Democracias minadas – a Argentina — Texto 1. Porquê e onde é que a classe trabalhadora se tornou de direita. Por Harold Meyerson

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

5 min de leitura

Estamos no campo de domínio dos plutocratas –os que lenta, mas perseverantemente, se têm encarregado de ir minando os sistemas democráticos– mas que agora se vêm também acompanhados, ou emulados, por outras figuras e outros movimentos da direita mais extrema, tentando trazer acima práticas e regimes antigos, apoiados por poderes empresariais, económicos e financeiros, contando todos com a memória curta dos povos, devidamente ‘tratada’ com desinvestimento no ensino das humanidades e investimento na ‘sociedade do espectáculo’, comandado pelos ‘big brothers de bolso’.

António Oliveira, “das eleições ao sursumcordam”, A Viagem dos Argonautas em 20 de Abril de 2024 (aqui)

 

Texto 1. Porquê e onde é que a classe trabalhadora se tornou de direita

 Por Harold Meyerson

Publicado por  em 8 de Janeiro de 2024 (original aqui)

 

MATT ROURKE/AP PHOTO- Manifestantes apoiam o Presidente Donald Trump, em 15 de abril de 2019, perto da antiga fábrica da Bethlehem Steel, em Bethlehem, Pensilvânia

 

Um novo livro documenta o mundo perdido (e pró-democrata) dos trabalhadores siderúrgicos da Pensilvânia e a forma como se tornaram republicanos.

A um ritmo que só pode ser descrito como glacial, o Partido Democrata parece ter finalmente percebido que o declínio da filiação sindical lhe custou a lealdade de grande parte da classe trabalhadora do país (a classe trabalhadora branca em particular) e, com isso, uma série de eleições. Dado que os eleitores sindicalizados votam invariavelmente mais nos democratas do que os seus homólogos não sindicalizados, isto já devia ter ficado claro há muitas décadas (apresentei este argumento num artigo de capa que escrevi para o The Nation há 38 anos). Ignorando as pichagens nas paredes, os democratas não conseguiram alterar a legislação laboral para reforçar o direito dos trabalhadores a sindicalizarem-se sempre que, desde a década de 1970, controlaram a Casa Branca, a Câmara e uma supermaioria à prova de obstrução no Senado (ou seja, em 1979, 1994 e 2009).

A perda de estados como a Pensilvânia, o Michigan e o Wisconsin para Donald Trump em 2016, mais a atual erosão do apoio da classe trabalhadora a Joe Biden, que aparece em todas as sondagens, soou pelo menos como um sino de fogo na noite para os democratas e para as pessoas que com eles simpatizam ou que simplesmente os aturam. Mesmo os críticos que culpam os democratas por alienarem grande parte da classe trabalhadora americana através da sua adesão ao que chamam de políticas sociais radicais (como John Judis e Ruy Teixeira no seu novo livro Where Have All the Democrats Gone?) também atribuem grande parte, talvez a maior parte, da culpa às políticas económicas anti-laborais e pró-Wall Street (comércio livre e anti-keynesianismo em particular) das administrações Carter, Clinton e Obama.

Um olhar mais pormenorizado sobre o abandono da América da classe trabalhadora por parte dos democratas antes de Biden é apresentado num livro menos anunciado, também publicado no ano passado: Rust Belt Union Blues, da autoria da socióloga e analista política de longa data de Harvard, Theda Skocpol, e de Lainey Newman, cuja tese de licenciatura foi orientada por Skocpol. Natural de Pittsburgh, em grande parte confinada a casa durante a pandemia de COVID, Newman iniciou um estudo etnográfico da Pensilvânia Ocidental, analisando o declínio de décadas dos números e do poder de United Steelworkers of America e o concomitante afastamento dos seus membros e antigos membros do Partido Democrata. Juntas, as autoras transformaram a investigação de Newman num livro que lança luz sobre o declínio de um mundo económico, social e político que outrora reforçou as perspetivas progressistas e democratas.

Em primeiro lugar, os números: em 1960, os 20 condados que compõem o Oeste da Pensilvânia albergavam 143 sindicatos do USW. Meio século mais tarde, o número de locais tinha caído para 16. Nove desses condados tinham votado em John F. Kennedy em vez de Richard Nixon em 1960; em 2020, apenas dois desses condados – Allegheny e Erie, onde se situam as duas únicas grandes cidades (Pittsburgh em Allegheny) de entre os 20, e os dois únicos com economias diversificadas – votaram em Biden em vez de Donald Trump.

