De regresso a Madrid –VI, por António Gomes Marques

Um Café na Internet 

 

 

 

 

 

 

 

 

 (continuação)

 

Não resisto à tentação de referenciar que Lenine, na constituição do seu Governo, chamou para a reorganização da cultura um menchevique, portanto, um seu adversário político, ou seja, Lenine deu preferência à competência e Lunacharski era competente, demonstrando-o na sua acção. Seguiu também a prática do líder do país ao chamar Chagall, artista que Lunacharski bem conhecia, sobre quem e sobre a sua obra de então já havia escrito, aquando da sua passagem por Paris.

 

Enquanto o Estado organiza a «Primeira Exposição Oficial de Arte Revolucionária», no Palácio de Inverno, que expõe 24 obras de Chagall, inaugurada na Primavera de 1919, Vitebsk contava, desde o início deste ano, com um museu e uma escola de arte graças a Chagall.

 

O Estado vai-lhe comprando algumas obras, 20 nos três primeiros anos da revolução. Entretanto, o ambiente na escola de Vitebsk radicaliza-se e Chagall decide abandonar a sua terra natal e instalar-se em Moscovo, em 1920. Aqui vai colaborar com o Teatro de Arte Judeu; passa o ano de 1921 na colónia de órfãos de guerra judeus, em Malakhovka, mas as duras condições de vida levam-no a regressar a Moscovo. No ano seguinte, com a ajuda de Lunacharski, nomeadamente, muda-se para Berlim, levando o espólio artístico que detém, com a desculpa de que o vai expor naquela cidade.

 

Já com Bella e Ida na sua companhia, muda-se para Paris em 1923. Vivia com grandes dificuldades, embora fosse já reconhecido como um dos expoentes do expressionismo e um dos precursores do surrealismo.

 

Ambroise Vollard, editor e comerciante de arte, interessa-se pela sua obra e convida-o, primeiro para ilustrar «As Almas Mortas», de Gogol, e depois «As Fábulas», de La Fontaine, em que trabalha durante vários anos (editadas apenas em 1952), tendo, entretanto, realizado a sua primeira retrospectiva em Paris (1924). Segue-se a primeira exposição individual em Nova Iorque (1926-27). 

 

 

 

 Solidão (1933) óleo sobre tela 102 x 169 – oferta do pintor ao Museu de Telavive

 

A década de 1930-40 é riquíssima na vida de Chagall: recebe mais um convite de Vollard, as ilustrações para uma edição da Bíblia; publica a sua autobiografia, «A Minha Vida»; viaja para Telavive, acompanhado da família, para assistir à inauguração do Museu de Arte, onde pode ver-se «Solidão», de Chagall, que o pintor ofereceu; aproveita para estudar as paisagens da Palestina, Síria e Egipto (para as ilustrações encomendadas).

 

Realiza outras viagens: Holanda, onde vê Rembrandt pela primeira vez; Espanha, onde se impressiona com El Greco; Varsóvia, onde se consciencializa da ameaça para o povo judeu. Entretanto, organiza-se em Basileia uma retrospectiva da sua obra. Em 1937 naturaliza-se francês e viaja até Florença. Ganha o prémio Carnegie e, iniciada a II Guerra Mundial, muda-se para o Loire e depois para Gordes, afastando-se assim da zona ocupada pelos nazis.

 

Em 1941 tem de partir para Marselha, seguindo, com passagem por Lisboa como muitos outros judeus, para Nova Iorque, aonde chega no dia em que os nazis invadem a Rússia (23 de Junho desse ano). Na América, trabalha em cenografia para bailados, sofrendo com o que vai acontecendo na Europa em guerra.

 

 

Em 1944 morre Bella, levando à inactividade de Chagall por vários meses. No ano seguinte, retoma a sua actividade normal, volta à pintura e à concepção de cenários para bailados para a Metropolitan Opera («Ave de Fogo», de Stravinsky). Em 1945, Virginia McNeil, uma assistente que a sua filha Ida tinha contratado, torna-se companheira do artista.

 

Em Agosto de 1948 regressa a Paris, também na companhia de Virginia, mas tendo, entretanto, grande actividade: retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e em Chicago; litografias para «As Mil e Uma Noites» (1946); exposições em Paris, Amesterdão e Londres (1947). Já em França, recebe o primeiro prémio de grafismo da Bienal de Veneza e, em 1949, executa as pinturas murais para o Watergate Theatre de Londres.

