OS HOMENS DO REI – 30 – por José Brandão

D. JOÃO II (reinou de 1481 a 1495)

 

 

 

Filho de D. Afonso V e de sua prima, a rainha D. Isabel.

 

Nascido em Lisboa, a 3 de Março de 1455, logo em Junho era jurado herdeiro, por ter morrido, ainda de colo, o primogénito de Afonso V, e ser o segundo filho do casal régio uma princesa, D. Joana, mais velha que ele três anos. Aos seis meses de idade, falecia-lhe a mãe, amargurada ainda pela tragédia recente de Alfarrobeira.

 

Seu pai, viúvo de 23 anos, confiou os órfãos aos cuidados da cunhada e prima solteira, infanta D. Filipa, irmã mais nova da defunta rainha. Não é demais admitir que teria sido esse estreito convívio de criança com a filha mais nova do avô materno o que no seu espírito precocemente grave de herdeiro da Coroa mais teria influído para a sua futura conduta de homem e de rei.

 

Aquilo que em tal ambiente teria longamente ouvido dos trágicos sucessos familiares e dos êxitos da Ínclita Geração acaso lhe teriam preparado o duro ânimo e a clara inteligência para as directivas dominantes do seu ofício de rei. D. João II começa cedo a destacar-se em tudo o que é acção.

 

Com 16 anos – e por sua firme decisão de se provar também pelas armas, embora já recém-casado com sua prima D. Leonor – levou-o seu pai na expedição de assalto e tomada de Arzila, em cujas ruínas fumegantes o armou cavaleiro por sua bravura de combatente. Com mão de ferro, o moço príncipe de 19 anos apossou-se dos mais instantes problemas, dando a medida da sua capacidade e rija têmpera de futuro monarca.

 

Em Agosto de 1481, por morte de Afonso V, era D. João aos 26 anos aclamado rei. Desde logo, D. João II mostra grande capacidade governativa, mas queixa-se que o pai só lhe deixara as estradas do reino. As conspirações e tentativas de assassínio forçaram-no a manchar as mãos de sangue, em 1483, com a execução pública do poderoso duque de Bragança, em Évora, por crime de lesa-majestade.

 

Os problemas surgem-lhe no interior do país. A nobreza, cada vez mais poderosa e arrogante, contesta o rei e bandeia-se com Castela. D. João finge não perceber os insultos e a possível traição. Depois de ter a certeza que D. Fernando, duque de Bragança era o chefe, prende-o, julga-o e manda-o degolar, confiscando-lhe todas as terras que possuía. O irmão do duque, o marquês de Montemor consegue fugir e o conde de Faro, também irmão dos primeiros, morre antes de ser condenado.

 

Os nobres continuam a não se dar por vencidos, o rei sabe-o. Um deles é o próprio cunhado, o duque de Viseu que planeia, com outros conjurados assassinar o rei em Setúbal. D. João II é avisado por Vasco Coutinho, irmão de um dos conspiradores. Chama o duque de Viseu a Palmela apunhalando ele próprio o seu cunhado e fazendo envenenar, numa cisterna do Castelo de Palmela, o bispo de Évora, D. Garcia de Meneses; o irmão é degolado, a muitos outros acontece o mesmo. Só o conde de Penamacor consegue fugir para Itália. Era Lisboa o centro vital aonde convergiam de toda a Europa as últimas informações ou novidades em matéria de investigação ou teorias geográficas, cosmográficas, astronómicas. E

 

m toda a Europa era seguramente o rei de Portugal quem mais sabia a geografia do seu tempo. Em fins de 1490, no faustoso casamento do seu herdeiro, o moço príncipe D. Afonso, com a herdeira de Castela e Aragão, atingia D. João II o apogeu do seu reinado. Pela primeira vez, depois da Roma Imperial germinava no espírito dum príncipe da Europa a ideia dum imperialismo europeu, de hegemonia sobre os outros povos do globo, dominador e condutor do Mundo, sob a égide da alta cultura ocidental.

