Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 1 — Parte A: Texto 14 – Marx e Sraffa (2/2),   por Gilles Dostaler

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 1 – Dos Clássicos a Sraffa, de Sraffa aos neo-ricardianos

Nota de editor:

Devido à extensão do presente texto, o mesmo é publicado em duas partes, hoje a segunda.

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

17 min de leitura

Parte A: Texto 14 – Marx e Sraffa (2/2) 

 Por Gilles Dostaler

Publicado por  volume 58, número 1-2, janeiro-junho 1982, págs. 95-114 (original aqui)

 

(conclusão)

 

3. Marx e Sraffa segundo outros

3.1 A fratura da unanimidade

O livro de Sraffa desencadeou uma acesa polémica entre os seus seguidores e os defensores da teoria neoclássica. Tem sido chamada a “Guerra das Duas Cambridge”, opondo os economistas de Cambridge, Inglaterra, aos de Cambridge, EUA, com os economistas americanos agrupados sob o estandarte de Paul Samuelson [30] . Utiliza-se para caracterizar os primeiros, as expressões “escola neo-ricardiana”, “escola de Cambridge” ou “escola italiano-inglesa”.

A obra Produção de Mercadorias através de Mercadorias desencadeou uma polémica igualmente intensa nos círculos marxistas. Como já indicámos, foram publicados quase cento e quarenta textos desde 1960 somente sobre a questão da relação entre a teoria de Sraffa e a teoria do valor de Marx. É difícil manter-se a par desta produção, especialmente se lhe acrescentarmos as teses e outros textos inéditos que se possam receber sobre esta questão ou sobre problemas relacionados.

Há sem dúvida muitas redundâncias e repetições em tudo isto. Hoje em dia são publicadas demasiadas coisas, e acima de tudo, demasiado depressa, sem que haja tempo para ler o que outros disseram sobre o assunto. Nesta controvérsia atual sobre a teoria de valor de Marx, reproduzem-se frequentemente argumentos que se pensa serem novos, mas que já tinham sido apresentados numa controvérsia semelhante na viragem do século passado [31].

Mas esta controvérsia é, em última análise, positiva, ajudando a esclarecer muitas questões. Em particular, a questão dos “rótulos”, com a qual vamos dar início a esta secção. De certo modo, a situação era bastante simples até 1960. Por um lado, havia a “economia marxista” ensinada nos países ditos socialistas e por alguns descrentes no Ocidente que ensinavam nos países capitalistas. Por outro lado, havia uma verdadeira “ciência económica” ou “economia burguesa”, o nome obviamente dependendo do ponto de vista a partir do qual se olhava.

De facto, a situação é muito mais complexa, como o debate desencadeado pela publicação do livro da Sraffa deixou claro. Mesmo antes dessa data, já tinham surgido fendas no mundo da “economia não-marxista”. Basta pensar nas várias e contraditórias interpretações da teoria de Keynes. Nesta base, desenvolveu-se uma corrente de pensamento que se intitulava “pós-Keynesiana”, em oposição à versão “neo-clássica” de Keynes, e cuja relação com a escola “neo-ricardiana” não é assim tão simples [32]. Em particular, esta corrente é influenciada por Marx, através do trabalho de Kalecki. Keynes, como sabemos, não tinha uma grande estima por Marx; provavelmente nunca o leu seriamente. A sua discípula, Joan Robinson, escreveu uma vez que Keynes teria chegado muito mais rapidamente às teses essenciais da Teoria Geral se tivesse começado, como Kalecki, a partir de Marx [33].

Dentro da corrente marxista, da mesma forma, a unanimidade é apenas uma aparência. Além disso, já não existe há muito tempo a nível político. O debate desencadeado pelo livro da Sraffa mostrou que esta unanimidade também não existe, ao nível da interpretação da “teoria económica marxista”.

 

3.2 Marx contra Sraffa: a verdade e o erro

As reações à obra Produção de Mercadorias através de Mercadorias foram muito diversas, mas podemos, no entanto, com precaução, agrupá-las em três tendências, que iremos sucessivamente analisar. Para a primeira tendência, o trabalho da Sraffa não altera a interpretação tradicional da teoria económica marxista que se encontra, por exemplo, nos manuais produzidos pelos partidos comunistas. Sraffa seria um economista burguês, um ricardiano retardado, cujo trabalho não teria, portanto, qualquer interesse para a causa do proletariado. Os três livros do Capital constituiriam o alfa e o ómega da ciência económica proletária.

