Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 1 — Parte A: Texto 5 – “Ricardo e a Teoria do Valor” (3/3),  por Mathieu-Joffre Lainé

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 1 – Dos Clássicos a Sraffa, de Sraffa aos neo-ricardianos

 

Nota do editor:

Dada a extensão do presente texto, o mesmo será publicado em 3 partes – hoje a terceira e última parte.


Seleção de Júlio Marques Mota

18 min de leitura

Parte A: Texto 5 – Ricardo e a Teoria do Valor (3/3)

 Por Mathieu-Joffre Lainé

Extrato da tese de Doutoramento em filosofia “David Ricardo, Karl Marx e o antagonismo necessário dos interesses de classe” (Primeira Parte: David Ricardo, pontos 1. e 2.)

Publicado por  (original aqui)

 

(conclusão)

 

A necessidade do antagonismo entre capital e trabalho era essencialmente impensável na época de Adam Smith. Por outro lado, a Revolução industrial já estava em bom andamento em Inglaterra quando Ricardo desenvolveu a sua própria teoria do valor-trabalho, e o mundo já lhe aparecia como uma imensa acumulação de mercadorias [125]. E são precisamente essas mercadorias que lhe interessam:

Ao possuírem utilidade, as mercadorias derivam o seu valor de troca de duas fontes: a sua escassez e a quantidade de trabalho necessário para os obter. Algumas mercadorias têm um valor determinado apenas pela sua raridade. Uma vez que nenhum trabalho pode aumentar a sua quantidade, o seu valor não pode ser reduzido por um aumento da sua oferta. É o caso de estátuas, pinturas, livros e moedas raras, ou vinhos de qualidade excecional que só podem ser obtidos a partir de uvas cultivadas num determinado terreno. E muito pouco extenso. O seu valor é totalmente independente da quantidade de trabalho originalmente necessária para produzi-las; varia de acordo com a riqueza e o desejo daqueles que procuram possuí-los. No entanto, estas são apenas algumas exceções na massa de mercadorias que são negociadas diariamente no mercado. A maioria das mercadorias que se deseja é produzida pelo trabalho e pode ser multiplicada quase infinitamente, não num, mas em muitos países, se se concordar em dedicar o trabalho necessário para os obter. Assim, quando falamos de mercadorias, do seu valor de troca e das leis que regem o seu preço relativo, referimo-nos sempre a mercadorias cuja quantidade pode ser aumentada pela capacidade produtiva da sociedade e cuja produção está sujeita a uma concorrência sem entraves [126].

Ricardo não apresenta uma teoria geral do valor, nem uma teoria do valor das coisas ou dos objetos em geral, mas sim uma teoria das mercadorias (stricto sensu), que são produzidos e reproduzidos pela capacidade produtiva do homem. Nesta qualidade, ele é o “oposto de um filósofo”[127]. É apenas um raciocínio simples e, ainda mais, imparável: as mercadorias são o produto do trabalho humano e não teriam valor sem o trabalho árduo utilizado para as produzir. Para ele, como para Marx, a mercadoria é uma coisa útil, mas nem todas as coisas úteis são mercadorias. A mercadoria não pode existir sem o trabalho que lhe dá valor. Marx retoma a definição ricardiana de mercadoria, palavra por palavra, em “O Capital”, e é precisamente contra a ideia de que as mercadorias só possuem uma qualidade inerente, a de serem produtos do trabalho, que o economista austríaco Böhm-Bawerk (1851-1914) se levantará mais tarde na sua influente crítica da teoria marxista [128]. De facto, trata-se de uma conceção de mercadoria que os pioneiros do marginalismo já rejeitavam no momento da publicação do Livro I do “Capital”.

O trabalho incorporado combina tanto o trabalho direto necessário para a produção de uma determinada mercadoria, o trabalho do trabalhador, como o trabalho indireto que já está contido nos instrumentos de trabalho e nas máquinas necessárias para a produção desta mercadoria (Marx, por sua vez, fala poeticamente de “trabalho vivo” e “trabalho morto”). O valor de troca das mercadorias é proporcional à soma do trabalho direto e do trabalho indireto nelas contidas, o que Smith, que limita o âmbito da teoria do valor-trabalho às sociedades pré-capitalistas ou não capitalistas, não teria compreendido: “mesmo no estado rude e primitivo a que Adam Smith se refere, o caçador precisaria, para matar a sua peça de caça, de capital, mesmo que fosse fabricado e acumulado pelo próprio caçador. Sem uma arma, não poderíamos matar nem o castor nem o veado; o valor destes animais é, portanto, regulado não só pelo tempo de trabalho necessário para os matar, mas também pelo tempo e trabalho necessários para o caçador se abastecer de capital, isto é, para obter a arma que o ajudará na sua caça”[129].

Incapaz de manter-se num nível teórico constante e suficientemente elevado, Ricardo irá minar em parte a sua própria teoria do valor ao longo do seu trabalho: o uso de máquinas e de capital fixo, segundo ele, “modificam consideravelmente o princípio de que a quantidade de trabalho dedicada à produção de mercadorias determina o seu valor relativo” [130]. Além disso, o princípio que mostra que o valor das mercadorias não varia com o aumento ou a queda dos salários é “modificado ainda mais pela duração da utilização do capital e pela maior ou menor rapidez com que o valor deste regressa às mãos daquele que o utiliza na produção” [131]. Ricardo repete aqui um pouco o erro de Smith — ele encara confusamente, por vezes, as formas particulares de mais-valia como elementos independentes, constitutivos do valor e, além disso, coloca confusamente em jogo fatores de produção onde não era suposto estarem. Marx obviamente não repetirá esses erros. Pelo contrário, é corrigindo-os um a um que ele conseguirá resolver o principal problema da economia política em “O Capital”.

Segundo Ricardo, quando existe apenas um fator de produção — o trabalho — o preço de uma mercadoria é então igual à quantidade necessária deste fator, por unidade de produto, multiplicada pela sua taxa de remuneração (w). Se o trabalho for qualitativamente homogéneo, o preço das mercadorias será, portanto, totalmente regulado pelo tempo de trabalho. Por outro lado, a tomada em consideração da taxa de lucro (r) implica algumas dificuldades. Por um lado, o trabalhador não pode esperar pelo fim do processo de produção (= 1 ano) antes de receber o seu salário; por outro lado, o capitalista espera obter lucro. O valor de troca das mercadorias será, por conseguinte, superior ao montante dos salários adiantados numa percentagem igual à taxa de lucro. Os seus preços serão determinados não só pela mão-de-obra incorporada, mas também pela duração do processo de produção (esta duração corresponde ao tempo durante o qual o capital circulante é adiantado aos trabalhadores).