 

Efémero foi esse deslumbramento de 1490. Meses depois, o acaso dum banal desastre da queda dum cavalo, fatal para o seu único filho legítimo, recém-casado e ainda sem herdeiro, fazia-lhe ruir pela base, irremediavelmente o deslumbrante sonho. O consórcio, que preconizava as esperanças dos reis portugueses ao trono de Castela, resultou em vão, dado a morte precoce do príncipe num acidente a cavalo enquanto seu pai se banhava no Tejo. Estavam desfeitos os sonhos de unificação ibérica, e mesmo a nossa soberania enfrentava perigos. A partir daí o rei nunca mais foi igual.

 

Outro revés: a descoberta da América (dita Índia) por Colombo, ao serviço dos ex-sogros do filho e não do reino de Portugal, como inicialmente era previsível e tinha sido possível. Desiludido mas não vencido, D. João II elabora o tratado que viria a ser chamado de Tordesilhas, aí assinado a 7 de Junho de 1494. Dividiu-se o mundo conhecido de então, o que veio a «legalizar» a posse portuguesa do Brasil que, não estando ainda descoberto, se adivinhava já. E todavia nem os tremendos golpes da adversidade lhe quebrantavam o ânimo.

 

Mais ou menos o perseguia, desde o berço, um signo mau de fatalidade. Órfão de mãe aos seis meses, casava sem amor na adolescência com uma prima que o temia e detestava, feria-o na alma, em pleno esplendor da vida a morte do único filho, legítimo herdeiro, carne da sua carne, e seu único consolo de ternura; e finalmente vencido e humilhado na sua desesperada luta e derradeira ambição de legar a gloriosa Coroa a outro herdeiro do seu sangue, o bastardo D. Jorge, nem isso lhe era dado gozar, em prémio do que tão exclusiva e audaciosamente despendera na curta vida de quarenta anos.

 

No que toca ao coração, D. João II caiu de amores por uma senhora da alta nobreza do reino, D. Ana de Mendonça «mui formosa e prazenteira». Os cronistas da época, a partir daqui, mais interessados no comércio e nos Descobrimentos pouca atenção prestam às amásias reais em geral, e aos amores em particular. Alguns cronistas descreveram-no como «um homem mais alto do que baixo, espadaúdo mas bem proporcionado, enxuto de carnes e dextro, de grande força a ponto de cortar de um só golpe quatro tochas juntas; coisa que nunca achou quem fizesse». Aos seus olhos afluía por vezes, muito sangue, o que, nos acessos de ira, lhe davam «um ar mui temeroso». No entanto, dois cronistas, Rui de Pina e Garcia de Resende, também observadores directos e admiradores, não acharam D. João tão formoso assim. Rosto e nariz compridos e este «derribado», o que lhe daria fala nasal. Olhos pretos com as «brancas» raiadas de sangue. Aos 37 anos, cabelo e barba grisalhos. Depois dos 30 começou a engordar, ou a inchar devido à doença, ou à peçonha, de que morreu aos 40 anos e meses. Em 1476, D. Leonor ficou como regente do reino, por D. João II ter de se ausentar em defesa de seu pai em Castela. D. Leonor voltou a ser regente do reino em 1498, já durante o reinado de D. Manuel.

 

 A estranha morte de D. João II, há muito enfermo de «singular padecer», não esteve alheia às artes da rainha. Esmagado de dor, a pouco mais de um ano da sua vitória de Tordesilhas, o incansável batalhador, na tarde de 25 de Outubro de 1495, morria em Alvor, obscura praia do Algarve, onde fora buscar alívio aos padecimentos dum mais que provável envenenamento, em que a própria rainha D. Leonor foi suspeita de cumplicidade. Quando morre D. João II, Portugal está já preparado para viver a época mais gloriosa da sua História. Rui de Pina, Garcia de Resende, Diogo Ortis e Abraão Zacuto foram homens do rei D. João II.

