
Quando ia em trabalho à Assembleia da República, pois vários deputados eram colaboradores da editora em que trabalhava, quando almoçava no restaurante, verificava com agrado que os parlamentares de partidos diferentes se sentavam na mesma mesa e conversavam cordialmente enquanto comiam. No hemiciclo digladiavam-se, ali confraternizavam. Dando corpo e expressão a essa camaradagem, é lançado no próximo dia 11 de Junho no Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa um livro onde, a partir de uma foto das velhas lutas académicas se reúnem depoimentos desses estudantes de há meio século. Partindo da indignação juvenil, percorreram itinerários diferentes e a amizade volta a juntá-los na próxima segunda-feira. É bonito e o que vou dizer a seguir não constitui qualquer reparo negativo a esse convívio saudável. O sectarismo é que deve ser condenado.
Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo e político marxista italiano, perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, dizia na sua obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura: «Cada grupo social essencial» (…) «surgindo na história a partir da estrutura económica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenvolveu até aos nossos dias – categorias intelectuais pré-existentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas».
Ao recordar estas palavras de Gramsci, sou levado a reflectir sobre o facto de a realidade histórica dos últimos dois séculos nos permitir verificar que são oriundos da burguesia quando não mesmo da aristocracia, os intelectuais que surgem à superfície das grandes e pequenas perturbações sociais e que construíram, não só os suportes teóricos do sistema capitalista, como também os pressupostos ideológicos de quantas revoluções se produziram.
A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que veio criar um novo modo de produção – o que, pode dizer-se, não acontecia desde o Neolítico – provocou o aparecimento de uma estrutura intelectual adequada, do mesmo modo que a aristocracia fundiária, no sistema feudal, criou a sua própria categoria intelectual – a dos sacerdotes. Estes monopolizaram, durante um longo período da história, a ideologia religiosa que, para todos os efeitos, constituía a ciência da época. Em contrapartida, poder-se-ia afirmar que a classe operária, nasceu, sobreviveu e, provavelmente, extinguir-se-á sem ter organizado (ainda que a partir de categorias intelectuais «pré-existentes») uma intelectualidade própria, acabando o marxismo, numa análise superficial, fria e pragmática, por surgir como uma ruptura interna na superstrutura da burguesia, não ultrapassando na prática a concepção hegeliana que atribuía aos intelectuais o papel de «aristocracia do Estado».
Esboça-se um quadro de luta de classes em que, a nível superestrutural, um dos contendores estaria numa total dependência dos quadros formados pelo adversário, aparecendo a luta, no campo das ideias, como uma dissensão no campo de burguesia – a clivagem entre intelectuais «burgueses» e intelectuais «proletários» seria determinada por um jogo de opções pessoais baseado na pressão moral que a natureza cruel e desumana da exploração sempre tem exercido sobre camadas sensíveis da classe dominante, nomeadamente entre a juventude. O campo revolucionário, nessa luta que, embora tão anunciada nunca chegou a travar-se, dependeria das deserções que essa pressão ontológica provocasse.
Não falarei aqui do papel desempenhado nessas deserções do campo burguês motivadas por convicções, mas também por ilusões românticas e pela esperança no advento de uma sociedade justa. Não falarei também de apressadas «opções de classe» feitas em ordem a objectivos obscuros de oportunismo, carreirismo, servidas por consabidos artifícios de demagogia. Desde o século XIX até ao século XX, organizações operárias fizeram esforços no sentido de criar estruturas culturais autónomas do tipo das universidades livres. Porém, salvo uma ou outra excepção, todas elas desembocaram em arremedos do ensino burguês.
No fundo, toda esta problemática radica num ponto – o socialismo não criou um modo de produção alternativo ao do capitalismo. Procurou pôr o modo de produção capitalista ao serviço do proletariado. Porém, tal como o carro não consegue puxar os bois, é o modo de produção que determina a estrutura cultural e não o contrário. Entrou-se num labirinto sem saída. Melhor, num labirinto cuja única saída deita para o depósito das revoluções abortadas. O «socialismo real» tinha falido muito antes da queda do muro de Berlim. Quando na União Soviética se chamou stakanovismo à mesma coisa a que os capitalistas chamavam taylorismo, a revolução acabara já.
Porque o problema não era uma questão de nomenclatura. Nessa altura, em que os operários se emulavam para ver quem ganhava o título de «trabalhador do mês», nascera uma nova forma de exploração – o capitalismo de Estado, com a economia posta ao serviço de uma nova classe dominante. As pessoas mudaram, a exploração capitalista manteve-se. A bem dizer, não houve revolução.
Era bom que trocássemos umas impressões sobre este assunto, como disse o Mário de Carvalho.