Se, por exemplo, um trabalhador produzir um alqueire de cereais por ano e dois trabalhadores produzirem um metro de tecido durante o mesmo ano, o preço ( p ) destes dois bens (p1, p 2) é igual à proporção das quantidades de trabalho ( l ) necessárias para a respetiva produção: o tecido será, portanto, duas vezes mais caro do que os cereais. Qualquer que seja a taxa de lucro, a massa nominal dos lucros recebidos no fabrico de tecidos será sempre duas vezes maior do que a massa recebida na produção de cereais. Mas se um trabalhador pode produzir um alqueire de cereais por ano, enquanto dois trabalhadores levam dois anos para produzir uma peça de tecido, os lucros obtidos com os salários no primeiro ano terão eles próprios de suportar juros no segundo ano (em vez de serem quatro vezes mais caros do que o trigo, o tecido será mais de quatro vezes mais caro do que o trigo). Se a produção de duas mercadorias requer períodos de trabalho (𝑡) desiguais, 𝑡1 e 𝑡2, com 𝑡1 > 𝑡2, e sendo r a taxa de lucro para o período determinado, então as equações de custos de produção serão:

Daqui se tira os preços:

Com t1=t2 temos    e

por outro lado com r=0  e t1 diferente de t2 temos igualmente    

 

Não podemos deduzir os preços apenas dos coeficientes do trabalho, a não ser que t1=t2 ou que r=0 com t1 diferente de t2, o que o próprio capitalismo exclui [132]. Ricardo pressentiu essa dificuldade e evoca abertamente as dificuldades colocadas pelo tempo através das diferentes proporções de capital fixo e de capital circulante. De facto, a maior parte das dificuldades que evoca nos seus “Princípios” está diretamente ligada ao problema do tempo através das diferentes proporções de capital fixo e de capital circulante, ou da duração desigual da utilização do capital fixo (Ricardo será censurado por ignorar o tempo, à maneira dos metafísicos alemães). O capital fixo implica dificuldades adicionais para ele, uma vez que as máquinas, por exemplo, diferem umas das outras no seu custo de fabrico, bem como em termos da sua vida útil. Ricardo, no entanto, minimiza e descarta essas dificuldades, incluindo a de equalizar a taxa de lucro. Marx, por sua vez, proporá soluções inéditas, distinguindo em particular o binómio “capital variável-capital constante” do binómio “capital circulante-capital fixo”, como veremos mais adiante.

Os intérpretes hegelianos do Capital afirmam com muita frequência que o conceito marxista de força de trabalho (“Arbeitskraft”, “Arbeitsvermögen”) permite distinguir radicalmente Marx de Ricardo, se não mesmo Marx da própria economia política. E a descoberta da força de trabalho por Marx teria sido “tornada possível pela novidade do conceito hegeliano”[133]. Esta hipótese parece-nos simultaneamente supérflua e superficial. É difícil ver que relação é que a abordagem hegeliano do conceito poderia ter a ver com a venda e compra da força de trabalho («capacity to labour») no mercado de que filósofos e economistas ingleses têm falado explicitamente desde o século XVII, e de que os socialistas ricardianos (“labour writers”) também falaram muito entre 1820 e 1830, sem sequer conhecerem Hegel. Na realidade, exagera-se aqui a importância de uma simples precisão semântica que Marx trouxe para a teoria económica ricardiana. Ricardo está obviamente a falar da força de trabalho, isto é, da capacidade que o trabalho teria de criar valor, e não do trabalho em si – a teoria do trabalho incorporado de Ricardo não é a da quantidade de trabalho que uma mercadoria pode comprar que Smith ou Malthus defenderam. O próprio Marx, lembremo-nos, não utiliza a expressão força de trabalho em “A miséria da filosofia” (1847) nem em “Trabalho assalariado e capital” (1849). Ele fala, além disso, indistintamente de trabalho e força de trabalho em “Salário, preço e lucro” (1865), um texto extremamente importante no qual ele resume a sua análise do modo de produção capitalista.

Marx explica também nesta ocasião que Thomas Hobbes (1588-1679) já tinha compreendido a importância da ideia de força de trabalho no século XVII, muito antes, portanto, do tempo de Hegel ou do próprio Marx [134]. Não só encontramos essa mesma flutuação semântica nos “Manuscritos de 1857-1858” (N.T. os Grundrisse) nos quais Marx usa sucessivamente as duas expressões — força de trabalho e trabalho — mas também a encontramos na primeira edição alemã do “Capital”. Além dos “Manuscritos de 1857-1858”, todos esses textos de Marx foram revistos e corrigidos por Engels no final do século XIX. A fim de uniformizar e suavizar o corpus marxista, Engels, que então atuava como executor literário de Marx, apagou deliberadamente a palavra trabalho desses textos para substituí-la pela expressão força de trabalho, uma revisão linguística que ele não escondeu [135]. Ao rever assim os textos de Marx, Engels conferiu retroativamente à expressão força de trabalho uma preeminência e importância que simplesmente nunca tinha tido até então. Como salienta Ladislaus von Bortkiewicz, a expressão que Marx forjou pode ser mais evocativa e mais precisa do que a palavra trabalho que Ricardo usou categoricamente, mas deixa a estrutura da teoria ricardiana do valor-trabalho perfeitamente inalterada [136].

Para Marx, a força de trabalho é muito simplesmente “a totalidade das faculdades físicas e intelectuais que existem no corpo de um homem, na sua personalidade viva, e que ele deve pôr em ação para produzir coisas úteis”[137]. A força de trabalho de uma trabalhadora ou de um trabalhador “realiza-se pela sua manifestação externa. Ela afirma-se e demonstra-se através do trabalho, que por sua vez exige um certo dispêndio dos músculos, dos nervos e do cérebro humano”[138]. Apesar da clareza desta definição, os intérpretes hegelianos do “Capital” escreveram muito sobre a força de trabalho. Alguns deles chegaram mesmo ao ponto de identificar esta força com a força de que fala Hegel no terceiro capítulo da “Fenomenologia do Espírito”. Trata-se de uma proposta extremamente ambiciosa, uma vez que este capítulo é “sem dúvida, uma das passagens mais complexas da Fenomenologia do Espírito, ela própria uma das obras mais difíceis de apreender no cânone filosófico”[139]. Mesmo que se aceitasse, sem o admitir, que os intérpretes hegelianos de “O Capital” conseguiram apreender o verdadeiro sentido desta formidável passagem, o próprio Marx não lhe faz qualquer menção. Parece-nos mais útil tentar compreender o que é que Marx pretendia com a expressão força de trabalho nos seus escritos económicos do que interrogarmo-nos sobre a força de que fala Hegel num capítulo de um tratado metafísico expressamente consagrado ao ”devir da ciência em geral ou do saber”[140]. Então, porque é que Marx cunhou realmente esta expressão? Não temos aqui de especular nem de mergulhar subitamente no estudo de uma das obras mais difíceis do cânone filosófico, como Marx supostamente teria feito (Quando? Onde?).