O centro e o oeste da Pensilvânia são terrenos de colinas e depressões, e muitas dessas depressões no lado ocidental do estado tiveram outrora fábricas de aço, que eram centrais numa série de cidades agora em grande parte envelhecidas e abandonadas: Johnstown, McKeesport, Aliquippa e dezenas de outras. Esses 143 locais eram o próprio centro dessas cidades, juntamente com uma série de lojas étnicas que refletiam os antepassados dos trabalhadores do aço. (O filme de Michael Cimino, O Caçador, de 1978, que ganhou o Óscar de Melhor Filme desse ano, apresenta um retrato impressionista de uma dessas comunidades, tal como o vencedor do Óscar de Melhor Filme de 1941, How Green Was My Valley, de John Ford, apresenta um retrato semelhante de uma comunidade mineira galesa que se desintegra sob a pressão do capitalismo global inicial.)

Nessas terras e nessas cidades, a filiação sindical e a camaradagem estavam no centro da vida das comunidades e dos trabalhadores do sector siderúrgico. A derradeira demonstração dessa centralidade e dessa camaradagem ocorreu durante a grande greve do aço de 1959, em que 500.000 membros do USW, pelo menos metade dos quais na Pensilvânia Ocidental, permaneceram em greve durante 116 dias, sem que um único membro atravessasse a linha de piquete. (Essa greve está maravilhosamente documentada num outro livro insuficientemente anunciado, Striking Steel, de Jack Metzgar). Em todas essas pequenas cidades siderúrgicas, as igrejas e outras organizações cívicas ajudaram os trabalhadores a atravessar aquelas difíceis 16 semanas e meia sem salário, enquanto os membros que tinham o suficiente para sobreviver, por vezes apenas o suficiente, ajudavam os colegas e as suas famílias que não tinham nenhuma possibilidade.

Muito antes de os democratas adotarem políticas sociais alegadamente “radicais”, já tinham efetivamente dito a milhões de americanos da classe trabalhadora que as suas profissões eram dispensáveis.

Esses sindicatos locais tinham os seus próprios clubes de caça, bowling e beisebol; os seus boletins informativos forneciam informações sobre as novas regulamentações estatais relativas à caça; os seus salões sindicais eram muitas vezes locais de casamentos e outras celebrações. (As entrevistas e pesquisas de Newman nos arquivos dos sindicatos locais revelaram o material de mais filmes possíveis sobre o mundo das cidades siderúrgicas pré e pós-Deer Hunter- O Caçador).

Este mundo centrado na siderurgia e no sindicato moldou a política de duas gerações de eleitores não metropolitanos da Pensilvânia. Eles e os seus pares viam e, na maioria dos casos, absorviam a posição do sindicato sobre questões económicas e preocupações políticas em geral. Esses pontos de vista eram por vezes ecoados nos púlpitos da igreja católica local; eram a linguagem comum dos bairros da classe trabalhadora numa altura em que a maioria dessas cidades era constituída principalmente por bairros da classe trabalhadora.

As fundições e os sindicatos locais há muito que desapareceram dessas cidades fabris; esses bairros são mais pequenos, mais velhos e também não têm a maioria das outras organizações comunitárias – com a exceção crucial dos clubes de tiro (a maioria dos quais tem de se filiar na NRA para se qualificar para benefícios de consumo e outros). O discurso em torno dos atuais e antigos trabalhadores da siderurgia na Pensilvânia Ocidental provém agora dos meios de comunicação social de direita, não locais (tanto de massas como sociais) e desses clubes de armas. Ser democrata nas poucas fábricas que restam atualmente é ser uma exceção. Em várias ocasiões, Newman passou dias a documentar os autocolantes dos para-choques nos parques de estacionamento dos empregados de três siderurgias sindicalizadas do sudoeste da Pensilvânia. Trinta e quatro por cento dos autocolantes eram de clubes de armas, 27% eram do e/ou para o Partido Republicano e seus candidatos, 13% eram de clubes de motociclistas, 12% do sindicato e apenas 1% do e/ou para o Partido Democrata e seus candidatos.

