Um funcionário – conto de Vicente Blasco Ibáñez – (tradução de António Gomes Marques) – I

Um café na Internet

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estendido de costas no beliche e seguindo com olhar vago as fendas do tecto, o jornalista Juan Yáñez, único hóspede da «sala de políticos», pensava que tinha entrado naquela noite no terceiro mês da sua prisão.


As nove… A corneta tinha lançado no pátio as prolongadas notas do toque de silêncio; nos corredores soavam com monótona igualdade os passos dos guardas, e das celas fechadas, repletas de carne humana, saía um rumor pausado, semelhante ao sopro de uma forja longínqua ou à respiração de um gigante adormecido; parecia impossível que naquele velho convento, tão silencioso, cuja ruína se tornava mais visível à luz crua do gás, dormissem mil homens.

 

O pobre Yáñez, obrigado a deitar-se às nove, com uma luz permanente diante dos olhos e imerso num silêncio esmagador que fazia crer na possibilidade do mundo morto, pensava na dureza com que ia saldando a sua dívida com as instituições. Maldito artigo! Cada linha ia custar-lhe uma semana de prisão; cada palavra um dia.

 

E Yáñez, recordando que naquela noite começava a temporada de ópera com Lohengrin, a sua ópera preferida, via os palcos repletos de ombros nus e nucas adoráveis, entre cintilações de pedras preciosas, reflexos de sedas e airoso ondear de plumas frisadas.


— As nove… Agora terá saído o cisne, e o filho de Parsifal lançará as suas primeiras notas entre os murmúrios de curiosidade do público… E eu aqui! Meu Deus! Não tenho má ópera…

 

Sim; não era má. Do calabouço de baixo, como se proviessem de um subterrâneo, chegavam os ruídos com que denunciava a sua existência um tosco da montanha a quem iam executar de um momento para o outro por um sem-número de assassinatos. Era um chocar de grilhetas que parecia o ruído de um montão de pregos e chaves velhas e, de vez em quando, uma voz débil repetindo: « Pa..i nosso que es…tais nos céus… San…ta Maria», com a expressão tímida e suplicante do menino que adormece nos braços da sua mãe. Repetindo sempre a monótona cantilena, sem que pudessem fazê-lo calar! Segundo a opinião dos demais, com isto queria fingir-se louco, para salvar o pescoço; talvez catorze meses de isolamento num calabouço, à espera da morte a toda a hora, tivessem acabado com o seu escasso siso de fera instintiva.

 

Estava Yáñez a amaldiçoar a injustiça dos homens, que por umas quantas páginas in quarto de escritos desalinhados num momento de mau humor o obrigavam a adormecer todas as noites embalado pelo delírio de um condenado à morte, quando ouviu vozes fortes e passos apressados no mesmo piso onde estava o seu cárcere.

 

— Não, não dormirei aí! — gritava uma voz trémula e esganiçada. — Sou por acaso algum criminoso? Sou um funcionário do Ministério da Justiça, o mesmo que os senhores…, e com trinta anos de serviço. Perguntem por Nicodemes: todo o mundo me conhece; até os jornais falaram de mim. E depois de me instalarem numa cela, ainda querem obrigar-me a dormir num desvão que nem para os presos serve? Muito obrigado. Para isto me ordenaram que viesse?… Estou doente, e não durmo aí. Tragam-me um médico; necessito de um médico.  

 

(continua)

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