Marx estava a tentar clarificar a categoria da mais-valia per se quando cunhou o termo força de trabalho, mas não estava a tentar corrigir um erro irremissível que teria sido cometido por Ricardo. Como explica o próprio Marx, ele procurava compreender por que razão, para Ricardo, uma “dada quantidade de trabalho vivo não é igual à mercadoria que ele próprio cria, em que se objetiva, embora o valor da mercadoria seja igual à quantidade de trabalho nela contida” [141].

Foram estas reflexões teóricas sobre o trabalho vivo (ou direto) de Ricardo e o salário que levaram pouco depois Marx a concluir que o “salário exprime, sem dúvida, o valor da força viva de trabalho, mas de modo algum o valor do trabalho vivo, que, pelo contrário, se exprime no salário + lucro “[142]. E como Marx rapidamente se apercebeu:

Se Ricardo tivesse aplicado o seu próprio princípio, as quantidades (simples) de trabalho às quais as diversas capacidades do trabalho são redutíveis, a questão era bastante simples. De resto, ele ocupa-se logo de seguida das horas de trabalho. O que o capitalista adquire na troca é a força de trabalho: o valor de troca que ele paga é isso [NT, é o salário] [143].

A descoberta da força de trabalho por Marx não se tornou possível graças à novidade do conceito hegeliano nem ao que Hegel diz ou não diz sobre a força e sobre o entendimento na “Fenomenologia do Espírito”, mas sim graças à aplicação coerente da teoria económica ricardiana. Historicamente, foi esta teoria que Marx estudou, não a teoria filosófica hegeliana.

Como Marx reconhece, Ricardo conseguiu determinar corretamente o valor da força de trabalho [144]. No entanto, Ricardo ter-se-ia embrulhado nas minúcias de sua própria teoria do valor-trabalho, não tendo conseguido entender plenamente que a força de trabalho cria mais valor do que ela própria contém (=mais-valia) e tirar dela as necessárias conclusões científicas e políticas – o que Marx, por sua vez, fará com a sua teorização da exploração capitalista.

Não é o método ou a teoria que Marx utiliza que distingue as suas obras das de Ricardo, mas as questões que coloca aqui sobre o valor da força de trabalho e que mais tarde ocuparão capítulos inteiros do “Capital”, capítulos dedicados ao valor da força de trabalho e à produção da mais-valia absoluta, da mais-valia relativa e da mais-valia extra e à valorização do capital. Ao distinguir essa força de trabalho mais claramente do que Ricardo, Marx não apenas removeu um dos escolhos contra os quais a escola ricardiana veio encalhar, mas também por esse facto se impôs como o maior continuador de Ricardo. Isto é o que devemos retirar dos manuscritos pessoais que Marx escreveu em 1857-58, e não do vocabulário pseudo-hegeliano, ou quase-hegeliano, que este último usa aqui e ali por razões históricas, culturais e linguísticas perfeitamente evidentes [145]. A teoria marxista do valor confirma a superioridade da teoria do valor-trabalho incorporado de Ricardo sobre a teoria do valor-trabalho defendida por Smith e Malthus. A teoria marxista não confirma a vacuidade ou a inutilidade da teoria ricardiana, sobre a qual Marx teria demonstrado a falsidade graças à sua formação filosófica hegeliana. Por si só, não há nenhuma razão histórica ou textualmente acessível para envolver aqui a filosofia hegeliana. A ideia que Marx defende, repito, surgiu originalmente na época de Hobbes, ou seja, na época em que historicamente começamos a tratar e conceptualizar a força de trabalho como uma mercadoria que podemos vender ou comprar no mercado. O historiador Fernand Braudel (1902-1985) explica:

Uma mente forte, como Thomas Hobbes, podia dizer já que a “potência (diríamos a força de trabalho) de cada indivíduo é uma mercadoria”, algo que normalmente é oferecido para troca no âmbito das transações no mercado — e, no entanto, esta não é uma noção familiar na época. E gosto desta reflexão casual de um obscuro cônsul francês em Génova, provavelmente um espírito atrasado do seu tempo: “esta é a primeira vez, Monsenhor, que ouço que um homem pode ser considerado moeda de troca”. Ricardo escreverá de modo uniforme: “o trabalho, assim como todas as coisas que podemos comprar ou vender”. No entanto, sem dúvida: o mercado de trabalho – como realidade, senão como conceito – não é uma criação da era industrial [….] o fenómeno apresenta-se com uma clareza invulgar em relação aos mineiros da Europa Central. Durante muito tempo enquanto artesãos independentes, trabalhando em pequenos grupos, foram no entanto forçados, nos séculos XV e XVI, a passar a estar sob o controlo de comerciantes, os únicos capazes de fornecer o dinheiro para os investimentos em equipamento necessário para trabalhar nas minas profundas. Ei-los, pois, assalariados [146].

Durante muito tempo, Ricardo acreditou que o trabalho fornecia o princípio para a determinação do valor de troca, pois permitia medir a maior ou menor dificuldade de produção das mercadorias, ou seja, o que regia a própria possibilidade da sua troca. No entanto, ele foi modificando essa teoria, tornando-a mais precisa [147]. Segundo ele, o trabalho passaria a ser a medida do valor real das mercadorias, que fundamenta e contrasta com o seu valor de troca. Mais tarde, Marx criticaria os adversários de Ricardo e os autoproclamados membros da sua escola, que, na sua maioria, tinham rejeitado a ideia de valor real a favor do valor de troca e que criticavam Ricardo por ter considerado erradamente o próprio valor “como um resultado positivo, produzido por uma dada quantidade de trabalho” e como “algo imanente e absoluto” [148] . Segundo Marx, seria mais correto criticar Ricardo por “esquecer muitas vezes este valor absoluto e ater-se apenas ao valor relativo ou comparativo” [149]. Mas Marx engana-se neste ponto. Ricardo não esqueceu o valor absoluto das mercadorias. Pelo contrário, evitou deliberadamente analisá-lo nos seus “Princípios de Economia Política e Tributação”: “as investigações para as quais gostaria de chamar a atenção do leitor” – explica nesta ocasião – “têm por objeto o efeito produzido pelas variações ocorridas no valor relativo das mercadorias, e não no seu valor absoluto” [150]. No entanto, Ricardo precisa mais adiante na mesma obra que:

Não posso subscrever a opinião de [Jean-Baptiste] Say quando estima o valor de uma mercadoria pela quantidade de outras mercadorias contra as quais será trocada; partilho a opinião de um autor muito sério, Destutt de Tracy, que afirma que “medir uma coisa é compará-la com uma quantidade dada dessa outra coisa que nos serve de termo de comparação, de padrão, de unidade de medida. Medir, determinar um comprimento, um valor, um peso, é, portanto, saber quantos metros, quantos francos, quantos gramas, numa palavra, quantas unidades do mesmo género contêm”. Um franco não é uma medida do valor de uma mercadoria qualquer, mas de uma quantidade do metal de que os francos são compostos, a menos que os francos e a mercadoria a medir possam ser relacionados com alguma outra medida comum pela qual se possa estimar o seu valor real e o seu valor relativo [151].

