A crise na Europa, a crise em Madrid, a crise de um sistema: olhares sobre Espanha

As comparações homéricas e a dívida pública espanhola, por Edward Hugh – I

 

 

Nihil sapientiae odiosius acumine nimio“ (Nada é mais odioso para a sabedoria do que a esperteza em excesso)

Petrarch, “De Remediis utriusque Fortunae”

 

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

 

Tal como Leo Messi a furar por entre a defesa compacta do Real Madrid, ora fintando para a esquerda, ora para a direita, nunca parando sem ser impedido, também a dívida soberana Espanhola disparou, entrando directamente para a zona vermelha próxima da área de penalty, provocando confusão e consternação entre os estarrecidos responsáveis da UE e as entidades reguladoras, forçados a segui-la com o olhar à medida que ela apontava cegamente para ir aterrar muito para além da linha final autorizada dos 100%.

 

O défice da Espanha tem sido muito noticiado nos últimos dias. Tanto a meta para este ano assim como os detalhes sobre os resultados do ano passado têm sido a fonte de muitos comentários, de muitas análises e de muita consternação, mas o défice em si não será o tema principal deste texto. O que vai estar aqui em causa é a dívida, a dívida pública assim como a trajectória actual da variante espanhola. Num artigo recente no Financial Times Victor Mallet chama a atenção para a situação e mostra como é que uma ênfase excessiva no défice pode levar as pessoas a conclusões erradas quanto ao quadro geral da situação, uma vez que no final do dia os défices são somente interessantes quando eles se acrescem à dívida, e no longo prazo o que importa – como vimos no caso grego – é saber se sim ou não a própria dívida é ela sustentável.


Agora Victor cita-me em dois aspectos: sobre o valor acumulado da dívida, o seu valor global, e sobre a eficácia das instituições espanholas.


“A dívida pública espanhola é já mais de 80 por cento do PIB”, disse Edward Hugh, um economista a viver em Barcelona. “Eu acho que está a ficar mais perto dos 90 por cento”. Hugh também disse que a situação em Espanha não poderia ser comparada com a confusão nas contas públicas da Grécia porque muitos dos dados espanhóis são públicos e disponibilizados pelo Banco de Espanha, ou podem ser deduzidos a partir das fontes oficiais. Mas ele acrescentou que a transparência do governo de centro-direita ao estar a fazer correr o risco de reduzir o espaço de manobra da Espanha pode assim aprofundar ainda mais a crise.


Bem, enquanto é a primeira referência que é controversa e necessita de justificação (e acreditem Victor Mallet pediu-me para ver a justificação para os números apresentados antes de colocar a citação), vamos começar com a segunda referência uma vez que constitui uma parte importante do pano de fundo do problema. Eu acho que é muito importante ter bem presente que a Espanha não é a Grécia, no sentido importante de que as pessoas encarregadas de o sublinhar têm normalmente conhecimento de que como é que as coisas se estão a passar. Eles têm auditores e inspectores, cujo trabalho é conhecer a realidade espanhola e eles fazem o seu trabalho. Assim, o Banco de Espanha sabe praticamente tudo que há para saber sobre todos e sobre cada um dos muitos bancos da Espanha e das Caixas de Poupança, sobre o estado das suas contas, sobre o nível de créditos de má qualidade, etc., etc. Naturalmente, saber o que eles fazem é uma coisa e o que eles sobre isso nos dizem é uma outra questão.


Da mesma forma para o caso da Administração Pública, os auditores e os controladores estão no lugar constantemente a medir e a acompanhar a execução do orçamento anual em todos os níveis mas, de novo, o que eles sabem é muitas vezes uma coisa, e o que realmente dizem publicamente é uma outra coisa. Quando os reguladores do Banco da Espanha se tornam preocupados sobre casos específicos eles tentam fazer o seu melhor para manterem um ar de coragem e manter a confiança enquanto procuram encontrar soluções algures, em lugares para alá da cortina. Da mesma forma com a Administração Pública, embora neste último caso também pode haver razões políticas que permitam continuar a aumentar a despesa ou até mesmo a incentivá-la.

 

Deixem-me dar outro exemplo, de uma área fora do sistema financeiro e para além do domínio das finanças públicas: as estatísticas sobre migração. Entre 2000 e 2008 cerca de 6 milhões de imigrantes chegaram a Espanha atraídos pelas perspectivas de trabalho na então economia em expansão (habitação).

 

 

 

Sabemos com algum grau de precisão o número de tais migrantes presentes (embora não autorizados a estarem) em Espanha, devido à existência de um sistema conhecido como o Padron Municipal (ou Registo Municipal), que é gerido por meio de uma base de dados electrónica.  Assim,  sabemos quantos migrantes se registam, mas como é que nós sabemos que os imigrantes  se registam sempre? Bem, esta é a parte  “tipicamente espanhola”, dado que  foi criada uma possibilidade de circular, nada inocente:  todas as pessoas presentes em Espanha têm livremente direito aos cuidados de saúde no serviço público de saúde mas, para ter um boletim de saúde é necessário estar registado no Padron Municipal. Além disso, o registo aumenta as possibilidades de regularizar a  situação mais tarde, de modo que a primeira coisa que virtualmente cada migrante deve fazer é ir registar-se. Vê-se assim de que forma a administração central tem todos os dados em mãos.

 

 

(Continua)

 

 

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