Assim, a igualdade simultânea da soma dos valores e preços de produção e dos lucros e mais-valias continua a afirmar-se imperturbavelmente. As atuais discussões sobre o problema da transformação e a relação entre Marx e Sraffa são consideradas como jogos de pequeno-burgueses ociosos. É notável, contudo, que a interpretação da teoria marxista do valor encontrada nos escritos “ortodoxos” seja basicamente ricardiana – e portanto muito próxima da de Sraffa [34]!

A ortodoxia de que estamos a falar aqui é obviamente diversa. Por um lado, encontra-se entre os economistas dos partidos comunistas ligados a Moscovo e a Pequim, assim como entre os de vários grupos marxistas. No entanto, existem frequentemente muito mais matizes nas teses de alguns deles [35]. Temos de caricaturar isto um pouco para os fins da nossa taxonomia. Da mesma forma, podemos aproximar desta tendência um certo número de economistas que não podem ser descritos como “marxistas ortodoxos” mas que, no entanto, através de argumentos por vezes demasiado subtis, procuram recuperar a totalidade das propostas de Marx [36]. Não há dúvida de que existe uma necessidade de segurança intelectual ou um sentimento de culpa política que os leva a provar a todo o custo que, não obstante Sraffa – a quem são reconhecidos certos méritos – Marx tinha e tem sempre razão. É simplesmente uma questão de o “ler” melhor ou de o “ler de forma diferente”. Ora, como ele escreveu muito e muitas vezes de forma contraditória, pode-se obviamente obrigá-lo a dizer qualquer coisa.

 

3.3. Marx com Sraffa: o problema da transformação

Para um segundo grupo de autores, pelo contrário, as teses de Piero Sraffa são do maior interesse. Estes autores são sensíveis a objeções que foram apresentadas, desde há muito, contra alguns dos enunciados de Marx. Isto é particularmente verdade no que diz respeito à famosa questão da relação entre valores e preços de produção no sistema de Marx. No primeiro livro do Capital, Marx assume que as mercadorias são trocadas pelos seus “valores”, determinados pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção. No terceiro livro do Capital, Marx mostra como a concorrência entre capitais exige a “transformação” de valores em preços de produção, de modo a estabelecer a igualdade das taxas de lucro. Para ilustrar esta questão de forma simples, que Ci, Vi e Pli sejam, respetivamente, o capital constante, o capital variável e a mais-valia no ramo ‘i’, para um determinado período durante o qual se assume, para simplificar, que todo o capital constante é consumido. A taxa de mais-valia, (Pli/Vi), é constante para todo o “i” e “dado” do exterior, pelo estado da luta de classes e pela produtividade das empresas de bens salariais. O valor da produção do ramo “i” é então dado por:

Wi =Ci+ Vi + Pli

Quanto ao preço de produção do ramo “i”, este é dado por

Pi = (Ci +Vi) (1 +r)

Onde r, a taxa de lucro uniforme da economia, é dada por

Esta “solução” de Marx foi criticada, já em 1896, por Eugen von Böhm-Bawerk, que viu nela uma “grande contradição” entre o primeiro e o terceiro livros do Capital, soando o toque de finados do marxismo [37]. Mais solidário com Marx, Michael Tugan-Baranowsky [38] e depois Ladislaus von Bortkiewicz [39] , destacaram o erro “lógico-matemático” que permitiu a Marx afirmar que a transformação de valores em preços de produção preservava as igualdades globais .

O erro, claro, é que Marx ‘transforma’ os produtos saídos das linhas de produção para os mercados em preços de produção e mantém-nos sem transformar os valores em preços nas mercadorias que são compradas e consumidas no processo produtivo [40]. Com base no trabalho do economista russo V.K. Dmitriev [41] , Bortkiewicz propõe um modelo de preços de produção em que o preço das  mercadorias consumidas como meios de produção, o preço dos bens saídos das linhas de produção e colocados nos mercados  e a taxa de lucro são determinados simultaneamente, o que, sendo uma relação entre preços, não pode ser dado pela fórmula de Marx. Da mesma forma, a manutenção das equivalências globais já não está garantida. Resulta da escolha de um numerário para os preços.

Este é obviamente um modelo muito semelhante ao da Sraffa. É por isso que podemos falar de Dmitriev e Bortkiewicz como os precursores da escola neo-ricardiana. Os seus trabalhos estiveram esquecidos durante muito tempo, excepto que deram origem a uma longa controvérsia, entre especialistas, sobre o problema da transformação dos valores em preços de produção. Em particular, Natalia Moszkowska, Paul M. Sweezy, J. Winternitz, Kenneth May, Francis Seton, Ronald Meek e Maurice Dobb [42] contribuíram para este debate. Os dois últimos, em particular, são particularmente representativos da segunda corrente agora aqui em discussão [43].