 

Em 1950 realiza as suas primeiras cerâmicas, já residindo em Vence, perto de Henri Matisse, vindo a ter um estúdio junto ao de Picasso. Desta fase, para os interessados nestas curiosidades, vale a pena referir as memórias do seu filho David McNeil, nomeadamente esta passagem deliciosa: «uma menina passava uma e outra vez diante do estúdio onde ‘trabalhávamos’ (…) o papá pediu-me que fizesse o mesmo no outro estúdio: ”Diz-me o que está produzindo” ou “Que material utiliza?” A menina (Paloma Picasso) e eu éramos espiões de dois dos criadores mais importantes deste século.»

 

Este filho de Chagall merece uma chamada de atenção a quem não o conhecer: é autor e intérprete de canções, compositor e romancista. A sua mãe trocou Chagall por um fotógrafo belga, tendo ido viver para a Bélgica, o que o privou de conviver com o pai como gostaria. Já adulto escreveu uma canção de amor dedicada ao seu pai, “Quelques pas dans les pas d’un ange“, na qual exprime a falta que sentiu do afecto de um pai que apenas verá nas férias grandes. Escreveu canções para alguns dos maiores cantores, como Alain Souchon, Jacques Dutronc, Yves Montand, Sacha Distel, Sylvie Vartan, Laurent Voulzy, Carole Laure, Philippe Lavil e, sobretudo, para Julien Clerc, entre outros.

 

Mas voltemos a Chagall e à década de 50 do século passado: viagem a Jerusalém para inaugurar uma exposição com obras suas; executa as primeiras esculturas; expõe em Turim; volta à Grécia; exposições em Hanover, Basileia e Berna; viagem a Haifa (inauguração da Casa Chagall); publica-se a Bíblia com as suas ilustrações; trabalha de novo em cenários, desta vez para o bailado «Dafne e Cloe», de Ravel, para a Ópera de Paris; trabalha para os vitrais da Catedral de Metz; mais exposições em Paris, Munique e Hamburgo. Entretanto, casa com Valentina Brodsky, em 12 de Julho de 1952, depois de, no início do ano, se ter separado de Virginia e de Ida se ter casado com o historiador de arte Franz Meyer, o qual vai publicar uma monografia sobre a vida e a obra de Chagall.

 

As décadas seguintes, até à sua morte em 28 de Março de 1985, na sua nova vivenda em Saint-Paul-de-Vence, onde passou a residir em 1966, são de intensa actividade, quer como criador, quer como viajante, sucedendo-se as retrospectivas da sua obra e novas exposições pelo Mundo, para além do reconhecimento mundial dessa mesma obra, tornando-se (1962) cidadão honorário de Vence e oficial da Legião de Honra (1965). Vejamos:

 

– Recebe o Prémio Erasmus, juntamente com Kokoschka, em Copenhaga, e termina a Janela para a Sinagoga do Hospital Universitário de Hadassah, em Jerusalém, em 1960; dois anos depois, viaja para Jerusalém, onde assiste à inauguração dos vitrais, termina as janelas para a Catedral de Metz e torna-se cidadão honorário de Vence; viagem a Washington e retrospectivas da obra em Tóquio e Quioto, no ano de 1963; nova viagem a Nova Iorque, vitrais para o edifício das Nações Unidas, e conclusão das pinturas murais para o tecto da Ópera de Paris, a convite do seu amigo André Malraux, então Ministro da Cultura de França, em 1964; o ano seguinte é ocupado com as pinturas murais em Tóquio e em Telavive, inicia as pinturas para o Metropolitan Opera e para o Lincoln Centre (Nova Iorque) e também para os cenários de «A Flauta Mágica», de Mozart; cria os mosaicos e doze quadros para o novo Parlamento de Jerusalém; volta a Nova Iorque para a inauguração das pinturas no Lincoln Centre e termina «Êxodo» e «A Guerra». Em 1967 assiste, em Nova Iorque, à estreia de «A Flauta Mágica» e comemora-se o seu 80.º aniversário com retrospectivas da sua obra em Zurique e em Colónia; produzindo, ainda neste ano, três esboços de tapeçarias para o Parlamento de Jerusalém, que inaugura no ano seguinte, voltando a Jerusalém; tendo sido nesta década, 1965, que o barão Thyssen-Bornemisza compra a primeira obra de Chagall, «A Virgem da aldeia»; em 1969 acontece a exposição intitulada «Hommage a Chagall», no Grand Palais de Paris, reunindo 474 obras do pintor, vivendo Chagall o momento com grande emoção: «Como sempre, estou ‘nervoso’. Esta é a primeira vez que um Governo organiza uma exposição assim (de um judeu)…».

