O mundo do trabalho no capitalismo moderno, na economia financeirizada
Hoje, dia 1 de Maio, o Pingo-Doce, a que não deixará de estar ligado António Barreto, tenta comprar a consciência de quem vive em dificuldade oferecendo cinquenta por cento de desconto imediato nas compras se feitas neste dia, hoje, no dia do Trabalhador!
Para este dia,umas nota simples.Um trabalhador suicidou-se, imolou-se em França.
Drama profundo, é certo, mas que a imprensa podia colocar ou tratar como um fait-divers, como o faz muitas vezes. Mas este suicídio segue-se a outros 17 suicídios mais, em 2010, e estes sucedem-se também a outros 35 mais, nos anos anteriores, e na mesma empresa, a France Télécom, o quarto operador a mundial no mundo das telecomunicações. Em paralelo e mudando de ramo mas dentro do mesmo tema, leio os jornais sobre a Renault e encontro a mesma realidade e agora no centro de excelência desta empresa, no seu polo Technocentre de Guyancourt. Por detrás de tudo isto, estava um engenheiro, e depois outros, de alto gabarito, A. de B. seu nome, estava o facto de se ter investido pessoalmente com grande intensidade no projecto de um carro derivado do Logan, num programa de formação que deveria ser feito no Brasil, a que ele consagrava parte dos seus próprios fins-de-semana e dos serões de família, por detrás de tudo isto estava o ritmo de trabalho muito intenso exigido de forma continuada nesta empresa, sem direito quase a fins-de-semana verdadeiramente livres e em que factor agravante o “Contrato Renault 2009”, tinha imposto em toda a empresa objectivos elevados em matéria de vendas e de rentabilidade. Factos comprovados e confirmados em tribunal (Maio de 2011) foi considerado um acidente em trabalho.
Ontem acedi, como faço normalmente, ao site do New York Times e deparo-me com um artigo brutal sobre as montagens financeiras da Apple, a primeira empresa mundial no seu sector. A partir deste artigo pode-se afirmar: “O New York Times cita um estudo realizado por Martin A. Salivam, antigo economista-chefe do Departamento do Tesouro, que estima que o valor dos impostos federais pagos pela Apple poderia ter sido mais elevado e no montante adicional de 2,4 mil milhões de dólares só no ano passado.
O jornal diz que a Apple pagou globalmente 3,3 mil milhões em impostos sobre os 34,2 mil milhões de lucros no ano passado. Isso representa uma taxa de 9,8%.
Num comunicado de resposta, a Apple disse ao Times que cumpriu com todas as leis e regras contabilísticas, e diz que as suas operações nos EUA geraram aproximadamente 5 mil milhões em impostos federais e estaduais no primeiro semestre do ano fiscal de 2012.
Os analistas de Wall Street prevêem que a Apple pode ganhar cerca de 46,9 mil milhões no actual ano fiscal, de acordo com a FactSet.”
Mas a Apple reenvia-nos obrigatoriamente para um dos seus mais importantes fornecedores, em regime de subcontratação, a empresa Foxconn, uma das maiores empresas fabris mundiais, com globalmente mais de um milhão de trabalhadores, a trabalhar quase que exclusivamente para o Ocidente desindustrializado, e por isso mesmo, mas apenas com margens brutas de lucro na ordem apenas dos 4 a 5 por cento. E esse exemplo, era uma das fábricas Foxconn.
Neste caso lembro-me também das remunerações auferidas (será este o termo?) pelo seu actual Presidente. Tim Cook, que rondaram os 378 milhões de dólares no ano de 2011 (e não há engano nestes valores), lembro-me das acções da Apple a subirem 70 por cento deste Agosto último e face a todos estes números acima que alimentam também os nossos investidores, lembro-me do movimento inverso que faziam jovens chineses, trabalhadores da Foxconn a atirarem-se pelas janelas para baixo, suicidando-se.