Para esta corrente, o trabalho de Sraffa conteria implicitamente a solução definitiva para o problema da transformação (esta é, de resto, a opinião de Sraffa, tal como emerge da conversa a que nos referimos acima). Sraffa, como vimos, não fala explicitamente deste problema. Mas, com ele como com Bortkiewicz, temos uma determinação dos preços, da taxa de lucro e do nível de salários com base nos coeficientes técnicos de produção e na repartição do excedente entre assalariados e capitalistas. Ao construir a sua mercadoria-padrão, Sraffa resolve também o problema da medição do valor que tinha atormentado Ricardo até à sua morte.

Isto tem consequências importantes para a teoria do valor de Marx. Esta teoria é em última análise redundante em relação ao modelo de preços de produção, ou como um caso particular deste último, que se encontra quando a taxa de lucro é zero. Para os autores da segunda corrente, isto não representa qualquer dificuldade particular. Para Sraffa, como para Marx, os preços são determinados por grandezas objectivas, ancoradas nas condições de produção. Sobre esta questão, existem dois eixos na história da economia política. Por um lado, o eixo Ricardo-Marx-Bortkiewicz-Sraffa, para o qual os preços se baseiam na tecnologia e na repartição, sendo esta última possivelmente resultante da luta de classes. Por outro lado, o eixo Say-Mill-Walras-Samuelson, para quem os preços são índices de escassez determinados pela “produtividade marginal” dos “fatores de produção” – sendo o problema da repartição um caso particular de determinação dos preços.

Contudo, isto coloca um problema importante, nomeadamente a eliminação de certos conceitos que Marx considerava essenciais na sua problemática, pelo menos aquele que emerge do Livro Um: trabalho abstracto, valor, mais-valia, capital constante, capital variável, etc. Alguns autores têm tentado construir algumas pontes entre a problemática do Livro Um e do Livro Três. Assim Okishio, depois Morishima, Abraham-Frois, Berrebi e outros [44], elaboraram e aperfeiçoaram o “teorema marxista fundamental”, que pode ser enunciado como se segue:

“A condição necessária para a existência de uma taxa positiva de lucro é a existência de uma taxa positiva de mais-valia”.

Isto preservaria a ideia fundamental de que a exploração dos trabalhadores é necessária para a existência de um lucro positivo. Este “teorema” está no centro de uma literatura cada vez mais abundante que procura formalizar e unificar as contribuições de Marx e Sraffa e, por vezes, de outros autores, tais como von Neumann.[45] Neste caso, pode-se falar de uma corrente “Ricardo-Marxista”, e mesmo, em alguns casos, de uma corrente “Walrasiana-marxista [46]“.

 

3.4. A crítica de Marx da economia política

Um terceiro grupo de investigadores reagiu fortemente contra estas construções teóricas, sem aderir à interpretação “ortodoxa” tradicional da teoria de Marx. Neste caso, podemos falar de uma corrente “marxista crítica”, uma corrente que dá muita importância ao projeto implicado pelo subtítulo do Capital, “crítica da economia política”[47].

Da mesma forma que a publicação do terceiro livro do Capital tinha provocado uma intensa discussão, no final do século passado, sobre o significado dos conceitos apresentados no primeiro livro do Capital, o debate provocado por Sraffa reavivou uma discussão deste tipo, provocando um ir além das interpretações tradicionais da teoria do valor de Marx. Em vez de uma primeira aproximação de uma teoria dos preços, esta teoria é agora vista como uma explicação da génese da mercadoria no capitalismo antes da elucidação da génese do dinheiro e do capital. Isto colocar-nos-ia a um nível de investigação e abstracção completamente diferente do terceiro livro do Capital. Como resultado, esta interpretação tornaria problemáticas as tentativas de ligar matematicamente o “espaço dos valores” e o dos preços.

Estaríamos então muito longe de Sraffa, e numa posição crítica em relação a ele. Para estes autores, de facto, em vez dos eixos acima mencionados, haveria um eixo de “economia política” e um eixo de “crítica da economia política”. O primeiro, independentemente das suas variantes, é caracterizado pela sua crença nas leis naturais da economia, leis que a ciência económica deveria elucidar. Para muitos, Sraffa representaria a conclusão da economia política e a demonstração da sua incapacidade de prestar contas do funcionamento da economia. No modelo de Sraffa, o que Marx explica como um dado (e portanto como um carácter transitório) é considerado como sendo de origem inexplicável: mercadoria, trabalho assalariado, capital. Para estes autores, não basta reconhecer o carácter antagónico da relação entre assalariados e capitalistas para fundar uma teoria de exploração.

