O saudoso tempo do fascismo – 28 – por Hélder Costa

E as coisas deram uma volta – I

 

Eram 19 horas, liguei o habitual número de telefone.

Pi – Pi – Pi – Pi – Pi …

Que raio, porque é que o gajo não responde?

– Faz favor, quem fala?

– Quer falar com quem? Quem fala? Quem é você? Desliguei.

Se tudo batesse certo, isto queria dizer que o meu contacto tinha sido preso.

Nem podia ser outra coisa. Três ou quatro anos a fazer aquele telefonema, àquela hora precisa, chamando não importava de que lugar do mundo, ao segundo Pi-Pi ele levantava o auscultador, trocávamos uns monossílabos ou nem isso, e ficávamos descansados.

Desta vez, os espias tinham acertado. Que fazer? Como diria Lenine … não pude deixar de rir ironicamente perante o absurdo que era recordar um guia para a organização revolucionária, quando o que me restava era salvar a pele.

Ser preso, não queria nem me apetecia.

Nunca tinha percebido a posição de um camarada que, tendo sido avisado da sua prisão iminente, tinha preferido entregar-se às mãos da Pide. Arroubo místico? Vocação de mártir? E que luta se fazia na cadeia? Porque é que qualquer preso só pensa em fugir?

– “Fugir já? Não é melhor esperar? Pode ser que ele não fale. Tem calma. Se calhar aPide deu um tiro no escuro e não descobriu nada”.

Depois de duas ou três conversas, fiquei outra vez sozinho com as minhas interrogações. Aliás, com as minhas certezas, que incomodavam alguns camaradas:

– “A nossa posição tem de ser que camarada que vai preso fala sempre. Só assim estamos disponíveis mentalmente para preparar a nossa defesa. Se o camarada não falar, melhor.”

 A minha frente abria-se um caminho totalmente novo, as coisas tinham dado uma volta.

As desilusões começaram a surgir. – “Não, não podes ficar lá em casa, a família desconfia”; “se eu pudesse ajudava … para a próxima, conta comigo; “bem, eu acho que as coisas não estão bem, mas também não tenho as vossas ideias”,

 

afinal estávamos mais isolados do que julgávamos,

calma, todos os movimentos revolucionários começaram assim, olha o Lenine com a “União de Luta ‘; o Mao na China, o Fidel e a Sierra Maestra,

 

E foi então que decidi aproveitar o clima da época, era Verão, o melhor refúgio acabava por ser a praia, e assim juntava o útil ao agradável, até saber mais notícias da Excelentíssima Pide.

 

Um amigo albergou-me, passava o dia à beira-mar, nadando e interrompendo para ler textos de Ma1com X, Luther King e Black Power – além de ser a época do acor¬dar negro nos USA, esse tema era para nós muito importante porque se relaciona¬va directamente com o nosso objectivo imediato que era a luta contra a guerra colonial.

 

 À noite saíamos e visitávamos as pistas de dança, tomávamos uns copos, e olháva-mos para as miúdas. Tudo o mais natural deste mundo, até porque havia sempre a secreta esperança de o preso não ter falado, o que nos fazia dizer o que é preciso é descontracção e estupidez natural pois era, o pior foi quando um amigo me viu na rua eh pá, tu estás aqui, olha a Pide foi ontem a tua casa, cercaram aquilo com 15 gajos de metralhadoras, partiram os teus móveis, levaram tudo, e prenderam um gajo que estava lá a dormir – obrigado, pá – não digas que me viste

 

porra, o gajo filou mas também não era preciso ter filado tanto. Cercarem a casa! Quer dizer que o gajo jà falou dos roubos de armas nos quartéis! Estou lixado.

 

E depois comecei a rir, a pensar no ódio dos Pides quando entraram no meu quarto. Eu tinha preparado um cenário para lhes fizer perder a paciência. Em cima da secretária, um Livro aberto de Mao- Tsé Tõung sobre tácticas de guerra, e em cima do guardafato tinha posto um pacote com a indicação “não mexer “. Dentro do pacote estava um enorme caralho das Caldas, com um Lacinho cor de rosa … coitados, é natural que me tivessem partido a mobília… um grupo de bons rapazes amantes da Pátria e tementes a Deus, católicos, apostólicos, Romanos, com certeza habituados a transportar o andor em Fátima, fUncionários da toda impune, poderosa e terrorífica Polícia de Investigação e Defesa do Estado, a serem gozados por um puto estudante de Direito.’

 

São coisas que acontecem às ditaduras e à canzoada ao seu serviço, são os tais ossos do oficio.

 

 

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