“Crise da Universidade: hoje, 28 de dezembro, dia do aniversário de Joaquim Feio – textos que ele certamente apreciaria se estivesse vivo”, por Júlio Marques Mota

Entre os intelectuais que mais se insurgiram contra a censura, encontramos Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estêvão de Magalhães (protesto contra a lei das Rolhas de 1850).

A luta pela recuperação dos antigos, da economia dos clássicos, por um saber que documenta e interpreta os tempos, que ilumina as múltiplas faces da verdade, é uma luta bem atual, uma luta contra os ventos dominantes no ensino universitário (e não só universitário) que, em Portugal, optou pela erudição apressada em vez da maturação paciente e transdisciplinar, subjugando-se o seu rumo ao imediatismo do mercado.

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6 min de leitura

 Por Júlio Marques Mota

Coimbra, 28 de Dezembro de 2023

 

Hoje, 28 de dezembro, seria dia de aniversário do Joaquim Feio se ele estivesse entre nós. Para este dia eu teria de escolher um livro para lhe oferecer. No ano passado ofereci-lhe Freedom From the Market: America’s Fight to Liberate Itself from the Grip of the Invisible Hand da autoria de Mike Konczal.

Este ano estaria indeciso entre:

  1. Branko Milonovic, Visions of Inequality: From the French Revolution to the End of the Cold War
  2. Ha-Joon Chang, Edible Economics: A Hungry Economist Explains the World
  3. Harold James, Seven Crashes: The Economic Crises That Shaped Globalization
  4. Diana B. Henriques, Taming the Street: The Old Guard, the New Deal, and FDR’s Fight to Regulate American Capitalism.

 

A morte resolveu tudo, inclusive as minhas indecisões quanto a escolhas porque deixou de haver necessidade de escolha.

Falo disto porque, como nos lembra Giancarlo DeVivo citando Marguerite Yourcenar a propósito da biblioteca de Piero Sraffa, “uma das melhores maneiras de reconstruir o pensamento de um homem é reconstruir a sua biblioteca”. E a biblioteca do Joaquim Feio dir-nos-ia muito sobre a personalidade de um homem que até ao fim da sua vida lutou contra o plano inclinado em que se situava a evolução do ensino universitário em Portugal, ao fundo do qual não restará ninguém para nos falar de responsabilidade na hecatombe vivida e sempre escondida pelo poder e pelos seus vassalos, isto ao nível das Universidades.

O Joaquim Feio partiu, e é tudo. Dizia-me alguém que uma pessoa só morre quando se deixa de falar dela ou do corpo das suas ideias. Hoje seria o seu dia de aniversário e a melhor homenagem que lhe posso prestar, como meu antigo aluno, como meu antigo colega de Faculdade, como meu colega de disciplina lecionada em conjunto e como meu amigo é retomar o fio das suas ideias, publicando textos sobre a resistência à degradação do ensino universitário. Ele foi um resistente, reconheça-se, com os seus defeitos, alguns duros de roer, e com as suas virtudes, muitas, que faziam dele um universitário de excelência.

Nesta linha de raciocínio,

1. Enviei hoje uma carta ao Diretor da FEUC como protesto pela sua reforma na FEUC, tipo carta aberta que publicarei mais tarde, onde digo o seguinte:

Caro Álvaro Garrido, Caro Diretor

Hoje, 28 de dezembro, seria dia de aniversário do Joaquim Feio se ele estivesse entre nós. Não está, partiu definitivamente.

Envio-lhe hoje, por ser esta data, uma carta que será carta aberta em Janeiro quando concluir os 50 anos da minha entrada na carreira docente, onde falo de retalhos da vida de um professor, a minha, e da sua reforma da Faculdade de Economia, ou devo dizer antes, da contra reforma da FEUC levada a cabo por si, por Tiago Sequeira, por Paulino Teixeira e outros? Disse-lhe há dias, quando teve a amabilidade de me entregar na Vénus o livro 50 anos da FEUC, que lhe ia mandar um texto em que expressava a minha posição crítica quanto ao atual momento da FEUC. Disse-lhe que seria um texto amargo e de que não iria gostar. E disse-lhe mais; disse-lhe que o texto era desse modo, uma vez que eu tinha feito a opção de viver na incomodidade de ser incómodo. E o texto sentido que lhe envio agora é também um exemplo disso mesmo”. Fim de citação.

Trata-se de um texto muito longo onde falo das reformas curriculares das licenciaturas da FEUC que fazem dela uma Nova FEUC, os planos curriculares anteriores foram com a reforma agora revogados, estariam gastos pela marca do tempo.