Esta posição coloca, contudo, certos problemas, dado que o próprio Marx parece por vezes situar-se mais no campo da economia política do que na sua crítica, em particular no estudo dos esquemas de reprodução, do modelo de transformação ou da lei da queda da taxa de lucro. Assim, seríamos levados a privilegiar o primeiro livro do Capital em relação aos dois seguintes, e especialmente o terceiro, que foi escrito primeiro, quando Marx ainda não estava livre da influência de Ricardo. Esta posição é levada ao limite num livro recente de Carlo Benetti e Jean Cartelier [48]. O próprio Marx é considerado como fazendo parte da economia política, e por vezes ainda mais próximo de Debreu do que de Sraffa! Tal como este último, Marx baseia-se implicitamente na “hipótese da nomenclatura” que “equivale a supor que uma descrição de um conjunto de coisas, qualificadas como bens ou mercadorias, é possível antes de qualquer proposta relativa à sociedade [49]“. É com base em tais propostas, enunciadas sob a forma de hipóteses, que os autores propõem, no seu último trabalho, um “esboço dos princípios gerais da teoria da mercadoria, da relação salarial e do capital”. Uma discussão sobre este arrojado empreendimento levar-nos-ia demasiado longe.

É apropriado concluir esta secção mencionando as últimas teses de um autor que poderia ter sido classificado na corrente “Ricardo-Marxista”. Em L’économie de Marx, histoire d’un échec [50], Henri Denis explica que Marx se apoia em Ricardo em todo o Capital, acreditando que está assim a estabelecer cientificamente um projeto político revolucionário. Ele ter-se-ia, portanto, desviado, regredindo em relação a uma tentativa muito mais original e frutuosa, cujos vestígios podem ser encontrados em obras anteriores ao O Capital e, em particular, encontrados nos Grundrisse. Apoiando-se em Hegel e não em Ricardo, Marx teria então começado a construir uma teoria dialética da mercadoria e do capital, mais suscetível de lançar luz sobre os alicerces da economia capitalista. Ele teria parado pelo caminho, escolhendo, definitivamente, Ricardo em vez de Hegel.

 

4. Em jeito de conclusão: alguns esclarecimentos

Os debates que relatámos brevemente podem parecer a alguns esotéricos, ou na melhor das hipóteses, de interesse histórico. No entanto, eles tocam em questões absolutamente fundamentais, que foram discutidas durante muito tempo e que estão longe de estar resolvidas. Dizem respeito aos fundamentos do discurso sobre a sociedade. Qual é a natureza da ordem social hoje em dia? Será ela transformável? Se o é, como é que pode ser transformada? Pode o discurso da “ciência económica” explicar a natureza das sociedades contemporâneas? Se não, como pode ser explicada? Estas são algumas das questões em jogo na relação entre Marx e Sraffa.

Por conseguinte, pode parecer presunçoso entrar nesta discussão. É apropriado fazê-lo, mas com modéstia e estando sempre bem ciente do carácter provisório das conclusões alcançadas. A nossa posição neste debate está ligada à terceira das correntes que identificámos na secção anterior [51]. Assim, numa análise dos nossos trabalhos dedicados a esta questão, Jan Kregel [52] classifica-nos entre aqueles que rejeitam as formulações modernas, neo-Ricardianas, de Marx, com base num mal-entendido fundamental do pensamento deste último (pelo qual ele próprio seria parcialmente responsável!). Assim, os nossos argumentos são concebidos “para responder à crítica de Steedman à teoria do valor de Marx”. Kregel conclui a sua crítica, que é também dedicada às obras de Suzanne de Brunhoff e Ghislain Deleplace, com uma advertência contra um certo dogmatismo que corre o risco de cortar as pontes entre a teoria marxista e a economia não-marginalista.

A recensão de Kregel não trai as nossas palavras, mas, como todas as recensões, simplifica-as um pouco, obrigando-nos a clarificar, mas também a matizar algumas das teses que temos defendido. Em qualquer caso, o nosso objetivo não é cortar as pontes entre “teoria marxista” e “economia não-marginalista”. Mas é importante, no entanto, situar as diferenças de perspetiva e, por vezes, as contradições entre as abordagens. Isto é o que iremos indicar brevemente, sob a forma de uma avaliação da relação entre Marx e Sraffa.

