A Líbia e a Somália. Por João Machado

Diariamente recebemos uma informação centrada em questões que nos afectam, sem dúvida, mas que encobre outras, talvez ainda mais graves. As questões económicas são realmente de capital importância, mas para além de receberem um tratamento limitado e bastantes vezes inexacto, as notícias dadas sobre o euro, a crise financeira, as reuniões entre a chanceler Merkel e o presidente Sarkozy, que é certo fazem subir e descer as bolsas, as declarações quase sempre pouco felizes do Dr. Passos Coelho (e sempre no mesmo sentido, que ele é um duro, e vai-nos cortar a despesa, a nossa despesa, não a dos outros, como bem notou o Ricardo Araújo Pereira), e outras próximas, escondem outras que são também muito importantes, talvez até mesmo mais importantes.

 

É certo que se esquadrinharmos bem os jornais, espreitarmos muitos programas de televisão e de rádio, perdermos (ou ganharmos, conforme os pontos de vista) muito tempo na internet, viajarmos, etc., descobriremos outras realidades, confirmaremos suspeitas de que há para os problemas outras receitas para além daquelas que preconizam os personagens referidos, que dominam a cena mediática, enfim veremos as coisas de um modo completamente diferente. E então vem a grande pergunta? Quantas pessoas conseguem ter acesso a uma informação mais completa, que possibilite uma melhor compreensão do mundo, e das coisas que nele vão acontecendo? Pensando bem, são bastante poucas que para isso têm meios, tempo e  mesmo interesse. Digo interesse, porque muitos nem mesmo se apercebem da gravidade do problema.

 

Esta informação incompleta faz com que a maioria das pessoas não chegue a compreender que para ultrapassar a presente situação há que tomar caminhos diversos (e sem dúvida mais eficazes) dos preconizados nos encontros de Merkel e Sarkozy, ou nos discursos do Dr. Passos Coelho. Por exemplo, porque não se encerram por uns tempos as bolsas e os mercados financeiros? Não consigo encontrar ninguém que preconize abertamente esta medida? Ou pelo menos que analise com algum cuidado os possíveis resultados desta ideia, que talvez levasse muito mais depressa a ultrapassar a chamada crise financeira. Talvez detivesse os furores especulativos que nos vão engolir  a todos, não tarda, não só à Grécia.

 

Mais grave ainda é o ocultamento, ou pelo menos a penumbra que se abate sobre questões gravíssimas que existem por todo o mundo (pois a globalização só existe para a especulação feita por uns poucos, e para a miséria que assola a maioria). Gaza e os palestinianos quase desapareceram das primeiras páginas: às vezes aparece um barco de voluntários para levar algum socorro, e só aparece porque alguém resolve dizer que há uma perturbação da paz.

 

Mas o que me fez puxar este desabafo foi uma reportagem no Observer de 4 de Setembro último sobre a situação na Somália. Ali a fome atinge proporções alarmantes, e o sofrimento das pessoas é incalculável. Já neste blogue foi referido que os famosos piratas provêm de populações que se dedicavam à pesca, e que viram os barcos fábrica aparecerem nas suas costas, e dizimarem o peixe, deixando-os sem a sua fonte de alimentação. Agora o Observer informa-nos que Unni Karunakara, presidente internacional dos Médecins Sans Frontiéres, voltou da Somália e procura alertar para as enormes dificuldades ali existentes, causadas pelas devastações causadas pela guerra, mais do que pela seca. Mogadíscio, a capital, está cheia de refugiados, em condições perfeitamente degradantes. As agências humanitárias enfrentam dificuldades enormes no seu trabalho no terreno. Histórias pavorosas formam o dia a dia das pessoas, como a de uma mulher que teve de deixar a sua casa e encetar uma caminhada de cinco dias até Mogadiscio. Iam com ela o marido e sete filhos. Apenas ela e quatro das crianças chegaram. Pensar um pouco, ao menos um pouco, no horror que esta gente enfrenta é sem dúvida um dever de todos nós. E mais do que pensar, exigir que se encontre uma solução eficaz para aquela gente, não expedições à cow-boy, como há anos promoveu o Sr. Clinton.

 

 

O Dr. Karunakara alerta para que os donativos em dinheiro são totalmente inúteis, porque não se conseguem aplicar apropriadamente. E que a realidade é apresentada de uma maneira muito atenuada. O retrocesso no território causado pelas guerras entre clãs, e sobretudo entre o governo apoiado pelo Ocidente e a oposição islâmica, deixa populações inteiras isoladas, e em situação de grave risco. É uma situação que dura há mais de vinte anos. É um problema que merece uma grande atenção de todos, e não apenas um esforço de alguns.

 

Preferem dar-nos notícias sobre a Líbia (a propósito, em 2011 faz cem anos sobre a ocupação deste país pela Itália). Esperemos que esta daqui a algum tempo não esteja no mesmo estado que a Somália. Até porque o Khadafi é um tipo com bastantes defeitos, sem dúvida. Não serei eu que defenda ditadores ou reizinhos. Mas que ele trazia o seu povo num estado bastante melhor que o que acontece noutros países africanos, está provado. Se calhar o problema foi ter petróleo. 

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