Antero de Quental e as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (I) – Augusta Clara

 

 

Augusta Clara  Antero de Quental e as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares (I)

 

 

(evocando a data do nascimento de Antero de Quental – 18 de abril de 1842 – voltamos a apresentar um texto publicado no Estrolabio em 16 de Novembro de 2010)

 

 

 

 

   O que pretendeu Antero de Quental com o seu discurso proferido no dia 27 de Maio de 1871, na 1ª. Sessão das Conferências Democráticas, realizadas no Casino Lisbonense? Nada mais, nada menos do que explicar o atraso registado pelos dois países da Península Ibérica, Portugal e Espanha, desde o século XVII. Numa altura em que não só Portugal e Espanha, mas toda a Europa vive uma crise profunda dos seus valores e o projecto político e cultural da União Europeia cada vez se nos afigura mais adulterado, faz sentido relembrarmos essas causas de decadência que Antero apontou no século XIX e reflectir como certos atavismos podem infiltrar-se no tempo e corroer realidades aparentemente bastante diferentes.

 

 

 

 

Desenho de Raquel Santos – “As Conferências do Casino”

 

A confirmar esta suspeita, respiguemos algumas frases do Programa das Conferências Democráticas:

 

“Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como deve regenerar-se a organização social. (…) investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; (…) e, por serem elas as formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século.

Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações.

(…) Posto isto, pedimos o concurso de todos os partidos, de todas as escolas, de todas aquelas pessoas que, ainda que não partilhem das nossas opiniões, não recusam a sua atenção aos que pretendem ter uma acção – embora mínima – nos destinos do seu país, expondo pública mas serenamente as suas convicções e o resultado dos seus estudos e trabalhos.”

 

A conferência de Antero de Quental, dentro do programa das Conferências Democráticas, só nos pode servir hoje de grande inspiração para as reflexões que temos de fazer sobre a sociedade portuguesa.

 

Antero apresentava três causas principais para essa decadência:

• A submissão da igreja católica portuguesa ao poder de Roma, integrada na Contra-Reforma, de acordo com as decisões do concílio de Trento;

 

Embora não fosse este ponto o que me interessasse particularmente referir, não posso deixar de o fazer porque Antero de Quental desenvolveu substancialmente as mudanças por que passou a mentalidade religiosa na Península e as consequências que essas mudanças tiveram em todos os outros domínios da sociedade.

 

A submissão das igrejas locais à Igreja de Roma trouxe consequências catastróficas, entre as quais se realça a perseguição aos judeus e aos árabes que, embora muito na sombra, como afirma Antero, viviam como “raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções de uma calamidade nacional”.

 

Simultaneamente acentuou-se a degradação dos costumes com a substituição da aceitação do dogma religioso, geradora do sentimento do dever que nessa aceitação se baseava, pela sua imposição. 

 

Nos países que cresciam “a liberdade moral, conquistada” provocou o “resultado imenso e capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram”. O seu desenvolvimento a níveis elevados não tinha sido previsto por Lutero nem pelos seus correligionários.

 

Muitos representantes das igrejas nacionais dos países latinos lutaram por uma reforma sincera, chegando a desejar uma conciliação com os protestantes.

 

Destacavam-se três pontos fundamentais nessa reivindicação:

 

“1º. – Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais, inauguração dum parlamentarismo religioso pela convocação amiudada de concílios, esses estados gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos do mundo espiritual;

2º. – O casamento para os padres, isto é, a secularização progressiva do clero, a volta às leis da humanidade duma classe votada durante quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século XVI absurdo, perigoso, desmoralizador;

3º. – Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento.”

 

Mas a Igreja de Roma não cedeu, preferiu reforçar a ortodoxia e, iludindo a luta por estas reformas, convocou um concílio, sim…o de Trento que – “Estamos em Itália, meus senhores, no país de Machiavell!”, diria Antero – “Dum instrumento de paz e progresso faz uma arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador e fá-lo convergir em proveito do ultramontanismo”.

 

 

Como o fez, escuso-me de pormenorizar aqui, mas garanto que vale a pena espreitar a descrição de Antero de Quental. A reforma estava perdida, “o concílio só serviu contra ela para a sofismar e anular”.

 

Ontem como hoje, e em qualquer sector da sociedade, aí está em evidência o mecanismo de recuperação pelos poderes instituídos de todas as ideias de mudança que lhes ameacem o domínio.

 

 

Não é ilegítimo associar a esta tirania a dissolução de costumes a que se assiste dentro da igreja católica dos nossos dias, com os escândalos ligados a questões financeiras ocorridas com capitais movimentados por instâncias do Vaticano e esse inominável crime que constitui a pedofilia no qual se encontram envolvidos padres e altos elementos do clero de vários países.

 

Bem apontava Antero a dissolução dos costumes. Aí está ela, a sua evidência não engana ninguém.

(Continua)

 

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