Continuamos a pensar, em primeiro lugar, que o projeto de Marx, por muito bem-sucedido que seja na sua realização, transborda e contradiz o da economia política. Desde 1844 até à sua morte em 1883, Marx legendou constantemente a sua obra económica como “crítica da economia política”. Isto pode não ser por cegueira. Antes de iniciar esta crítica, Marx e Engels tinham desenvolvido aquilo a que chamavam a sua “conceção materialista da história”. Parece-nos óbvio que, para Marx, a apreensão da realidade social deve constituir um projeto global e não ser compartimentada nas disciplinas herméticas das ciências sociais. É isto que nos apercebemos hoje de novo, dado o fracasso das ditas ciências em dar conta, no seu isolamento, dos problemas sociais mais urgentes: crise, subdesenvolvimento, destruição ambiental, etc. Esta é talvez também a opinião da Sraffa. Pelo menos deve ser claro que o seu projeto, nos seus escritos, é muito mais limitado do que o de Marx. E certamente encontramos, entre os seus seguidores, uma visão mais geral e mais detalhada do mundo. E há certamente uma tendência entre os seus discípulos para sobrevalorizar a capacidade explicativa da economia política. No entanto, essa tendência também se encontra em muitos dos discípulos de Marx.

Em segundo lugar, existe o método de análise. Este é talvez o ponto mais fundamental e o núcleo do mal-entendido. Nós não oporemos, como alguns fazem, o “método dialético” de Marx ao “método metafísico” da “ciência burguesa”. Esta última posição permite-nos resolver rapidamente problemas como o da transformação: as contradições “visíveis” da teoria de Marx seriam os “reflexos” das contradições da realidade, e ponto final. No entanto, pensamos que existe um enorme fosso entre o método de análise apresentado por Marx na “Introdução Geral à Crítica da Economia Política [53]” e o empirismo que constitui a metodologia implícita da maior parte da economia política. O processo cognitivo, para Marx, é um processo conceptual, em que o ponto de partida da análise é constituído por certas abstrações que são construídas. Assim, a mercadoria é, para Marx, um conceito e não uma fotografia da realidade como a mercadoria da economia política. O processo de conhecimento, por outro lado, decorre em pensamento, de acordo com certas regras bem definidas. É, portanto, absurdo afirmar que o critério de “cientificidade” de uma teoria é que é possível demonstrar a sua falsidade “empiricamente”. Não é certo, contudo, que Sraffa partilhe com a maioria dos economistas esta ingénua “epistemologia” que os teóricos das chamadas ciências “exatas” há muito deixaram de acreditar. A influência de Sraffa na evolução do pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein é particularmente evidente, como ele próprio admite.[54]

Em terceiro lugar, há o objeto de análise. Mesmo que pareça idêntico entre Marx e Sraffa, continuamos a pensar que Sraffa toma como dados para a sua análise aquilo que, para Marx, coloca um problema, aquilo de que ele tenta fazer a génese (se ele consegue fazê-lo… isso é outra questão). No entanto, isto não constitui razão suficiente para rejeitar a teoria de Sraffa, uma vez que muitos tendem a fazê-lo alegremente. É bem possível que a abordagem de Sraffa seja complementar à de Marx, sendo, por assim dizer, a jusante desta última. Está fora de questão, numa abordagem científica, enfrentar todos os problemas em simultâneo. Somos portanto levados, numa fase, a tornar explícito o que será tomado como dado na fase seguinte.

No entanto, no caso da Sraffa, o que está a jusante destrói o que está a montante. De facto, está claramente demonstrado que o modelo da Sraffa torna redundante a análise do valor e da mais-valia. O ‘excedente’ R do sistema constitui a fonte, a montante, uma fonte inexplicável, como o produto excedente dos fisiocratas (não é por acaso que Sraffa alude a Quesnay, no seu apêndice já citado). Este facto esgota o modelo, já que a luta de classes só intervém ao nível da repartição deste excedente. Para Marx, a luta social é jogada ao nível da produção, enquanto para Sraffa, ela ocorre ao nível da repartição. Alguns dos seguidores de Sraffa falam mesmo do “mundo não humano” da tecnologia, que é distinto das “instituições humanas” de repartição [55]. É conhecido que Marx criticou fortemente esta conceção, que atribuiu a Mill.

Dito isto, não concluímos que o modelo de Sraffa deve ser rejeitado, sendo o de Marx satisfatório. Concordamos com Kregel que há algo a aprender com a teoria dos preços da Sraffa. É certamente superior ao delineado no terceiro livro do Capital. No entanto, não pode substituir a teoria da mercadoria esboçada no início do Capital. Será que as abordagens dos dois livros podem ser reconciliadas? Na sua totalidade, certamente que não. Certamente que também não no caminho das formalizações matriciais. Há, em particular, resíduos que escaparão sempre à tradução matemática. É uma questão de tentar integrar parte da contribuição de Sraffa, como a de Marx, num esforço para compreender a realidade social como um todo. Esta não é certamente uma tarefa concluída.