 

 Vitral na Igreja de Santo Estevão

 

A década de 70 não é de menor actividade, os acontecimentos relevantes continuam: inauguração dos vitrais no Frauenmünster de Zurique; dá início ao mosaico para o First National Bank de Chicago; a convite da Ministra russa  da Cultura, aonde não havia voltado desde que saiu em 1922, encontrando-se com duas das suas irmãs, viagem a Moscovo e a Leninegrado (agora, São Petersburgo) e inauguração do Musée National Message Biblique Marc Chagall, em Nice; inauguração das janelas na Catedral de Reims, nova viagem à Rússia e a Chicago, esta para inauguração do mosaico; exposição de trabalhos em papel em Chicago e exposição itinerante em cinco cidades japonesas, pinta «A Queda de Ícaro»; é condecorado com a Grande Cruz da Legião de Honra pelo Presidente da República de França, visita Itália e Israel, dá início às janelas para a Igreja de Santo Estevão, em Mainz.

 

Façamos aqui uma indispensável alusão ao belíssimo museu que a cidade de Mainz ao seu filho Gutenberg dedica, onde pudemos ver há uns anos, nomeadamente, a célebre Bíblia de Gutenberg. Trata-se do incunábulo (=primeiros tempos da imprensa) impresso da Bíblia, por Johann Gutenberg, da tradução em latim. Essa impressão terá começado em 1450 e terminado em 1455, na qual Gutenberg utilizou uma prensa de tipos móveis, tendo, a edição completa, 1282 páginas. A título de curiosidade, lembramos que foi ali que adquirimos o célebre «Mini Wilhelm Pieck» (W. Pieck foi o primeiro Presidente da ex-RDA), uma verdadeira miniatura de um livro.

 

Mas voltemos a Chagall, para não se dizer que «as conversas são como as cerejas».

 

Em 1981 partilha o prémio Wolf «para promover a ciência e a arte em benefício da humanidade» com Antoni Tàpies; expõe trabalhos gráficos em Hanover, Paris e Zurique; retrospectiva no Moderna Museet de Estocolmo e no Louisiana Museum, em Hamlebaek, na Dinamarca. Em 1984 acontecem grandes retrospectivas da sua obra em Paris, no Centre Pompidou, em Nice, Saint-Paul-de-Vence, Roma e Basileia. No ano seguinte, outras grandes retrospectivas na Royal Academy of Arts, em Londres e no Philadelphia Museum of Art, acontecendo de seguida a sua morte na data já referida, mas o ano não termina sem que, dos trabalhos sobre papel, se organizam retrospectivas em Hanover, Chicago e Zurique.

 

De Marc Chagall vimos o primeiro quadro, «Nocturno», óleo sobre madeira, 90 x 73, em 1965, na exposição organizada em Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian, «Um Século de Pintura Francesa 1850/1950», seguindo-se, na companhia da Helena/Carlos Loures e Célia, os vitrais na igreja da Abadia de Fraumünster, em Zurique, Suíça, criados pelo artista em 1970. Lembramo-nos também de ver um Chagall neste mesmo Museu Thyssen-Bornemisza, acima referida, na década de 90 do século passado, se a memória não me falha. Mas agora ficámos com uma outra visão do que é realmente a sua monumental obra pictórica, assim como uma pequena demonstração da alta qualidade da sua escultura.

 

A exposição agora vista em Madrid, veio confirmar as impressões colhidas nos vários livros que fomos vendo ao longo dos anos, nomeadamente a pequena edição da Taschen para o Jornal Público, de 2004, de que também nos servimos para recolha de dados biográficos (referimos esta edição pelo seu preço muito acessível, mas outras há que podem ser adquiridas em Portugal), impressões essas que se relacionam com o considerar-se Chagall «o mestre da cor e da mensagem bíblica». Vemos também a importância que tem em toda a sua obra não só o facto de ser judeu, onde os horrores do holocausto estão bem presentes e de que o reproduzido quadro «Solidão» é um exemplo paradigmático, mas também os dados autobiográficos, onde a sua identificação com a terra natal se vê claramente, na demonstração prodigiosa da sua imaginação. A sua obra está cheia de símbolos presentes na sua cultura judaica profundamente russa. Soube também transformar com originalidade as muitas influências dos mestres da pintura, nomeadamente da clara presença inicial do Cubismo.

 

 

(continua)

 

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