Para Ricardo, a questão da origem do valor funde-se e, por vezes, confunde-se, com a questão da sua medida [152]. Ricardo afirma que o valor absoluto de uma mercadoria deriva das quantidades de trabalho nela contidas, mas, numa procura infrutífera de um padrão invariável para medir esse valor, propõe o ouro por despeito, sem estar verdadeiramente convencido [153]. Porquê escolher o ouro? Porque o ouro é produzido com uma intensidade de capital que corresponde à intensidade média de capital de toda a economia – arrisca Ricardo – e porque o tempo necessário para a sua produção (= um ano) regula o período de rotação do próprio capital (a intensidade de capital corresponde à composição orgânica do capital em Marx, isto é, à relação entre o custo da maquinaria e o custo da força de trabalho, ou entre o capital constante e o capital variável). Dito isto, Ricardo é prudente, hesitante mesmo, e ele próprio sublinha a dificuldade que o ouro coloca:

Portanto, não podemos tomar o ouro como padrão, porque o ouro, como qualquer outra mercadoria, é produzido por uma certa quantidade de trabalho, combinada com uma certa quantidade de capital fixo. Podem ser introduzidas melhorias nos processos utilizados para o produzir e essas melhorias podem levar a uma queda do seu valor relativo em relação a outros objetos. Mesmo supondo que o ouro eliminasse esta causa de variação, e que a mesma quantidade de trabalho fosse sempre necessária para obter a mesma quantidade de ouro, continuariam a existir como obstáculo as diferenças entre as proporções de capital fixo e de capital circulante que contribuem para a produção de outras mercadorias – às quais teria de se acrescentar a maior ou menor duração de utilização do capital, o tempo mais longo ou mais curto necessário para levar o ouro ao mercado. O ouro poderia, portanto, ser uma medida de valor perfeita para todas as coisas produzidas em circunstâncias exatamente semelhantes, mas apenas para essas coisas. Se, por exemplo, fosse criado nas mesmas condições que as necessárias para a produção de tecido ou algodão, determinaria o valor desses objetos com muita exatidão; mas para o trigo, o carvão e mil outros produtos em que foram utilizadas porções maiores ou menores de capital fixo, seria incapaz de o medir. Mostrámos, de facto, que qualquer alteração na taxa de lucro afeta o valor relativo das mercadorias, independentemente até da quantidade de trabalho despendido na sua produção. Segue-se, portanto, que nem o ouro nem qualquer outro objeto pode servir como uma medida exata do valor das mercadorias; mas apresso-me a repetir aqui que as variações que ocorrem na taxa de lucros têm pouco efeito no preço relativo das coisas. A influência mais manifesta pertence às diferentes quantidades de trabalho necessárias para a produção: assim, se admitirmos que estamos livres desta influência, teremos adquirido um critério tão aproximado quanto poderíamos desejar em teoria. Não podemos nós considerar o ouro como o resultado de uma combinação de capital circulante e capital fixo, equivalente ao utilizado para produzir outras mercadorias? E não podemos, ao mesmo tempo, supor que essa combinação está igualmente distante dos dois extremos, isto é, do caso em que se emprega pouco capital fixo e daquele, ao contrário, em que é necessária uma pequena quantidade de trabalho? Se, por todas estas razões, eu puder considerar-me possuidor de um padrão de valor muito próximo de um critério invariável, terei a enorme vantagem de poder indicar as variações de outros objetos, sem me preocupar constantemente com as variações que ocorreram ou ocorrerão no valor do agente que serve para medir todos os preços. Para facilitar a nossa investigação, considerarei o ouro como invariável [154].

Ricardo, portanto, sabe muito bem que esse seu padrão-ouro é um padrão ideal, uma construção teórica aproximada que abstrai do ouro real e das suas propriedades. Ele também sabe que a mensuração do valor absoluto de uma mercadoria deve necessariamente preexistir à troca de mercadorias, uma vez que qualquer mensuração feita durante a troca, ou pela própria troca, seria relativa (= subjetiva, contingente), uma vez que faria arbitrariamente o valor da mercadoria i1 depender das características de outra mercadoria, a mercadoria i2, e não da quantidade de trabalho objetivamente incorporada na mercadoria i1 ou na mercadoria i2. Ricardo, portanto, opõe o valor relativo (=quantidade de trabalho que uma mercadoria pode comprar) ao valor absoluto (= trabalho incorporado). Para serem trocadas numa determinada proporção no mercado, as mercadorias i1 e i2 devem, em primeiro lugar, ser comensuráveis entre si. Trata-se de uma ideia que, por vezes, parece confundir os intérpretes hegelianos do “Capital”, que frequentemente se interrogam sobre a natureza do valor real ou absoluto, embora Marx se tenha manifestado clara e simplesmente sobre esta questão [155]. A troca depende e resulta da igualdade dos custos de produção em trabalho das duas mercadorias. E o mesmo princípio se aplica à própria moeda, que também é medida em trabalho. Por conseguinte, o preço de uma mercadoria é igual a uma proporção das quantidades de trabalho, ou seja, a quantidade de trabalho necessária para a produção de i1 e a quantidade de trabalho correspondente à produção da unidade monetária. As variações do preço monetário da mercadoria i1 ao longo do tempo só podem dever-se à variação relativa das quantidades de trabalho necessárias para a produção de i1 e da unidade monetária. Este raciocínio permanece válido mesmo que a moeda não seja metálica, uma vez que esta lei coloca a priori a igualdade entre o valor do papel-moeda e o valor do metal. Em seguida, valida essa igualdade pela convertibilidade da moeda. A teoria do valor-trabalho permite, portanto, medir o valor das mercadorias antes da troca, de modo a garantir a sua comensurabilidade, além de integrar convenientemente a moeda nas trocas reais. O valor da moeda é medido como as outras mercadorias, pelo trabalho. Está sujeita à lei do valor pela sua própria definição em metal [156].