É também uma questão de transformação social, com a qual vamos terminar esta apresentação. Marx apresenta-se, de facto, como um teórico e como um praticante desta transformação. A dimensão política está presente em toda a sua obra. Qual é, deste ponto de vista, a sua relação com Sraffa? A dimensão política é obviamente muito menos evidente nos escritos teóricos de Sraffa. Está, no entanto, implicitamente presente. Para alguns, a teoria de Sraffa constituiria o fundamento da “política alternativa” reformista. A visão da luta pela partilha do excedente manteria a promessa de uma transformação institucional para harmonizar os interesses dos ‘parceiros sociais’. Com referência à Itália, a teoria de Sraffa já foi apresentada como “a economia política do compromisso histórico” [56]. A teoria de Marx constituiria, pelo contrário, a base para uma ruptura brutal da ordem estabelecida.

Também sobre este ponto, parece-nos que as coisas devem ser matizadas. A nível político, Sraffa parece-nos certamente mais próximo de Marx do que dos economistas, neo-clássicos, “novos” ou não, que actualmente aconselham os governos na implementação de políticas económicas conservadoras. Isto é demonstrado em primeiro lugar pelo empenho político pessoal de Sraffa, cujos escritos sobre a política económica italiana lhe valeram uma resposta do próprio Mussolini, que o acusou de desacreditar a Itália na opinião internacional. Os seus esforços para sensibilizar o mundo para o destino de Antonio Gramsci nas prisões de Mussolini [57] são também testemunho disso. Os seus escritos, tal como as suas palavras, testemunham um homem profundamente convencido da injustiça social e da exploração de classe “camuflada” pelos economistas, e convencido da necessidade de uma transformação radical desta ordem social. Deste ponto de vista, Sraffa está certamente no mesmo campo que Marx. E quanto à transformação social, ela terá lugar através da unidade de várias sensibilidades e por vezes interesses divergentes. Daí a importância de não quebrar pontes proclamando, sozinho, uma verdade da qual se acredita ser o único depositário.

 


Notas

[30] Veja-se sobre este tema  G.C. Harcourt, Some Cambridge Controverses in the Theory of Capital, Cambridge University Press, 1972.

[31] Veja-se sobre este tema   G. Dostaler, Valeur et prix, histoire d’un débat, Montréal, Maspéro-/ Presses universitaires de Grenoble/Presses de l’Université du Québec, 1978.

[32] Veja-se sobre este tema A. Eichner, et J. Kregel, “An Essay on Post-Keynesian Theory: A new paradigm em Economics”, Journal of Economic Literature,  Dezembro  1975.

[33] J. Robinson, “Michal Kalecki”, in: Collected Economie Papers, Oxford. Basil Blackwell, 1973, Vol. IV, p. 87-91.

[34] É o que resulta, por exemplo, dos trabalhos de Paul Boccara: veja-se P. Boccara, Sur la mise en mouvement du «Capital», Paris, éditions sociales, 1978.

[35] Pensamos, por exemplo, nos trabalhos dos teóricos próximos da corrente trotskista. Veja-se, por exemplo: P. Salama, Sur la valeur, Paris, Maspero. 1975 ; D. Yaffe, «Valeur et prix dans le Capital de Marx», Critique de l’économie politique, No 20, 1975, p. 45-103.

[36] Veja-se por exemplo : D. Dumenil, De la valeur aux prix de production, Paris, Economica, 1980; A. Lipietz, Crise et inflation, pourquoi?, Paris, Maspero, 1979.

[37] E. von Bôhm-Bawerk, Zum Abschluss des Marxschen Systems, Berlin, Hering, 1896. Veja-se sobre este tema, G. Dostaler, Valeur et prix, op.cit. p. 62-70. Veja-se também, na mssma obra, uma descrição mais detalhada da solução de Marx, p. 35-39.

[38] M. Tugan-Baranowsky, Theoretische Grundlagen derMarxismus, Leipzig, Duncker & Humblot, 1905. Voir à ce sujet, G. Dostaler, op.cit., p. 99-104.

[39] L. Bortkiewicz, “Wertrechnung und Preisrechnung inn Marxschen System” Archiv fur Sozialwissenscraft und Sozialpolitik, XXIII, 1 (julho de 1906), p. 1-50, XXV, 1 (julho de 1907), p.10-51 ; XXV 2 (sept 1907), p. 445-488 ; « Essai de rectification de la construction théorique fondamentale de Marx dans le troisième livre du Capital» (1907), Cahiers de l’ISEA, 76 (janv.-1959). p. 20-36. Descrevemos de forma detalhada a importante contribuição  de Bortkiewicz na obra: G. Dostaler, Valeur et prix, op.cit., p. 125-163.

[40] [NT. Veja-se o absurdo da solução de Marx: um produto seria vendido ao sair da linha de produção não pelo seu valor em horas de trabalho nele contidas mas pelo seu preço de produção. No mesmo sistema se o mesmo produto entrasse como meio de produção seria comprado pelo seu valor em horas de trabalho nele contidas e não pelo seu preço de produção: Vendido por um produtor ao preço de produção, comprado pelo outro produto pelo seu valor em horas de trabalho mele contidas. Logicamente impossível.