 

Rui de Pina (1440? -1522)

 

Era Rui de Pina natural da cidade da Guarda, onde nasceu em data presumível, filho de um burguês respeitado, Lopo Fernandes de Pina. Notável diplomata e, por copiosa obra de historiografia, um dos grandes cronistas do século, a sua longa vida de octogenário atravessou, desde o seu nascimento na regência de D. Pedro, os reinados de Afonso V, D. João II, D. Manuel e primeiros anos do de D. João III.

 

A plenitude da sua vida e acção política foi, porém, sob D. João II, que o tinha em particular apreço e estima e a quem, por seu turno, o cronista correspondia com sincera admiração e lealdade perfeita. Tendo-se notabilizado sobretudo como historiógrafo, pela vasta obra que deixou exerceu também intensa e valiosa acção diplomática ao serviço de D. João II.

 

Mais ou menos arredado da agitação política dos últimos anos de D. Afonso V, devia ter-se votado durante a mocidade especialmente a cultivar o espírito, pois só aos 42 anos, em 1482, D. João II, grande conhecedor dos homens e seus méritos, lhe confiou o primeiro cargo público, o de secretário da embaixada do barão do Alvito, João Fernandes da Silveira, enviada por duas vezes a Castela em 1482, a primeira para regular questões do ajuste de casamento do príncipe herdeiro D. Afonso com uma das filhas dos Reis Católicos, e a segunda para alteração ao anterior tratado de terçarias de 1479, consequente dessas alianças matrimoniais.

 

Em 1483, nova embaixada a Castela, ainda sobre o mesmo assunto; e, desde então, foi sempre da intimidade do monarca e presente aos seus conselhos de Estado e negociações mais importantes, assistindo ao julgamento e execução do duque de Bragança, em Évora. No ano seguinte, nova embaixada, de maior relevo, ao novo papa Inocêncio VIII, a felicitá-lo pela elevação ao pontificado e a resolver certos atritos com o alto-clero. E foi no regresso que teria iniciado a sua actividade de historiógrafo, por lhe ter D. João II incumbido a crónica do seu reinado. Terá sido, pois, a partir de 1484, aos 44 anos de idade, que inteiramente se consagrou à absorvente actividade de cronista régio, conquanto ainda fosse oficialmente Vasco Fernandes de Lucena o cronista-mor do Reino e guarda-mor da Torre do Tombo.

 

Essa acumulação de cargos não obstou a que, oito anos mais tarde, tivesse voltado a participar de nova embaixada de D. João II aos Reis Católicos, em 1493, depois do regresso de Colombo do seu sensacional descobrimento das Antilhas, para se dirimir o grave pleito de delimitar exactamente os dois hemisférios a ocidente e oriente do meridiano divisório, reservados por bula do papa Alexandre VI aos descobrimentos dos dois Estados Peninsulares e de que resultou o famoso Tratado de Tordesilhas de 1494.

 

Encarregado, na verdade, de escrever as crónicas do Reino, foi-lhe fixada uma tença de 9 000 reais e mais 6 000 reais para mantimentos, mercê a que D. Manuel acrescentaria em 1497 o cargo oficial de cronista-mor do Reino, guarda-mor da Torre do Tombo e da Livraria d’El-Rei. Vários críticos posteriores, sem deixar de prestar justiça à sua inteligência, cultura e clareza de exposição, põem reservas à sua isenção e probidade de historiador, por adulação cortesã e por avidez de benesses e honrarias.

 

A sua posição privilegiada nas cortes de D. João II e D. Manuel, de cujo poder absoluto do monarca, tudo já dependia, garantia-lhe grande prestígio político entre os cortesãos e uma espécie de ditadura literária entre os letrados, a que não era também alheio certo fausto de vida de que se rodeava. Em plena glória, adulado pelos seus contemporâneos, vivendo, como se disse, em grande fausto na corte, veio a falecer com mais de oitenta anos, em meados de 1523, princípios do reinado de D. João III.

 

A seguir: Garcia de Resende

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