Na maioria das vezes, os economistas clássicos abstraíam-se da moeda e concebiam a troca comercial como uma simples forma de troca — J. S. Mill sabia muito bem que a troca de mercadorias não era a origem do lucro [157]. De facto, segundo eles, a moeda não tinha qualquer influência na economia real. Originalmente formulada, como dissemos, pelo filósofo Jean Bodin, a teoria quantitativista da moeda, à qual aludimos anteriormente, estipula que 𝜇𝑣=𝑝𝑦. Nesta equação, 𝜇 representa simplesmente a quantidade de moeda, 𝑣 a sua velocidade de circulação, 𝑝 o índice de preços e 𝑦 a produção. Um aumento em 𝜇 leva a um aumento em 𝑦, mas sem que seja possível determinar com certeza se se trata de quantidades produzidas ou do sistema de preços que é utilizado para as valorizar (e é por isso que se adiciona a 𝑦 um fator 𝑝 que mede a deformação de preços).

Segundo Ricardo, por conseguinte, o aumento de μ modifica apenas o nível geral dos preços. Uma vez que cada preço evolui da mesma forma, o aumento de μ tem uma consequência nominal, mas simplesmente não tem nenhum impacto real. Será que Marx partilha desta opinião? As opiniões dividem-se. Além disso, tem-se afirmado frequentemente que a teoria da moeda de Marx marcou a sua “rutura decisiva com a teoria económica ricardiana”[158]. Não acreditamos em nada disso. Na verdade, Marx subscreve a teoria quantitativista da moeda, como muitos comentadores argumentaram [159]. Como Ricardo, ele define valor como uma substância identificável a priorio trabalho — e, por isso mesmo, a moeda não pode desempenhar um papel essencial na sua teoria.

Marx, por vezes, tende a exagerar a originalidade ou a importância das suas ideias, e os seus comentadores, muitas vezes, aceitam a sua palavra. Apaixonada e ao mesmo tempo impressionante, a sua prosa cativa por vezes os comentadores, que depois deixam de se interessar pelo funcionamento das suas teorias. No entanto, a análise destes mecanismos mostra, sem qualquer dúvida, que ele adota, de facto, a análise monetária ricardiana no “Capital” e uma forma relativamente estrita da teoria quantitativista da moeda. Com efeito, neste trabalho, a moeda assume as várias funções económicas pelas quais é habitualmente reconhecida hoje — medida de valores e padrão de preços, meio de circulação, reserva de valor—, que Marx expõe com um luxo verdadeiramente impressionante de detalhes lógicos, teóricos e históricos [160].

Ao contrário de Smith e Ricardo, Marx, no entanto, não considera a troca de mercadorias como uma simples troca. A partir do momento em que, historicamente, a troca se torna monetária, segundo ele, as mercadorias deixam de ser trocadas por outras mercadorias proporcionalmente à quantidade de trabalho nelas incorporada, mas por moeda, isto é, pelo equivalente universal e padrão de medição do valor [161]. Consequentemente, ele mostrará em “O Capital” a génese lógica da moeda, algo que os economistas clássicos nunca haviam feito por si mesmos [162]. Voltaremos a isso. No entanto, recordemos primeiro que Ricardo, como vimos, defendeu a teoria quantitativista da moeda nos primeiros debates científicos e políticos em que participou pela primeira vez, e que se opôs, entre outros, a Charles Bosanquet. Mas porque é que Ricardo defende essa teoria nos seus “Princípios de Economia Política e de Tributação”, quando os economistas ingleses já tinham perdido interesse nos debates monetários há já alguns anos? Ao afirmar a neutralidade da moeda no livro “Princípios”, Ricardo procura “colocar no centro da sua problemática a perda de eficiência do aparelho produtivo à medida que o crescimento se desenvolve, ou seja, focar-se no fenómeno dos rendimentos decrescentes”[163]. Este fenómeno, que Marx chama de baixa tendencial da taxa de lucro, conduziria por si só a economia a um estado estacionário, isto é, à cessação da acumulação de capital (= fim da evolução da História). Para Ricardo, a baixa tendencial da taxa de lucro não é tão ameaçadora para o sistema capitalista como para Marx. Para além deste, nenhum economista compreendeu realmente o que esta tendência potencialmente (ou hipoteticamente) significava: concebendo o capitalismo como um sistema de produção absoluto e eterno, Ricardo, que não tem noção da história, só podia compreender o declínio da taxa de lucro como uma fraqueza que poderia ser remediada; não podia imaginar que esta tendência pressagiasse talvez o fim do próprio capitalismo. Sendo assim, Marx volta a apelar expressamente à teoria ricardiana para compreender a evolução e a superação histórica do modo de produção capitalista [164].

Ricardo dedicou os últimos anos da sua vida à questão do valor absoluto, que tinha desistido de analisar nos seus “Princípios de Economia Política e de Tributação”. Em julho de 1821, escreveu que o trabalho determina inteiramente o valor absoluto das mercadorias — retira de uma vez por todas da sua análise a utilidade, a escassez, etc. – e já não simplesmente o seu valor de troca ou o seu preço [165].  Ricardo especifica ainda que apenas uma alteração no valor absoluto de uma mercadoria, na sequência de alterações na quantidade de trabalho necessária à sua produção, pode conduzir a uma alteração no seu valor de troca [166].

Além disso, ele dá agora sinais de uma impaciência crescente face a Malthus, que opõe à teoria do valor-trabalho incorporado as mais diversas objeções empíricas, extraídas, por exemplo, de narrativas etnográficas que detalham os sistemas económicos das populações insulares do Oceano Pacífico ou do Oceano Índico [167]. Ricardo confidencia então a J. S Mill que a falta de rigor científico de Malthus, a indizível leveza com que trata a economia política e as suas categorias, o irrita profundamente [168]. A pesquisa de Ricardo culmina num manuscrito completo, mas que permaneceu inédito até 1951, intitulado “Valor absoluto e valor de troca” (1823). Por vezes afirma-se, não sem satisfação, que Ricardo teria abandonado a teoria do valor-trabalho. Esses manuscritos provam formalmente o contrário:

Perguntam-me o que quero dizer com a palavra valor e em virtude de que critério considero que uma mercadoria mudou ou não de valor. A isto, respondo que não conheço outro critério para afirmar que uma coisa é cara ou barata do que o trabalho necessário para a sua produção. Tudo é originalmente adquirido pelo trabalho: nada do que tem qualquer valor pode ser produzido sem ele e, portanto, se uma mercadoria como uma peça de tecido exige para a sua produção o trabalho de dez homens durante um ano inteiro, de uma só vez, numa dada época, e não requer mais do que o trabalho de cinco homens durante o mesmo período, e numa outra época, então será duas vezes mais barata. Ou ainda: se são necessários sempre dez homens para produzir a mesma quantidade de tecido, mas durante seis meses em vez de doze, diremos que o tecido perdeu metade do seu valor. Para nos convencermos se de que a única causa possível da alteração do valor das mercadorias reside na maior ou menor quantidade de trabalho neles incorporada, basta concordarmos que todas as mercadorias são produto do trabalho e só têm valor de acordo com o trabalho nelas incorporadas. [169]

A leitura deste manuscrito confirma hoje que Marx é um economista ricardiano e que ele e Ricardo chegaram racionalmente às mesmas conclusões com base nas mesmas premissas económicas. Isto obviamente não significa que Ricardo antecipou Marx, mas sim que Marx seguiu o mesmo raciocínio científico que Ricardo [170]. Encontramos neste manuscrito, não só a mesma linguagem que nos textos de Marx, mas a mesma teoria. Nele, Ricardo opõe-se firmemente a todas as teorias subjetivas do valor que dependem da utilidade, bem como às teorias que dependem da quantidade de trabalho que se pode trocar por uma mercadoria e que reificam o valor de troca das mercadorias. É a esta reificação, recordemos, que Marx chama fetichismo da mercadoria.

Esta noção é por vezes descrita como um dos “pontos mais altos da obra filosófica de Marx”[171]. No entanto, para Marx, este fetichismo refere-se estritamente a nada mais do que a convicção errónea de que as mercadorias, incluindo a moeda, possuiriam naturalmente um valor de troca, tal como têm propriedades físicas, como a cor, a massa e o sabor [172]. Seduzidos pela fórmula feliz de Marx, os intérpretes hegelianos de “O Capital” fizeram do fetichismo da mercadoria uma noção plástica capaz de explicar tudo o que lhes desagrada nos seus contemporâneos — avareza, venalidade, ingenuidade, vulgaridade, etc. – o domínio sufocante da economia capitalista ou a escandalosa comercialização da arte, da cultura e da educação. Alguns deles arriscam-se também a citar o economista russo I. I. Rubin (1886-1937), cujos textos díspares foram recentemente editados ou republicados. Segundo Rubin, a “teoria do fetichismo é, por si só, a base de todo o sistema económico de Marx e, em particular, da sua teoria do valor” [173]. Se assumíssemos, sem o admitirmos, que esta proposta surpreendente estaria certa, então Marx felicita abertamente em “O Capital” não Hegel ou outro filósofo por ter descoberto ou teorizado este fetiche, mas sim o socialista ricardiano Thomas Hodgskin (1787-1869) [174]. Como aponta Marx, Hodgskin foi o primeiro a compreender que os “efeitos de uma determinada forma social de trabalho são atribuídos à coisa, aos produtos deste trabalho; a própria relação é mitificada na forma reificada” [175].

Hodgskin concebeu “este fenómeno como uma ilusão puramente subjetiva, que esconde o engano e o interesse da classe exploradora. No entanto, ele não viu que esse modo de representação brota da própria relação real, a segunda não sendo a expressão da primeira, mas inversamente” [176]. Apesar deste erro, Hodgskin “compreendeu com exatidão” [177] a natureza do capital, e a sua conceção da composição do capital reconduz-se à “lei geral que eu [Marx] desenvolvi”  [178].

Hodgskin também compreendeu que o capital(ismo) é uma relação social, como a escravatura ou o feudalismo, e não simplesmente uma coisa [179]. Marx cita Hodgskin elogiosamente em “O Capital” e invoca deliberadamente a sua autoridade nestas questões [180]. Não é sem razão que ele tem sido descrito como o seu discípulo ou sucessor no final do século XIX [181].

Em todo o caso, Jean-Baptiste Say, como a maioria dos seus contemporâneos, considerava que a ideia de uma medida invariável do valor era uma mera quimera e que Ricardo estava no caminho errado:

A verdade é que, sendo o valor das coisas uma qualidade essencialmente variável de um tempo para outro, de um lugar para outro, o valor de uma coisa (mesmo o do trabalho) não pode servir de medida do valor de outra coisa, a não ser num tempo e num lugar determinados. É por isso que, para cada lugar, existe, todos os dias, um novo preço corrente das mercadorias e uma nova taxa de câmbio (que é apenas o preço corrente das diferentes moedas). Uma medida invariável do valor é, pois, uma pura quimera, porque os valores só podem ser medidos por valores, ou seja, por uma quantidade essencialmente variável. Não se segue que o valor seja quimérico; ele não é mais quimérico do que o calor dos corpos, que não pode ser fixado [182] .

A procura de uma medida invariável de valor, um padrão insensível a variações nas taxas de salário ou de lucro, foi considerada, após a morte de Ricardo, como uma daquelas “aberrações conceptuais a que os grandes economistas por vezes se entregam. Quase ninguém, para além de John Stuart Mill e Karl Marx, compreendeu sequer a investigação de Ricardo e, durante a maior parte do século XIX, os comentários sobre Ricardo mal aludiram a ela [183]“. Para Marx, a procura de uma transformação adequada dos valores em preços, que se tornaria objeto de um debate interminável no século XX, apesar das soluções rapidamente encontradas por Wilhelm Lexis e Ladislaus von Bortkiewicz, não era diferente da procura de Ricardo de uma medida invariável do valor. Mas, após a morte de Ricardo, os economistas ingleses e continentais concentraram-se antes em demonstrar que as mercadorias não podiam possuir um valor absoluto e que tal proposição era absurda [184]. A partir de 1830, a economia ricardiana passou a fazer parte da filosofia utilitarista [185]. “Daí um ecletismo diluído” – lamenta Marx – “de que John Stuart Mill é o melhor intérprete” [186]. No entanto, basta comparar a teoria do valor de Marx com a de Mill para perceber que Marx sobrevaloriza a diferença que realmente existe entre a sua teoria do valor e a de J.S. Mill. Em todo o caso, uma tal comparação mostra a importância crucial da dívida intelectual que ambos tinham para com David Ricardo [187].

 

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Notas

[125] Cf. A’Hearn, B., 2014, « The British Industrial Revolution in a European Mirror », in Floud, R., J. Humphries, P. Johnson (dirs.), 2014, The Cambridge Economic History of Modern Britain, vol. 1. Cambridge, Cambridge University Press, p. 1-53.