A mudança de orientação política segue-se a essa mudança no ambiente socioeconómico e, mais importante ainda, na política dos seus pares. Numa das primeiras reportagens sobre sindicatos que escrevi, sobre a forma como o apoio nas eleições pré-primárias presidenciais da AFL-CIO a Walter Mondale, em 1984, se desenrolou nas primárias democratas dos vários estados, concentrei-me em parte no New Hampshire, onde Mondale não só perdeu para Gary Hart, mas também, de acordo com as sondagens à saída, perdeu por pouco entre os eleitores sindicalizados do estado. Na maior parte do estado, a campanha dos sindicatos a favor de Mondale consistiu numa chamada automática do presidente da AFL-CIO, Lane Kirkland, para os membros dos sindicatos, dos quais praticamente nenhum fazia ideia de quem era Lane Kirkland. O resultado foi diferente, porém, em Berlim, uma cidade isolada de fábricas de papel no extremo norte do estado. Ali, os delegados sindicais das fábricas de papel tinham falado repetidamente com os seus colegas, e em Berlim – uma cidade de moinhos com uma cultura tão distinta como a das cidades siderúrgicas da Pensilvânia – o que os seus colegas sindicais diziam e pensavam era importante. Berlim foi fortemente a favor de Mondale.

Atualmente, as cidades de forte implantação sindical da classe trabalhadora são poucas e distantes entre si. O mais próximo que temos de uma é provavelmente Las Vegas, onde o sindicato dos empregados na hotelaria, com mais de 50.000 membros, é uma presença omnipresente numa cidade dominada pela indústria dos hotéis-casinos. Tal como os Steelworkers de outrora, o sindicato dos empregados de hotelaria (Culinary Local 226) faz o que é preciso para os seus membros e cria um discurso de pares que fez dele a força política mais dominante para os Democratas no Nevada.

Muito antes de os democratas adotarem políticas sociais alegadamente “radicais”, já tinham efetivamente dito a milhões de americanos da classe trabalhadora que as suas profissões não eram indispensáveis e que a sua subsistência era apenas uma questão indiferente. Os republicanos sempre acreditaram nisso, é claro, mas quando isso tomou a forma das políticas comerciais e tributárias  que os democratas pós-New Deal adotaram e das políticas industriais que eles se recusaram a adotar, foi uma questão de traição. Alguns democratas dos centros industriais da nação (David Bonior, Sherrod Brown) e de outros locais (Bernie Sanders, Paul Wellstone) compreenderam isso e tentaram evitá-lo, mas não houve um presidente democrata até Joe Biden que tenha repudiado essas políticas e procurasse revertê-las.

No entanto, para os trabalhadores da indústria siderúrgica de hoje e para aqueles que em tempos trabalharam nas fábricas há muito tempo encerradas, Biden terá dificuldade em fazer passar a sua mensagem. Os mundos que milhões de americanos da classe trabalhadora habitam atualmente não têm muitos pontos de entrada para mensagens do primeiro presidente que desde há meio século está agora a trabalhar para melhorar a sua sorte.

 

__________

O autor: Harold Meyerson [1950-] é um jornalista estado-unidense, colunista de opinião e socialista. É editor geral do The American Prospect e foi colunista de opinião do The Washington Post de 2003 até 2015, quando foi despedido por este último. Alguns especulam que o despedimento foi motivado politicamente e relacionado com a época eleitoral de 2016 e a ascensão de Bernie Sanders. Em 2009, o Atlantic Monthly nomeou-o um dos “comentadores mais influentes da nação”, como parte da sua lista “The Atlantic 50”. Filho de líderes de longa data na Califórnia do Partido Socialista da América, foi activo na década de 1970 no Comité Organizador Socialista Democrático. Editor executivo da L.A. Weekly de 1989 a 2001. Os seus artigos  também apareceram no The New Yorker, The Atlantic, The New Republic, The Nation, e New Statesman. É o autor de Who Put The Rainbow in The Wizard of Oz?, uma biografia do letrista da Broadway Yip Harburg, e os seus artigos foram republicados em vários livros, nomeadamente o volume do Brookings Institution no livro Bush v. Gore. De 1991 a 1995, Meyerson acolheu o espectáculo semanal “Real Politics” na estação NPR KCRW em Los Angeles. Convidado frequente em programas de televisão e rádio, incluindo “The Four O’Clock Report” com Jon Wiener no KPFK em Los Angeles. Sendo um reconhecido socialista democrático, foi vice-presidente honorário do Comité Político Nacional dos Socialistas Democratas da América, até que tais posições foram abolidas em 2017.

 

Leave a Reply