(In Praxedes, mulher e filhos)
Praxedes está farto de ler nos jornais que o povo português não se interessa suficientemente pelos assuntos de arte, que os artistas têm de se aburguesar até as encomendas feitas por medida e mal pagas, que nesta terra não adianta nada ter talento e que, onde campeia a oleografia e a separata das ilustrações baratas, é fantasia querer impor trabalho amassado com o suor da imaginação.
Praxedes, pois, deliberou ontem ir ao Salon da Rua Barata Salgueiro e, para arejar um pouco o intelecto da família, ordenou que embandeirassem em arco sua esposa d. Genoveva e sua filha D. Fifi. Seu filho, o Quico, não se incorporou no cortejo por andar remando na doca de Santos na sua qualidade de futuro mancebo desportivo.
Chegados que foram á exposição, Praxedes, a fim de predispor o entusiasmo da família, explicou:
─ Tudo isto que vão ver é feito à mão.
E começaram correndo as salas. As Cebolas de Malhoa arrancaram a D. Genoveva um grito de entusiasmo:
─ Estão mesmo tal e qual. Daquele tamanho não custavam menos de sete vinténs o quilo.
A Fifi, que tem horror à cozinha, mirava com muito maior interesse um quadro, intitulado Canto de mesa, da Sr.ª D. Pulquéria d’Ataíde, discípula de D. Engrácia da Purificação, tela que demonstrava a melhor vontade de reproduzir uma almofada, uma jarra com hortenses e um álbum de madrepérola.
─ Olhe, mamã, aquela almofada. A Luísa Quinhones anda a bordar uma igualzinha, toda em preguinhas.
Praxedes apreciava silencioso. De súbito, ao chegar diante da Fumadora de ópio, de Emília de Sousa Braga, que ostenta uma plástica ─ a Fumadora, é claro ─ muito sugestiva, o chefe da tribu cheirou os ares, como o cavalo árabe no deserto quando a aragem lhe traz aroma de égua. A presença de D. Genoveva fê-lo suspender; mas ao passar de novo pelo hall de entrada e ao defrontar-se com a Hebe, senhora em mármore branco, que se apresenta revestida apenas das melhores intenções, Praxedes não pôde conter-se e, apanhando a mulher e a filha distraídas, piscou o olho ao reformado de serviço e murmurou entre dentes:
─ Hei, ó camarada? Que riquíssima posta de senhora! Que pena ser congelada…
26-Maio-1913
Fui buscar esta fantástica crónica humorística à edição de Praxedes, mulher e filhos – Cadastro de uma família lisboeta, edição da Guimarães & C.ª – Editores, 1916, Lisboa. Actualizei o melhor que pude a ortografia. Espero que o André Brun, lá no céu, não se zangue comigo.