CORRENTES D´ ESCRITAS, 2024 : APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO COMEMORATIVA DOS 50 ANOS DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS por Luísa Lobão Moniz

Em Março de 1974, tinha 19 anos e, parafraseando P. Nizan, não deixaria que ninguém dissesse que era a mais bela idade da vida. No dia, que passou a ser da Primavera, da Poesia e da Luta contra o Racismo festejava o meu aniversário, como se isso fosse importante…

Quase um mês depois, a 25 de Abril, como todos os dias, ia para o liceu, mas neste ouvi o vizinho chamar os meus pais para dizer, do seu quintal para o nosso, que tinha havido uma REVOLUÇÃO.

E, agora? seria de direita ou de esquerda… ninguém sabia…

Quando, no carro do meu pai, passámos no Quartel General do Porto, vimos militares armados com G-3 nos telhados. Ingenuamente perguntámos o que estariam ali a fazer.

… mas as aulas estavam quase a começar e  não perguntámos a ninguém. Deviam saber tanto como nós.

Nesse dia, quinta-feira, ia ter um teste, de uma odiada disciplina, “Organização Política e Administrativa da Nação”. O manual estava todo sublinhado com lápis e o texto decorado, apenas para o teste e não para a vida.

Quando cheguei ao liceu, só para raparigas, era um alvoroço, as alunas não iam para as salas, ficaram no recreio, cada uma dizia uma coisa, e eis, senão quando, nós que íamos ter o teste atirámos o manual para o ar e recusamo-nos a fazê-lo. E agora o que nos iria acontecer?

Nada. Ninguém percebia o que se passava, mas sentíamos um cheirinho a Liberdade.

Abriram-se as portas de Abril e todos os dias andávamos nas ruas em manifestações contra o fascismo, a reclamar a Liberdade, o fim da guerra colonial, a libertação dos presos políticos e a prisão para a polícia política, ou seja, para a PIDE de que todos tinham medo e que toda a gente odiava.

Foram os dias mais inteiros que vivemos. Foi uma festa. Foram os partidos e movimentos políticos a aparecer e cada um queria militar naquele em que mais se revia.

Os jovens chegavam a casa a desoras, eram repreendidos pelos pais e pelas mães, principalmente as raparigas, e muitos nem iam a casa dormir.

Havia uma Revolução em curso e tínhamos que estar lá.

Quebrámos as amarras da repressão vivida nas escolas e universidades.

Andávamos felizes a participar nas ruas com os cravos vermelhos ao peito.

Chegou a madrugada que Sophia de Mello Breyner e o povo esperavam:

“ Esta é aquela madrugada que eu esperava

   O dia inicial inteiro e limpo

   Onde emergimos da noite e do silêncio

   E livres habitamos a substância do tempo”

O meu percurso, depois do 25 de Abril, foi pautado pela Liberdade que conquistámos.

Estava, então, no 1º ano de Medicina. Desejava fazer a especialidade de Psiquiatria. Desejava tratar aqueles que, como hoje se diz, tinham a sua saúde mental em risco. Eram marginalizados pela sociedade e excluídos. Ficavam presos, para quase sempre, em hospitais psiquiátricos.

Depois de muitas manifestações e de boicotes a exames que serviam para excluir alguns dos 400 novos alunos, a luta continuou. A bitola para “o chumbo”, para além da falta de conhecimentos, era também política. Aqueles, que mais se destacavam na oposição a essas novas regras do antigo diretor, seriam os alvos da reprovação. Em Maio surgiu uma nova disciplina, com exame no final do ano letivo, esta seria a peça decisória para passar o primeiro ano.

“Chumbei” e tinha que ficar um ano a fazer uma só disciplina.

Mas não queria parar em tempos de Revolução e o sonho de lutar pelos mais vulneráveis fazia parte do meu respirar.

Resolvi deixar o curso de Medicina por um curso que, na altura, estava em profunda transformação a nível da Educação. Acreditava que através da Escola poderia mudar o mundo.

E continuo a acreditar.

Foi, então, que concorri às 160 vagas, para um universo de mil e tal concorrentes. Fui selecionada.

Não cabia em mim de contente, continuava no trilho da Revolução em que o Povo é quem mais ordena, e os soldados são filhos do Povo. A habitação, a saúde, a Educação, uma maior justiça social e económica, contra a carestia da vida eram alguns dos slogans gritados nas manifestações de rua a que ninguém faltava.

No primeiro dia de aulas fiquei mais convencida de que a minha decisão teria sido a melhor. Conheci e privei com muitos mais alunos que tinham abandonado os cursos superiores para se matricularem na Escola do Magistério Primário.

Foi um curso, poder-se-á dizer, que transformou mentalidades, cada ano que passava era menos um que faltava para iniciar uma Escola Nova.

Foi o tempo para mudar o mundo dando voz aqueles que sobreviviam na pobreza de conhecimentos e de qualidade de vida, aqueles que nunca foram à escola.

Fui colocada, a primeira vez, numa terra muito pequena em que as mulheres ainda não iam ao café, em que só havia uma cabine telefónica que ficava nesse café.

As crianças que iam à escola eram indisciplinadas e com pouca motivação para a aprendizagem. Andei de terra em terra e aprendi muito com as crianças.