Suicídios de um lado e do outro. Cremos mesmo que os suicídios de um lado e do outro correspondem às duas faces da mesma moeda, são o resultado da violência do capitalismo moderno onde todos os mecanismos de pressão e de exploração estão disponíveis e utilizáveis, onde a rentabilidade máxima e de curto prazo domina sobre todos os outros objectivos possíveis ou desejáveis, e em que a Ocidente se dispõe de técnicas ultra-refinadas de manipulação, como a gestão da crise o mostra à evidência, e a Oriente se dispõe da força brutal que a falta de democracia lhes pode conferir, sendo agora certo que quer a Ocidente e a Oriente, de um lado e de outro, surge ainda a precariedade como elemento comum a ambos, como arma quase absoluta de manipulação e, sobretudo, de contenção das lutas dos trabalhadores. Não é por acaso que se dão os suicídios em série na France Télécom, na Renault e noutras grandes empresas e não é por acaso que eles se dão igualmente na China.
Mas a luta de classes não pode ser isto, mesmo, que transitoriamente possa estar a ser isto e é nesta distância que se pode compreender o longo trabalho que pelos sindicatos haverá agora a percorrer, o que na linguagem de Marx poderíamos dizer que este trabalho sindical se insere na longa e dura passagem do em-si da classe operária à enorme força do para-se que a mesma classe terá que assumir face à sofisticação dos mecanismos de pressão pelos Estados modernos agora exercidos.
Mas é melhor encararmos a situação na óptica que nos propõe Jean de Maillard, num recente livro sobre a civilização neoliberal, que passamos a acompanhar de muito perto:
Se seguimos Schumpeter sobre a sua concepção de empresário, que este descreve como um inovador no interior de um mercado em desequilíbrio constante – concepção que se aproxima dos neoliberais – daqui resulta que o trabalhador pode e está a ser, por seu lado, assumido como empresário dele próprio, na espiral da destruição criadora que Schumpeter tão bem descreve e na qual ele via a essência do progresso económico. Como na empresa schumpeteriana, o trabalhador da época neoliberal passa de uma crise a outra e a crise é aqui o estado “natural”, sinónimo de criação e de inovação, passa de uma empresa a outra, passa de uma profissão a outra. Esta é a situação de precariedade, hoje. Como o afirmava Schumpeter, a crise então não pode ser vista como um acidente de percurso, esta torna-se o paradigma económico que se aplica ao próprio trabalhador. Na economia neoliberal em que há uma forte competição de cada um trabalhador contra todos os outros, nada disto é chocante, antes pelo contrário, não há razão nenhuma para que o trabalhador, tornado empresário de si-próprio, venha a escapar aos saudáveis mecanismos da concorrência. Mas aqui, Maillard é claro: podemo-nos simplesmente interrogar se, neste caso, o que Schumpeter chamava de destruição criadora não é sobretudo, vivida pelos trabalhadores como uma criação destruidora. Se a aceita, pode tornar-se um vencedor, se a recusa, sai do mercado de trabalho ou nem sequer entra nele e se não a aguenta, bem, aqui temos um problema, transforma-se em alguém que se suicida, aqui, na Europa, na France Télécom, na Renault, na China, na Foxconn ou algures, também, pois as possibilidades lamentavelmente são cada vez em maior número.
Acompanhemos ainda de muito perto Jean de Maillard. O trabalhador da economia neoliberal é obrigado de facto à inovação e à renovação permanente de si próprio: este tem que constantemente se reinventar se quer continuar a estar competitivo no mercado de trabalho. O jogo da concorrência no qual entra contra todos os outros incide sobre a aquisição de qualidades pessoais que o distinguem sucessivamente de todos os outros para que em cada situação venha a ser preferido aos seus concorrentes. No quadro do actual sistema, como o assinala o autor citado, na empresa, o trabalhador, ele próprio tornado empresário que negociou com a empresa um contrato individual a partir do qual para a empresa é apenas um colaborador, a relação de trabalho deixou de criar a relação social que o caracterizava outrora como elemento de uma classe enquanto agora nem sequer o reconhecimento das suas qualidades tem uma carga social, de mérito colectivamente reconhecido, porque este tem uma só métrica e esta é o preço que lhe é pago. A dimensão do trabalho e do trabalhador é assim ordenada, catalogada, com outros por esta via quantificada e com os outros depois confrontados. A ideia de que o homem no trabalho está inserido num colectivo humano deixou de ter sentido e é este o sentido da gestão de pessoal de France Télécom, por exemplo, onde os indivíduos se tornam perfeitas abstracções para a empresa que os usa, espécies de sujeitos-robots que devem poder adaptar-se às exigências dos serviços sem o menor ressentimento pois que são vistos pelo empregador como empresas individuais e não como trabalhadores de carne e osso.