[41] V.K. Dmitriev, Essais économiques : esquisse de synthèse organique de la théorie de la valeur-travail et de la théorie de l’utilité marginale, Paris, C.N.R.S., 1968 (Ie éd., Moscou, 1904).

[42] Veja-se sobre este tema C. Benetti et J. Cartelier, « Notes sur la littérature sur la transformation des valeurs en prix de production», p. 93-136 in: C. Benetti, C. Berthomieu et J. Cartelier, Economie classique, économie vulgaire, essais critiques, Grenoble, Maspéro/Presses universitaires de Grenobles, 1975.

[43] Veja-se principalmente: de M. Dobb, Théories of Value and Distribution Since Adam Smith, Cambridge University Press, 1973; de R. Meek, Introdução à segunda edição  de Studies in the Labour Theory of Value, Londres, Lawrence & Wishart, 1973. Além de  Dobb e  Meek, pode-se mencionar entre os textos  representativos desta corrente : J.E. Eatwell, “Mr Sraffa’s Standard Commodity and the Rate of Exploitation”, Quarterly Journal of Economies, LXXXIX, 1975, p. 543-555; C.Jaeger, « Sraffa et le problème de la transformation », Cahiers d’économie politique, No 3, 1976, p. 55-75 ; J. Robinson, “Value and Price” in C oïlected Economie Papers, Vol IV, Oxford Blackwell, 1973 ; A.  Roncaglia, Sraffa and the Theory of Prices , op.cit.; I. Steedman, Marx after Sraffa, Londres, New Left Books, 1978.

[44] N. Okishio, “A Mathematical Note on Marxian Theorems”, Weltwirtschaftliches Archiv, 1963, 287-91; M. Morishima, Marx ‘s Economies, op.cit.: M. Morishima et G. Catephores, Valeur, exploitation et croissance, Paris, Economica, 1981 ; G. Abraham-Frois et E. Berrebi, Théorie de la valeur, des prix et de Vaccumulation, op.cit.

[45] Além dos autores citados na nota precedente, pode-se também mencionar: A. Brody, Proportions, Price and Planning, Amsterdam, North Holland, 1970; D. Lacaze, Croissance et dualité en économie marxiste, Paris, Economica, 1976; G. Maarek, Introduction au Capital de Karl Marx, Paris, Calmam-Levy, 1975.

[46]  Isto seria, por exemplo, o caso de um autor como M. Morishima, para quem Marx e Walras são os dois fundadores da economia matemática moderna; veja-se M. Morishima, L’économie walrasienne, Paris, Economica, 1979. Pode-se sublinhar aqui que Paul A. Samuelson contribuiu, ele próprio, várias vezes para esta discussão; veja-se em particular, P.A. Samuelson, “Understanding the Marxian Notion of Exploitation: A Summary of the so called Transformation Problem between Marxian Values and Compétitive Prices” Journal of Economie Literature, IX, 1971, p. 399-431.

[47] Esta corrente está representada, em particular, nos trabalhos da colecção “intervenção na economia política”, publicada pela Maspero. Podemos notar, C. Benetti, C. Berthomieu e J. Cartelier, Economia Clássica, economia vulgar, op. cit. ; G. Deleplace, Theories of capitalism, Grenoble, masp Penínsro/Grenoble University Press, 1979; S. Latouche,/O projecto marxista, Paris, University Press of France, 1975; C. Napoleoni, Smith, Ricardo e Marx, Turim, Boringhieri, 1970; R. Rowthorn, “Neoclassicismo,neo-Ricardianismo e Marxismo”‘, NewLeftReview, No. 86, 1974, pp. 63-87; M. Le Vroey, “trabalho abstrato, mercadoria e valor”, Departamento de Ciências Econômicas, Universidade de Montreal, Cadernos de pesquisa No. 7912, 1979. Voltemos a salientar aqui que, para efeitos de classificação, agrupamos autores entre os quais podem existir muitas diferenças de interpretação.

[48] C. Benetti et J. Cartelier, Marchands, salariat et capitalistes, Paris, Maspéro, 1980

[49] Ibid., p. 94.

[50] Paris, Presses universitaires de France, 1980. Para uma interpretação mais próxima P da das da corrente «ricardo-marxista», veja-se H. Denis, «Travail, valeur et répartition», Revue économique, XXII, 1971, p. 331-335.

