (Army Tactical Missile System), que, com um alcance de até 300 quilómetros, podem ser chaves para mover o tabuleiro da disputa. Ainda mais se o exemplo americano for seguido pela Alemanha, por enquanto muito relutante em entregar à Ucrânia os seus mísseis Taurus, com um alcance de até 500 quilómetros.

Nesta guerra onde imperam a desinformação, a propaganda, as meias verdades e as mentiras completas, não se estranhou muito que, durante a sua recente visita aos Estados Unidos, Zelenski recebesse da Casa Branca primeiro uma negativa pública à entrega dos ATCMS, e, quase ao mesmo tempo, a confirmação à porta fechada de que Washington enviará em breve à Ucrânia esses mísseis.

Devaneios da informação, como a revelada por Kiev de que um ataque com mísseis ucraniano tinha acabado com a vida do chefe da frota russa do mar negro, Victor Sokolov, e de outros 33 militares russos. Horas depois, o comandante dessa Armada aparecia vivo e de boa saúde num vídeo que, supostamente, terá sido feito depois desse ataque.

Ainda não foi especificado quando serão enviados os ATACMS e quantos serão. Mas mesmo alguns poderiam complicar as coisas para o exército russo, especialmente na Crimeia.

Golpes como o que foi desferido contra as instalações da frota russa em Sevastopol repetir-se-ão. Com os ATACMS e os Taurus alemães, ou os Scalps franceses e os Storm Shadow britânicos, já listados nos arsenais ucranianos, o exército de Kiev poderá atacar qualquer ponto da retaguarda Russa na Crimeia ou em outros lugares da Ucrânia, e até mesmo alvos na Federação Russa.

 

Mísseis terra-terra como bisturis

Os mísseis de cruzeiro Storm Shadow deben devem ser lançados a partir de caças de combate. Isso faz com que os ataques dependam do bom ou mau tempo, e da existência de uma força aérea consistente, algo que a Ucrânia não tem, daí as suas exigências dos F-16.

Em vez disso, os ATACMS são disparados da terra contra alvos terrestres. Se forem carregados com bombas de fragmentação, o efeito pode ser devastador num ataque, por exemplo, a um posto de comando ou a uma coluna de caminhões com suprimentos para a frente.

A sua velocidade final faz dos ATACMS um alvo muito difícil para as defesas antiaéreas. Eles também podem ser disparados dos lançadores de mísseis HIMARS e MLRS que já operam na Ucrânia e se tornaram um pesadelo para a artilharia e a infantaria russas.

“Os mísseis ATACMS podem ser muito eficazes para destruir alvos estacionários, de grande importância estratégica e ampla superfície, como bases aéreas, grandes instalações militares, radares, grandes áreas de concentração de tropas e outros locais de defesa aérea”, indicou ao Jornal Kyiv Independent o especialista Federico Borsari, do Programa de Segurança e Defesa Transatlântica no Centro para Análise de Políticas Europeias de Washington.

 

Cruzando mais uma linha vermelha

Até agora, os Estados Unidos tinham pesado mais as objeções ao envio deste tipo de armamento. Em primeiro lugar, a sua entrega pressupõe cruzar mais uma linha vermelha. Os ATACMS podem atingir alvos no território da Federação Russa e é impossível proibir os ucranianos de atacar mais cedo ou mais tarde esses alvos.

Por outro lado, Moscovo poderia responder com armas muito mais destrutivas ou elevar a devastação dos seus ataques contra infraestruturas civis. E não se deve esquecer que existem armas nucleares táticas, de uso em batalha e efeitos destrutivos mais “limitados”, perto do cenário bélico, por exemplo, as distribuídas na Bielorrússia.

Resta saber, portanto, quantos mísseis ATACMS serão fornecidos à Ucrânia. A Casa Branca diz que serão poucos em princípio. O problema é que o exército americano não dispõe de muitos destes foguetes e, se a guerra se prolongar, os arsenais ficariam vazios destes mísseis tão eficazes taticamente.

E, ao mesmo tempo em que os ATACMS são entregues, é preciso reforçar a proteção das suas lançadeiras. Na reunião realizada na semana passada na base americana de Ramstein de meia centena de países que compõem o Grupo de contacto para a defesa da Ucrânia, o secretário de Defesa Lloyd Austin pediu aos aliados de Kiev que forneçam mais sistemas de defesa antiaérea e de interceptação de mísseis e drones, assim como munição para os canhões de 155 mm dos ucranianos.

Diante do frio, que já será generalizado em meados do outono na Ucrânia, os sistemas antiaéreos são imprescindíveis para proteger as infraestruturas críticas ucranianas. No ano passado, após as suas sucessivas derrotas na região de Kharkiv e no oeste do Donbass, o exército russo concentrou os seus ataques nos sistemas de eletricidade, gás e água das principais cidades ucranianas. Poucos duvidam que este ano essa estratégia será repetida.

 

O Ocidente cada vez mais envolvido na guerra

Austin também indicou em Ramstein que os tanques pesados M1 Abrams americanos já estavam a caminho da Ucrânia e que se juntariam à contraofensiva antes que o mau tempo se agrave.

Com todos esses tipos de armas chegando ou sendo substituídos por novas remessas na Ucrânia, a participação ocidental na guerra não parece que vá parar. Austin lembrou nessa base americana na Alemanha que Washington e outros aliados ocidentais da Ucrânia já entregaram mais de 76.000 milhões de dólares para sustentar o exército ucraniano.

Os EUA, o maior fornecedor, têm orçados outros 24.000 milhões de dólares em assistência militar e civil para sustentar a guerra e para o futuro. Este enorme pacote de ajuda tem de obter a aprovação do Congresso e a maioria republicana na Câmara dos Representantes não parece que vá facilitar essa aprovação. Uma recusa seria muito mais decisiva para a guerra do que todos os ATACMS ou Abrams no campo de batalha.

A constatação de que finalmente haverá ATACMS na Ucrânia não agradou nada aos russos. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros Exteriores russo, Maria Zakharova, indicou que estes mísseis serão usados para atacar zonas civis na Crimeia e nas outras regiões ocupadas pela Rússia após a sua invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022.

O Kremlin também denunciou o outro tipo de envolvimento ocidental na guerra. Sobre o bombardeamento ucraniano das instalações da Frota do Mar Negro, “não há dúvida de que este ataque foi planeado com meios de inteligência ocidentais, satélites da NATO e aviões de reconhecimento” dos EUA e da Europa, segundo Zakharova.

A porta-voz de Exteriores criticou esta “estreita coordenação” do comando ucraniano com os Serviços de inteligência britânicos e americanos, e acrescentou que tais operações, na Crimeia e noutros cenários, simplesmente tratam de tapar os fracassos da contraofensiva ucraniana.

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O autor: Juan Antonio Sanz [1966-], é um jornalista espanhol, independente. É especializado em temas internacionais com a maior parte de sua carreira profissional desenvolvida no exterior, na Rússia e na ex-União Soviética (especialmente Ásia Central e Cáucaso), Coreia do Sul, Japão, Uruguai, Bolívia e Cuba. Além disso, exerceu como comunicador no âmbito da cooperação internacional e deu aulas de jornalismo e comunicação na Universidade Católica San Pablo de La Paz e no Estado-Maior do exército boliviano sobre Inteligência estratégica. Autor do livro ” Vampiros, príncipes do abismo. Crônicas de vampiros, nosferatus e outros mortos-vivos”, Editorial Almuzara 2020.

 

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