Aurora Adormecida 14 – Eva Cruz

 

Eva Cruz  Aurora Adormecida

 

 

Capítulo 14

 

 

 

(continuação)

 

Ao chegar ao alto da aldeia, avistou Aurora o vale que lhe servira de berço. Ao fundo lá estava a Quinta do Engenho que lhe coubera em herança.

 

* Tratava da minha quintinha um caseiro, bom homem, muito sério, mas já velhote.

 

Deu ordem ao motorista para a deixar ao cimo do quintal da tia Emília, a irmã do pai.

 

— Ai, menina, o seu tio mata-me. Estou, afinal, a desobedecer às suas ordens.

 

* Eu já sou maior, tenho 21 anos. Não volto mais para casa do meu tio.

 

A tia Emília também não a queria receber. Temia responsabilidades. Era a irmã mais velha do pai. Ficou viúva muito nova, os filhos já estavam casados e viviam no Brasil. Era costureira.

 

* A minha tia era a melhor modista da terra. Os homens só queriam as camisas feitas por ela. Fazia as saias de baixo em cambraia cheias de tomados, nervuras e folhos, e trabalhava o veludo como ninguém. Com ela aprendi de costura.

 

Aurora foi sempre voluntariosa, nunca submissa.

 

* Fui uma grande mulher, corajosa, devota e séria. Sem pai nem mãe, nem ninguém por mim, fui sempre uma mulher séria e digna. O Altíssimo bem-no sabe.

 

º Cá para mim, avozinha, estás a aldrabar o Altíssimo.

 

* Ele bem sabe, vê tudo e sabe tudo.

 

° Então, onde está Ele?

 

* Está no Céu.

 

° E onde é o Céu, avozinha?

 

* É para além das nuvens.

 

º Que nuvens? Está lá em cima escondido, avozinha?

 

* És tolo, rapaz, está sentado no seu trono, à mão direita de Deus Padre.

 

° E o trono não cai, avozinha?

 

* Cala-te, rapaz, não quero conversas contigo. Senhor me leve o meu corpinho prà terra e a minha alminha pró Céu.

 

° E como vai a tua alminha pró Céu, avozinha?

 

* Olha, vai a voar como uma pomba.

 

º Como um pomba, avozinha? Tu nem tens asas nem sabes voar. Mostra-me as asas, avozinha.

 

* A voar põe-te mas é tu daqui pra fora.

 

E assim se prolongava um diálogo por tempos sem fim, um diálogo profundo e teológico que não levava a lado nenhum e que, para gáudio dos netos, a punha ao rubro, de fúria, perdendo argumento atrás de argumento, mas sem nunca dar o braço a torcer. Os netos amavam-na cegamente, cobriam-na de beijos e de carinho e adoravam vê-la arreliada até ao infinito. Era uma relação de amor, de igual para igual, uma relação muito bonita e singular.

 

* De menina da cidade depressa me adaptei à vida da aldeia.

 

De novo, de senhora de alta roda desce à plebe. Começou a ir com as moçoilas da sua idade às desfolhadas, às romarias, aos leilões. Dava nas vistas pela delicadeza e pela beleza. A educação e o seu porte fizeram dela a atracção dos rapazes.

 

* Só tinha bons pretendentes e ricos. Nos leilões arrematavam sempre prendas para a menina mais bonita que chegara há pouco do Porto.

 

º Cala-te, avozinha, não sejas vaidosa. Eras bonitinha mas burrinha como as outras.

 

* Burro é ele. De facto, o meu tio devia ter-me posto a estudar. Só não lhe perdoo isso. Aprendi ao menos a ler e a escrever. Na aldeia as mulheres não sabiam ler e eu escrevia as cartas para os namorados delas. Elas ditavam e eu escrevia. Lia a cartilha, o missal e umas ilustraçõezitas.

 

° Lias o quê, avó?

 

* Não sabes o que é? És um ignorante. A cartilha deu-ma o meu marido. Toda em osso com aplicações de prata. Quando me namorava dava-me mui­tas coisas, depois de casada, não me dava nada.

 

° Não te dava nada?

 

* Dava, dava, malicioso és tu.

 

Dos casacos compridos fez curtos para não destoar e até comprou um xaile de merino e outro de argolinha.

 

Ibrahim veio um dia visitá-la, de carro. A tia não gostou. Se o tio não permitiu o namoro, quem era ela para o fazer.

 

* O Ibrahim voltou uma. vez mais e esfaquearam os estofos de couro do carro do pobre rapaz. Lá dentro estava um bilhete. Se cá voltares, morrerás. Há muitos rapazes na aldeia, não é preciso rapazes do Porto para namorar as raparigas da nossa terra.

 

E assim se foi o Ibraim para sempre. Só na cabeça da pobre velhinha ele ainda não morreu.

 

* Era um belo rapaz, bom e distinto. Nada tinha a ver com os labroscos desta terra. São sortes. Não tínhamos de ser um para o outro.

   Quando te vi adorei-te

   julgava que te lograva

   tinha olhos e não via

   a cegueira em que eu andava.

 

º Ai andavas, andavas, avozinha, ontem disse alguém na televisão que ele está preso por trafulhice na alfândega.

 

* Não digas disparates, um homem tão honesto e tão sério, se calhar até já morreu o pobre do homem, pois eu já sou tão velhinha!

 

° Então quantos anos é que tu tens, avó?

 

* Faz tu a conta. Nasci em 1906.

 

(continua)

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