Quiseram as circunstâncias da vida que eu conhecesse uma Cooperativa de Ensino criada por pais interessados num ensino baseado nas crianças e para as crianças. Convidaram-me para ser lá professora, aceitei.

Confesso que hesitei, pois o que queria era um Escola Pública, mas ao mesmo tempo gostava de experimentar uma escola privada com a característica de ser gerida pelos pais. Era a primeira Cooperativa de Pais no Ensino, foi fundada em Outubro de 1974.

Lá fiquei quatro anos e não me arrependi. Aprendi muito com estes alunos e com os pais.

Passados quatro anos voltei ao ensino público e fui colocada numa escola em Chelas, a Escola do Bairro do Relógio. O bairro era também conhecido como o Camboja e as crianças diziam orgulhosas  aqui com os cambojanos ninguém se mete, têm medo.

Quando fiquei nessa Escola alguém me disse que eu ia para um bairro de marginais.

Aí estive mais de 20 anos, por opção. Era sempre a primeira professora a ser lá colocada, por concurso anual, fui eleita diretora e acabei por me tornar professora efetiva, continuando também a lecionar.

Nunca me arrependi, nunca desejei mudar de escola, estava no sítio certo para fazer a Revolução possível, lutar pelos mais desfavorecidos em todas as vertentes da vida. Conheci a cultura da pobreza, da violência, das crianças maltratadas, mas conheci também pessoas que são exemplo de solidariedade, do querer conscientemente mudar de vida, conheci a fonte das lágrimas, conheci a fome dentro da sala de aula, conheci veladas ameaças da parte de alguns funcionários da tutela por ter conseguido dar às crianças uma ligeira refeição, com a colaboração da igreja Maximiliano Kolbe.

Participei em projetos do Ministério da Educação que contemplavam as escolas de Intervenção Prioritária, mais tarde os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), o Programa Entre culturas, a Inclusão de alunos de etnia cigana, Mediador Cigano na Escola do 1º ciclo, colaborei em projetos da Câmara Municipal de Lisboa, realço As Experiências Educativas e Os Escritores de Lisboa, colaborei com o IAC em As crianças sonham a Europa.

Sempre desejei dar às crianças, suas famílias e ao bairro a que pertenciam uma nova perspetiva da Vida e da Educação. Era possível viver sem violência, não era necessário humilhar ninguém, era possível aprender sem ser com castigos… e porque cada criança é ela própria e a sua família, os seus amigos, e o seu bairro licenciei-me com a tese “A Escola e a Promoção da Leitura através das Bibliotecas”, alargando, assim, o meu campo de ação enquanto professora tornando a escola mais inclusiva.

Os alunos pertenciam a várias etnias e culturas, levando-me a fazer o mestrado e o doutoramento em Relações Interculturais.

No mestrado fiz um levantamento de As Representações dos alunos sobre uma escola multicultural do 1º ciclo”. Escrevi e publiquei Não sei se sou diferente A (in)visibilidade da diversidade Cultural (Livros Horizonte, 2008). O doutoramento teve como tema de investigação “Vozes de alunos sobre violência/agressividade em casa, na rua e na escola no contexto intercultural de Chelas”.

Fizemos os nossos percursos políticos e sociais, e 40 anos depois, para homenagear todos e todas aquelas que tornaram possível o dia da Revolução dos Cravos, nasceu o livro “A Escola e os Cravos” .

Era e é uma inquietação sentida, enquanto professora e cidadã, a falta de conhecimento que as crianças têm sobre a vida antes e depois do 25 de Abril de 1974.

Para muitas crianças e jovens o dia 25 de Abril é mais um feriado.

O livro tenta estabelecer uma comparação, a partir de pequenos momentos vividos na escola, entre o 24 e o 25 de Abril.

“A Escola e os Cravos” é um livro que tenta colmatar essa falta de conhecimento.

Parte da geração mais nova de professores também ignora alguns aspetos da passagem da ditadura para a democracia porque não viveram o 25 de Abril, ainda não tinham nascido ou eram muito jovens.

A ilustração do livro, de Rita Moniz, tenta mostrar as diferenças através de um bonito colorido próprio do 25 de Abril.

Nós, que vivemos o 25 de Abril e que acreditamos nos nobres valores da Democracia, temos o dever de transmitir aos mais jovens a bondade da Democracia, para que os tempos que estamos a viver não se desviem da rota da Revolução de Abril.

No dia da apresentação de “A Escola e os Cravos” Maria Teresa Horta disse, entre outras coisas:  “E aqui, parece-me importante confessar, quanto “A Escola e os Cravos”, sem dúvida devido ao desencanto e ao retrocesso político e económico, que neste momento atravessamos em Portugal, me fez lembrar um livro de resistência”.

Aqui fica esta edição comemorativa do 25 de Abril de 1974, A Revolução dos Cravos, modesto tributo a todos quantos o fizeram e o tornaram possível, com a firme certeza de que os tempos anteriores a essa data nunca mais voltarão.

Os cravos vermelhos perdurarão…

No 50º aniversário de vida em Liberdade.

Luísa Lobão Moniz, 25 de Abril em 2024.

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