[126] Ricardo, D., 1992 [1821], Des Principes de l’économie politique et de l’impôt. Paris, Flammarion, p. 52.

[127] Samuelson, A., 1997, Les grands courants de la pensée économique. Grenoble, Presses universitaires de Grenoble, p. 84.

[128] “Marx procede do seguinte modo: passa em revista as diversas propriedades que possuem, de um modo geral, os objetos que constituem os dois termos iguais de uma troca. Elimina todas aquelas que não satisfazem a condição imposta e chega a uma única propriedade: a de ser produto do trabalho. Esta deve ser, portanto, a propriedade comum procurada. Este processo é um pouco estranho, mas não tem nada de errado em si mesmo. É certamente invulgar convencermo-nos de que um bem é efetivamente o bem procurado por uma via puramente negativa, ou seja, não estabelecendo que o bem em questão satisfaz as condições impostas, mas demonstrando que nenhum outro as satisfaz e que, no entanto, deve existir um que o faça. No entanto, este método pode conduzir ao objetivo se for utilizado com a prudência e a amplitude adequadas, isto é, se se tiver o cuidado de passar logicamente por todas as coisas necessárias e de ter a certeza de que não se cometeu nenhum erro no processo. Mas como é que Marx faz isto? Ele passa ao crivo da sua análise apenas os valores de troca que têm como elemento comum precisamente a propriedade que ele quer encontrar, e ignora todas as outras. Age da mesma forma que alguém que, querendo tirar uma bola branca de uma urna, ajuda inteligentemente o acaso introduzindo apenas bolas brancas na urna. Desde o início, Marx limitou o âmbito da sua investigação sobre a substância do valor apenas às “mercadorias”. É claro que ele não define esta palavra com muito cuidado, mas dá-lhe menos alcance do que ao termo “mercadoria” e fá-la referir-se aos produtos do trabalho, por oposição aos bens naturais. Mas uma coisa é evidente. Se verdadeiramente a troca significa igualdade e pressupõe a existência de “uma coisa comum da mesma grandeza”, então essa coisa comum deve ser procurada e encontrada em todos os bens suscetíveis de serem trocados: não só nos produtos do trabalho, mas também nos bens naturais, como a terra, o solo, a madeira das florestas, a energia hidráulica, as minas de carvão, as pedreiras, as jazidas de petróleo, as águas minerais, as minas de ouro, etc. Excluir bens que têm um valor, mas que não provêm do trabalho de considerações cujo objetivo é procurar o que é comum a todos os valores de troca, é pecar mortalmente contra o método. Ao fazê-lo, Marx está a agir como um físico que quer encontrar a causa de uma propriedade comum a todos os corpos, como a gravidade, analisando as propriedades de um único grupo de corpos, por exemplo, os corpos transparentes, depois revendo todas as propriedades comuns aos corpos transparentes, demonstrando que nenhuma das propriedades que possuem pode ser a causa da gravidade e, finalmente, proclamando que a transparência é a causa da gravidade. A exclusão dos bens naturais – que certamente não teria ocorrido a Aristóteles, o pai da igualdade na troca – é tanto menos justificável quanto muitos bens naturais, como a terra e o solo, pertencem à categoria dos elementos mais importantes da riqueza e da troca. Além disso, é absolutamente impossível afirmar que o valor de troca dos bens naturais pode ser sempre fixado de forma absolutamente arbitrária.” (Böhm-Bawerk, E., 1974 [1903], Histoire critique des théories de l’intérêt du capital, t.II. Paris, V. Giard & E. Brière. 88-91, 95).

[129] Ricardo, D., 1992 [1821], Des Principes de l’économie politique et de l’impôt. Paris, Flammarion, p. 62.

[130] Ibid., p. 69.

[131] 388 Ibid., p. 76.

[132] Cf. Blaug, M., 1999, La pensée économique. Paris, Économica, p. 115-117.

[133] Campagnolo, G., 2004, « Modernité de la production et production du monde moderne. Travail et richesse selon Hegel », in Kervégan, J.-F., G. Marmasse, (dirs.), 2004, Hegel, penseur du droit. Paris, Éditions du Centre national de la recherche scientifique, p. 194.

[134] Cf. Marx, K., 1985 [1865], Salaire, prix et profit. Paris, Éditions Sociales, p. 44-45.

[135] Cf. Engels, F., 1990 [1891], « Introduction to Karl Marx’s Wage Labour and Capital », Marx-Engels Collected Works, vol. XX. London, Lawrence & Wishart, p. 194 et seq.

[136] Bortkiewicz, L. v., 1952 [1907], « Value and Price in the Marxian System », International Economic Papers, vol. 2(1) : 90-91.

[137] Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l.I, t.I. Paris, Éditions sociales, p. 170.

[138] Ibid., p. 171.

[139] Rockmore, T., 2007, « Force, entendement et monde inversé chez Hegel », Kleisis, no.4 : 18.

[140] Hegel, G.W.F, 2006 [1807], La Phénoménologie de l’esprit. Paris, Vrin, p. 75

[141] Marx, K., 1980 [1857-1858], Manuscrits de 1857-58, t.II. Paris, Éditions Sociales, p. 52.

[142] Ibid., p. 51.

[143] Ibid.

[144] Marx, K., 1975 [1861-1863], Le capital, l.IV, t.II. Paris, Éditions Sociale, p. 476 et seq.

[145] Cf. Tribe, K., 1974, « Remarks on the Theoretical Significance of Marx’s Grundrisse ». Economy and Society, vol.3(2).

[146] Braudel, F., 1979, Civilisation matérielle, économie et capitalisme : XVe-XVIIIe siècle, t.II. Paris, Armand Colin, p. 44-45.

[147] Cf. Hollander, J.H., 1904, « The Development of Ricardo’s Theory of Value », Quarterly Journal of Economics, vol.18(4) : 455-491

[148] Marx, K., 1975 [1861-1863], Le capital, l.IV, t.II. Paris, Éditions Sociales, p. 192.

[149] Ibid

[150] Ricardo, D., 1992 [1821], Des Principes de l’économie politique et de l’impôt. Paris, Flammarion, p. 61.

[151] Ibid., p. 299

[152] Duboeuf, F., 1999, Introduction aux théories économiques. Paris, La Découverte, p. 22.

[153] Vigezzi, M., 2005, Analyse économique : les faits et les pensées. Grenoble, Presses Universitaires de Grenoble, p. 84.

[154] Ricardo, D., 1992 [1821], Des Principes de l’économie politique et de l’impôt. Paris, Flammarion, p. 81-82.