[51] Voir G. Dostaler, Valeur et Prix, op.cit. ; Marx, la valeur et l’économie politique, op.cit. ;« Marxisme et science économique-réponse à Maurice Lagueux », Cahiers du socialisme, No 2, 1978, p. 216-232; «Keynes, Marx et Ricardo-réponse à M. Los», Interventions critiques en économie politique, No 6, hiver 1981, p. 211-215; « Quelques enseignements du débat sur la théorie de la valeur et le problème de la transformation», communication présentée au colloque de Lille sur « L’actualité du marxisme », apresentada em abril 1980 (a ser publicada por Anthropos, outono de 1981).

[52] Cf. Economie Journal, vol. 90 (junho 1980), p. 421-424. Ver também M. Lagueux, «À propos de deux ouvrages de Gilles Dostaler sur la théorie de la valeur », Cahiers du socialisme, No 2, automne 1978,200-215; M. Los, «Commentaires sur deux livres de Gilles Dostaler», Interventions critiques en économie politique, No 3, printemps 1979, p. 60-71. Saúdo aqui a memória de Marc Los, morto prematuramente no momento em que estas linhas são escritas.

[53] Este texto fundamental, redigido em 1857, inédito ao tempo de Marx, foi reproduzido, entre outros, em Marx-Engels, Textes sur la méthode de la science économique, Paris éditions sociales, 1974.

[54] Sobre as relações entre Sraffa et Wittgenstein, veja-se A. Roncaglia, Sraffa and the Theory of Prices  op.cit. p. 121-124.

[55]A expressão é de K. Bharadwaj, “Value through exogenous Distribution”, in G. C. Harcourt, et N.F. Lmng (éd.), Capital and Growth, Harmondsworth, Penguin Books, 1971. Note-se, contudo, que não se encontra nenhuma expressão deste tipo em Sraffa.

[56] Esta afirmação foi formulada por  Carlo Benetti, na ocisão de uma arguição de uma tese. .

[57] Cf. P. Sraffa, “The Methods of Fascism. The Case of Antonio Gramsci”, lettre au

Manchester Guardian, 24 oct. 1927.


O autor: Gilles DOSTALER [1946-2011], foi um economista canadiano, professor de Economia na Universidade de Quebec em Montreal por trinta e dois anos. Ele começou na UQAM como professor de Sociologia em 1975, e depois mudou-se para economia quatro anos depois. Gilles participou activamente na comunidade de historiadores do pensamento económico em França, onde esteve activo em dois centros de investigação: Lereps Toulouse e PHARE em Paris 1.

Apesar do facto de a segunda metade do século XX ter sido uma época em que a disciplina da economia em grande parte voltou as costas à sua própria história, há uma agradável ironia de que foi também uma época que produziu vários estudiosos de topo na área. Uma das pessoas que ajudou a definir esta recente “idade de ouro” na história da economia foi Gilles Dostaler, falecido em 26/01/2011 após uma corajosa batalha contra o cancro. Uma das características do trabalho de Dolaster que ele escreveu sobre algumas das figuras mais proeminentes da história moderna da disciplina, Keynes, Hayek e Friedman, bem como um dos mais proeminentes do século XIX, Marx. Ele também tinha formação em matemática. Assim, ele foi capaz de lidar com as obras dos grandes teóricos sobre os quais trabalhou em muitos níveis: o teórico, o político, o filosófico e o cultural.

Uma segunda característica do trabalho de Gilles foi o rico contexto contextual que ele forneceu em seus escritos. Ele poderia explicar tanto a superfície matemática de uma teoria económica, quanto as questões mais profundas que animaram o trabalho do teórico. Gilles estava igualmente à vontade para elucidar as dimensões políticas da teoria económica como era o filosófico. Um excelente exemplo da abordagem de Gilles está num dos seus últimos livros, Keynes et ses combats, publicado pela primeira vez em Paris em 2005. O livro não apenas apresenta a evolução de Keynes como um teórico económico, mas inclui tratamentos completos de todas as muitas correntes culturais, políticas e filosóficas que definiram a vida de Keynes.

O sucesso de Keynes et ses combats aponta para outra característica da sua obra (entre outros deixou 16 livros): foi um excelente escritor, que soube construir uma narrativa histórica convincente.

Aqueles que conheceram Gilles apenas através do seu trabalho sobre os gigantes da economia do século XX, talvez se surpreendam ao descobrir que ele escreveu a sua dissertação (em Paris 8) sobre Marx e a teoria do valor. Perto do fim da sua vida, decidiu reeditar uma versão revista de Valeur et prix: histoire d’un débat, um dos dois livros da sua dissertação. O que não surpreenderá quem conheceu bem o trabalho de Gilles, o livro é um tratamento analítico subtil dos debates em torno da teoria do valor. (Fonte:Taylor & Francis Online)

Leave a Reply