19 de Abril de 1506 – faz hoje 506 anos – por Carlos Loures

 

Damião de Góis na «Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória», descreve assim o que se passou nesse Domingo de Pascoela

 

No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um crucifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, o que imprimiu tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naus, que então vieram da Holanda, Zelândia, e outras partes, ali homens da terra, da mesma condição, e pouca qualidade, que juntos mais de quinhentos, começaram a matar todos os cristãos-novos que achavam pelas ruas, …tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes. …tornaram terça-feira este danados homens a prosseguir a sua crueza, mas não tanto quanto nos outros dias porque já não achavam quem matar, pois todos os cristãos-novos que escaparam desta tamanha fúria, serem postos a salvo por pessoas honradas, e piedosas que nisto trabalharam tudo o que neles foi.

 

 

 

 

Não será por acaso que, pelo menos até há pouco tempo, a historiografia portuguesa, nomeadamente os compêndios escolares de História, não escamoteando completamente os factos, não lhes davam relevo. No entanto, o que se passou em Lisboa naquele Domingo de 1506 foi muito grave. Os frades dominicanos de que nos fala Damião, terão incitado a populaça a matar quantos judeus pudesse – quem participasse na matança veria absolvidos todos os pecados dos últimos cem dias. Segundo eles, as heresias dos judeus é que haviam provocado o flagelo da seca e da peste.

 

D. Manuel que ia a caminho de Beja, foi avisado do que estava a acontecer e procurou travar a chacina. No entanto, os magistrados e meirinhos que tentaram opor-se tiveram de fugir, pois passaram a ser alvo dos bandos de facínoras que praticavam os horrores que o cronista descreveu – assassínios em massa, de homens, mulheres e crianças, violações e, como é óbvio, roubos. Aproveitou-se para ajustar contas pessoais e alguns cristãos-velhos foram também mortos – bastava alguém afirmar que se tratava de um judeu. Quando a identidade era estabelecida já nada havia a fazer – aquilo a que hoje se chama danos colaterais

 

Na terça-feira , dia 21, as tropas reais entrando na cidade conseguiram isolar a turba assassina. A ordem foi reposta. O número de mortos varia segundo os cálculos – entre o meio milhar e os seis mil. Os criminosos foram punidos de forma muito severa. Os cabecilhas executados e os bens de todos os participantes, confiscados. Os dominicanos que haviam incitado ao crime foram enforcados. Segundo parece, o convento de São Domingos foi encerrado por oito anos. A negligência dos representantes de Lisboa no Conselho da Coroa, não foi esquecida – foram expulsos – na realidade tinham pactuado com os crimes e só as tropas vindas do exterior da cidade haviam conseguido pôr termo à rebelião.

 

Não é correcto analisar factos ocorridos há cinco séculos à luz dos conceitos actuais. O rei D. Manuel era presa da sua circunstância, de pressões que lhe vinham da esposa castelhana e de conselheiros, da sua educação, da pressão dos súbditos… Procurou seguir uma política correcta relativamente à comunidade hebraica, mas as coisas são como são e, em geral, o próprio comportamento dos judeus não terá sido o mais aconselhável, pois o elitismo, a prática da usura, não cessaram de isolar a comunidade e de a tornar antipática aos olhos da população em geral. Antipática e vulnerável. O comportamento das comunidades judaicas é um elemento a levar em conta e que geralmente é branqueado. E, como diz, Eduardo Galeano, as perseguições, progromes, holocaustos, têm vindo a ser lançados a crédito do Estado de Israel, que comete crimes hediondos contra os palestianos – estes estão a pagar por crimes como os de Lisboa, como os da Rússia ou como os de Auschwitz.

 

Entre as medidas tomadas estava a que proibia os casamentos entre membros da comunidade, procurando desse modo que, no espaço de poucas gerações, o problema hebraico se extinguisse. Era uma medida bem intencionada, mas que não funcionou. Tentando travar a fuga de judeus, determinou que os bens dos que saíam do reino fossem confiscados. Enfim, em pleno século XX, na Alemanha de Hitler, fez-se bem pior. Os motivos eram os mesmos – a dimensão da «solução» é que foi diferente. Mas o terreno, em termos de anti-judaísmo, era fértil.

 

Em 1540, D. João III, fanático e intolerante promoveu em 1540 a instalação em Portugal do Tribunal do Santo Ofício. Durante quase três séculos (até 1821) funcionou como polícia religiosa e, sobretudo, política ao serviço de uma Igreja acossada pelos ventos reformistas e, por isso, acentuando a sua vertente retrógrada. A nata de intelectuais portugueses era maioritariamente constituída por judeus – a fuga a que as perseguições deram lugar, amputaram seriamente a cultura portuguesa.

 

19 de Abril de 1506 – um dia negro.

 

 

 

 

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