[155] Cf. Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l.I, t.I. Paris, Éditions sociales, p. 53.

[156] Friboulet, J.-J. 2009, Histoire de la pensée économique XVIIIe – XXe siècle. Genève, Schulthess, p. 58-60.

[157] Cf. Mill, J.S., 1909 [1848], Principles of Political Economy with some of their Applications to Social Philosophy, 7th ed. London, Longman, Green & Co., §5.

[158] Brunhoff, S. de., 1976, La monnaie chez Marx. Paris, Éditions sociales, p. 192.

[159] Cf. Lavoie, D., 1986, « Marx, the Quantity Theory and Theory of Value », History of Political Economy, vol 18(1): 155-170.

[160] Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l.I, t.I. Paris Éditions Sociales, p. 104-151.

[161] Laure van Bambeke, V., 2013, Les méandres de la transformation des valeurs en prix : essai de théorie économique rationnelle. Paris, L’Harmattan, p. 112-113.

[162] Cf. Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l.I, t.I. Paris Éditions Sociales, p. 63.

[163] Daniel, J.-M., 2010, Histoire vivante de la pensée économique. Paris, Pearson, p. 95.

[164] Cf. Gillman, J.M., 1980, La baisse du taux de profit. Paris, E.D.I.

[165] Ricardo, D, 2005 [1821], « Ricardo to Trower (4 July, 1821 », The Works and Correspondence of David Ricardo (ed. Piero Sraffa with the collaboration of M.H. Dobb), vol. IX. Indianapolis, Liberty Fund, p. 2-3

[166] 423 Ricardo, D, 2005 [1821], « Ricardo to Trower (22 August 1821 », The Works and Correspondence of David Ricardo (ed. Piero Sraffa with the collaboration of M.H. Dobb), vol. IX. Indianapolis, Liberty Fund, p. 38.

[167] Ricardo, D, 2005 [1821], « Ricardo to Malthus (11 August, 1823 », The Works and Correspondence of David Ricardo (ed. Piero Sraffa with the collaboration of M.H. Dobb), vol. IX. Indianapolis, Liberty Fund, p. 347.

[168] Ricardo, D, 2005 [1821], « Ricardo to Mill (1 January, 1821 », The Works and Correspondence of David Ricardo (ed. Piero Sraffa with the collaboration of M.H. Dobb), vol. VIII. Indianapolis, Liberty Fund, p. 331.

[169] Ricardo, D, 2005 [1823], « Absolute Value and Exchangeable Value », The Works and Correspondence of David Ricardo (ed. Piero Sraffa with the collaboration of M.H. Dobb), vol. IV. Indianapolis, Liberty Fund, p. 397 (notre traduction).

[170] Cf. Dobb, M., 1967, « Marx’s Capital and its Place in Economic Thought », Science & Society, Vol. 31(4) : 535.

[171] Balibar, E., 2001, La philosophie de Marx. Paris, La découverte, p. 21.

[172] Cf. Marx, K., 1974 [1861-1863], Le capital, l.IV, t.III. Paris, Éditions Sociales, p. 152.

[173] Rubin, I.I., 2009 [1928], Essais sur la théorie de la valeur de Marx. Paris, Syllepse, p. 36.

[174] Torrance, J., 2008 [1995], Karl Marx’s Theory of Ideas. Cambrdige, Cambridge University Press, p. 391

[175] Marx, K., 1974 [1861-1863], Le capital, l.IV, t.III. Paris, Éditions Sociales, p. 344.

[176] Ibid., p. 345.

[177] Ibid., p. 193.

[178] Ibid., p. 361.

[179] Ibid., p. 318-319.

[180] Cf. Halévie, É., 1903, Thomas Hodgskin (1787-1869). Paris, Librairie Georges Bellais, p. 194.

[181] Cf. Webb, S., B. Webb, 1919 [1890], The History of Trade Unionism, 1666-1920. London, S-É, p. 162.

[182] Say, J.-B., 1847 [1820], in Ricardo, D, 1817, Des principes de l’économie politique et de l’impôt (trad. Solano Constancio et Alcide Fonteyraud). Paris, Guillaumin, p. 10.

[183] Blaug, M., 1999, La pensée économique. Paris, Économica, p. 170.

[184] King, J.E., 2013, David Ricardo. Houndsmill, MacMillan, p. 162.

[185] Denis, H., 2008 [1968], Histoire de la pensée économique. Paris, Presses Universitaires de France, p. 344.

[186] Marx, K., 1978 [1867], Le capital, l.I, t.I. Paris, Éditions sociales, p. 25.

[187] “A causa do lucro é o facto de o trabalho produzir mais do que é necessário para a sua manutenção. O capital utilizado na agricultura dá lucro, porque os homens podem obter da terra mais alimentos do que consomem durante a produção, incluindo o tempo necessário para construir ou reparar ferramentas e outras operações necessárias: daí resulta que, se o capitalista se compromete a alimentar os trabalhadores com a condição de receber o produto, fica com um lucro depois de ter reembolsado os seus adiantamentos. Por outras palavras: o capital dá lucro, porque os alimentos, o vestuário, as matérias-primas e os instrumentos duram mais do que o tempo necessário para os produzir, de modo que, se um capitalista fornecer a uma equipa de trabalhadores todas estas coisas com a condição de receber tudo o que o seu trabalho produz, restar-lhe-á, depois de repor os seus adiantamentos para as suas necessidades e para a conservação dos instrumentos, uma parte do tempo durante o qual os trabalhadores trabalham para ele. Vemos, assim, que os lucros não resultam do jogo das trocas, mas da capacidade de produção do trabalho. Os lucros gerais de um país são sempre os que são obtidos pelo poder produtivo do trabalho dos seus habitantes, quer haja ou não trocas. Se não houvesse divisão do trabalho, não haveria compra e venda, e mesmo assim haveria lucros. Se os trabalhadores de um país produzirem em conjunto vinte por cento mais do que o seu salário, os lucros serão iguais a esses vinte por cento, quaisquer que sejam os preços. Os acidentes de preços podem significar que, durante algum tempo, um grupo de produtores ganha mais de vinte por cento e outro grupo ganha menos, vendendo uma mercadoria acima e outra abaixo do seu valor natural, até que os preços regressem ao equilíbrio. Mas haverá sempre uma soma total de vinte por cento a partilhar.” (Mill, J.S., 1873, Principes d’économie politique. Paris, Guillaumin, p. 479).

 

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O autor: Mathieu-Joffre Lainé, doutorado em Filosofia pela Unniversité de Laval (Canadá), é agente de investigação e planificação sócio-económica no Secretariado dos Assuntos Autóctones do governo do Canadá.

 

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