O texto enviado ao diretor da FEUC, tipo carta aberta, é um texto longo, muito longo, um texto que me foi doloroso escrever e até mesmo de reler, eu que me dediquei toda uma vida ao ensino e que assisto agora à decadência do que se vê hoje. Curiosamente, dois meses antes de morrer, o Joaquim Feio disse-lhe, na minha presença, exatamente a mesma coisa. Trata-se de um texto sobre o qual não quero falar mais e que posteriormente será publicado em A Viagem dos Argonautas.

 

2. Publicaremos um texto de Ben Fine intitulado Um passo em frente, n passos atrás a ser publicado com o título Economics and Interdisciplinarity: One Step Forward, N Steps Back?, e inserido na obra. The Watershed and AfterCritical Reconstructions of Political Economy, volume 2, cap. X, por Ben Fine e editado por Brill, Leiden/Boston. Este texto de Ben Fine, que só será publicado em 2024, levanta outro tipo de questões no livro Economics Imperialism and Interdisciplinarity.

Estamos a publicar uma longa série de textos em Economia dividida em 6 capítulos: o terceiro capítulo incide sobre os nobelizáveis de Chicago, capítulo este intitulado Das harmonias universais decretadas pela Escola de Chicago à violência das crises atuais.

Dado o tema solicitei a Ben Fine que me desse sugestões adicionais para o tratamento deste capítulo. O que Ben Fine fez foi enviar-me os três volumes sobre a temática do ensino da economia da sua autoria que serão publicados em 2024 e acrescentando que os volumes enviados estavam cheios de referências sobre o que pretendia. Eram, pois, volumes disponibilizados para consulta e nada mais que isso. Ao lê-los revi muito do que ensinei e mais. Revi muito do que preparei para ensinar e que não foi possível fazê-lo e aprendi ainda muito sobre o que ainda não sabia de economia do pensamento dominante. Optei por uma ilegalidade menor, publicar dois capítulos, um do tomo I, já editado, e o de agora que é retirado do volume II acima referido, publicitando a edição dos três volumes, como obras essenciais para quem se questiona sobre o que se ensina em Economia. Este é o meu sentimento e afirmo-o publicamente.

 

3. Publicaremos uma conferência proferida por António Sampaio da Nóvoa na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra em 2 de dezembro último, intitulada 50 Anos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – “O tempo e a diferença”.

Trata-se de um texto notável que classificaríamos, por analogia com a medicina, como o relatório de uma ressonância magnética feita ao corpo e à alma da Universidade.

Soube da conferência e quanto à sua importância, esta é-me salientada pessoalmente pelo diretor da FEUC. Solicitei então a Sampaio da Nóvoa via Unesco, pois não sabia o seu email, que me disponibilizasse o seu texto. A sua resposta foi imediata. Inicialmente o seu autor diz-me:

Tenho muito gosto em enviar-lhe as notas que usei para o “improviso”.

São apenas notas pessoais, das quais me servi para a intervenção, e como tal não são publicáveis.”

Este segundo período da resposta de Sampaio da Nóvoa era para mim mortífero face ao interesse que o texto me tinha suscitado. Como antigo docente, como pai, como avô, seria para mim inadmissível que esse texto, provisório ou não, ficasse silenciado no pós conferência na Faculdade onde foi proferida, seria para mim inadmissível que não chegasse ao grande público, aos pais, aos avós, aos profissionais do ensino, a todos os que estão envolvidos na construção de uma sociedade melhor e, em particular, aos estudantes mais empenhados na dignificação do ensino e das carreiras profissionais para quem sai das Universidades.

Escrevi a Sampaio da Nóvoa um texto relativamente longo em que apelava para a permissão da publicação das referidas notas. E a resposta desejada chegou, onde se diz o seguinte:

“Prezado colega, Júlio Mota

Muito e muito obrigado, pelas suas partilhas e textos, de grande sensibilidade e sentido sobre Educação e Universidade.

As histórias que me conta são excepcionais e iluminam percursos que nos ajudam a compreender as razões do trabalho educativo e pedagógico.

Acredite que foram mesmo uma leitura muito importante para mim.

Quanto à publicação do meu texto, se o considera útil, claro que autorizo a sua divulgação.

O que é público, público é.

Peço-lhe apenas que indique que se trata apenas de “notas para apoio à intervenção nos 50 anos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra”.

Um abraço grande, agradecido

António S. Nóvoa”

 

4. Na sequência da conferência do professor Sampaio da Nóvoa, publico o texto que lhe enviei e sobre o qual recebi a resposta acima reproduzida.

 

E para dia que não foi de aniversário, mas de recordação de alguém que nos deixou muito recentemente, creio que isto chega.

 

 

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