E aqui acrescenta o autor a conclusão lógica: se não são considerados trabalhadores de carne e osso mas empresas individuais, então, se não são mais do que isso, a empresa empregadora nem sequer é responsável da preservação destes. E é o que se tem estado a passar e é neste quadro de análise que deve ser colocada a questão dos suicídios do trabalho na sociedade, uma consequência, diremos, lógica do próprio sistema quando neste sistema se atinge a pressão máxima na fragilização da condição de assalariado ou de precariato, o que é agora expressão mais rigorosa a utilizar. E é o que está acontecer, em França e algures e quando estes níveis de pressão não estão atingidos são então as pressões globais que se fazem sentir, dos governos, do FMI, da União Europeia, da OCDE, e outras organizações, cujo desprezo pela democracia tem sido mais que evidente nesta não gestão da crise e nas políticas de austeridade sucessivamente impostas. O que se está a passar aqui, em Portugal, em Espanha ou num qualquer outro país da zona euro, esteja-se sob pressão imediata dos mercados financeiros ou não se esteja, mostra que assim é, que são pacotes de medidas sobre medidas de austeridade, com grande parte delas centradas na flexibilidade dos mercados de trabalho, no desprezo também pelas condições de vida e pela dignidade de quem vive do trabalho, de quem vive em dificuldade. Um simples exemplo: hoje, dia 1 de Maio, o Pingo-Doce, a que não deixará de estar ligado António Barreto, tenta comprar a consciência de quem vive em dificuldade oferecendo cinquenta por cento de desconto imediato nas compras se feitas neste dia, hoje, no dia do Trabalhador!
Vidas completamente absorvidas, vidas queimadas, na China, queimadas em França, na Télécom, na Renault ou noutra grande multinacional, esta é a consequência do modelo escolhido e disso todos temos que ter consciência. A luta de classes não pode ser isto. Ainda de acordo com o mesmo texto: “Se os comportamentos do passado podem dar alguma indicação para o futuro, então poderemos esperar mais vagas, mais ondas de mal-estar e de protesto feitas pelos trabalhadores (do tipo das descritas por Marx) na indústria e a ocorrerem nas regiões que foram sujeitas a uma mais rápida industrialização e proletarização”.
Não, a luta de classes não pode ser isto. Como assinala Jeremy Grantham, director de um dos maiores fundos de investimento americano: “Karl Marx focou insistentemente a questão da tendência do capitalismo em se fixar no crescimento económico de tal forma que levaria o capitalismo a esquecer-se de transmitir uma imagem amigável à sociedade e a forçar claramente e brutalmente o seu domínio sobre o trabalho. Ironicamente, de certa maneira, Marx e Engels acalentavam esperanças na globalização e nas empresas multinacionais porque, segundo defendiam, tornaria o capitalismo ainda mais poderoso, a passar dos limites, e, eventualmente, imprudente. Seria, segundo proclamavam, uma maneira de dar aos capitalistas um pouco mais de corda para se enforcarem, ou melhor, para se enforcarem a si próprios na revolução dos trabalhadores. A corda para essa missão, sugeriam eles com algum humor negro, seria comprada a capitalistas de alta estirpe competitiva, sempre gulosos por um bom negócio. Bem, o tempo vai passando e vai ser difícil ter uma revolução de trabalhadores sem trabalhadores. Não será fácil organizar máquinas-ferramentas robotizadas. No entanto, Marx e Engels, têm certamente razão sobre o aspecto de a globalização e as empresas multinacionais reforçarem o poder do capital a expensas do trabalho. Para contrariar a visão apocalíptica de Marx, é preciso um papel moderador de poderes públicos esclarecidos (mesmo que fossem apenas um pouco esclarecidos seria já encorajador) para moderar esta nova e terrível força destruidora que representa o descontrolo da actual globalização (globalized Juggernaut) antes que o capitalismo se torne tão autista que venhamos a ter uma reacção social bem grave.” É tempo de nos movimentarmos a apertar a corda de que a que se refere o texto, é tempo de conquistarmos a liberdade de trabalhar, em suma, de cada um de nós cidadão poder ser.
Júlio Marques Mota, Coimbra, 1 de Maio de 2012.