PEQUENA CRÓNICA DE FARO – III[1] – por Júlio Marques Mota

Percorro a rua de Santo António. Passo pelo cinema que outrora aqui houve. Hoje um edifício que se anuncia com duas salas de cinema fechadas e várias lojas que nunca abriram. Gente enganada que as lojas compraram e que nelas nunca nada ganharam é o que isto representa, a imagem da ambição de outros que o dinheiro embolsaram. Quis saber como foi.

Lembro-me de há muitos anos ao cinema aqui ter vindo. O cinema fechou, o espaço foi reocupado, um novo edifício surgiu e em vez de uma sala de cinema duas salas então e lojas, lojas… mas agora tudo está encerrado. A cidade desloca-se no seu consumo para o Fórum e, com a crise é o centro desta cidade, tão bonito que ele é, que se vai esvaziando, as lojas vão fechando, umas a seguir às outras. O promotor da empresa faliu, o banco ficou com as lojas, o BCP creio eu. E somos todos nós que pagamos este pequeno elefante branco, é simples, afinal. Os bancos estão falidos, falidos por muitos promotores destes por eles apoiados, para não falar do resto, nesta simples crónica.

Um cinema morto, é o que isto representa. Lembro-me, tinha eu uns 18 anos eu que agora quero ir a caminho dos 100 anos, lembro-me do meu amigo Jorge Gaspar que me convidou a ir ao cinema ver o filme com a actriz Marylin, creio que os Inadaptados ou o Rio Sem Regresso, talvez, num cinema também ele hoje desaparecido, o cinema Bélgica na rua da Beneficência. A finalidade era ver a Marylin, aquela mulher que faria parar o transito com o bambolear de pernas e de ancas. A lembrar as mulheres de salto alto em piso incerto, mas estas a torcerem-se todas para não caírem

Saio para a rua. O calor escalda, o sol brilha intensamente reflectido nesta bela calçada à portuguesa, de pedra calcária, branca, e com efeitos de pedra de basalto, escura.

Não aguento a luz do sol e apresso o passo até chegar ao jardim da Alagoa. Aqui o piso é todo ele de calçado irregular, quase toda a cidade de Faro é ou está assim. Não há um metro quadrado de calçada que seja plano. Vejo as mulheres, todas elas ou quase todas elas um pouco como a Marylin mas agora com o medo de caírem, apenas só isso. Relembro o cinema Bélgica, relembro o meu amigo Jorge Gaspar, hoje possivelmente um grande professor de filosofia a debater-se com a má qualidade do ensino em Portugal, relembro a sua chamada de atenção para as pernas e as ancas de Marylin, a mim, um jovem pobre que lutava pela sobrevivência animal, quase.

De repente, sinto-me cego pelo reflexo do sol na calçada agora completamente irregular, como é completamente irregular toda a cidade de Faro. Caminho em direcção a casa e aproximo-me do local onde caí num dos muitos buracos das calçadas desta cidade. De repente tenho uma visão de Marylin, imagino uma mulher bem parecida com Marylin. Olho, paro, avanço, fico tenso, sinto que tenho mais sorte que os Kennedy, fecho os olhos de prazer, abro os olhos e que vejo então? Não, a quase Marylin de há segundos atrás, não, não estava ali à minha espera. O que vejo é uma mulher estendida no chão cheia de dores. Corro para a ajudar e quando chego ao local, nada, nada mesmo. De mulher nem sinal. O que ali estava bem aberto era o buraco onde eu ontem ia caindo, o buraco onde dias antes uma mulher se tinha estendido ao comprido e onde podia ter morrido.

Afinal tratava-se de uma visão a partir de uma realidade bem passada de décadas, a ida ao cinema, nada disto era verdade a não ser a calçada, a não ser as quedas das senhoras a quererem ser sem o saber como a Marylin, nada era mais verdade a não ser as lojas desta cidade fechadas com a crise.

Dessa visão, fica uma certeza, a de que a cidade de Faro é uma cidade de buracos, de calçadas sem calceteiros dirigida por um engenheiro, Macário, que nem para as passadeiras da sua cidade sabe olhar, talvez a pensar que o país precisa é de caceteiros.

Olhe-se para a passadeira que sai do largo de S. Francisco e toda ela ondulada nem é perpendicular sequer aos lados da rua, procura antes o caminho mais longo em forma de onda do mar que mais parece uma peça de artista a convidar às quedas sucessivas, sobretudo às senhoras que querem andar de salto alto.

A culpa é do Macário, a culpa é de todos os que o elegeram, e a cidade de Faro é a representação de um país por nossa culpa transformado em buraco  completo e a mulher caída no chão que eu imaginei na altura era a nossa Pátria, a Pátria de todos nós, ela simbolizava Portugal, afinal.

Júlio Marques Mota


[1] Este texto teve a leitura atenta de uma leitora minha especial, a minha neta de 10 anos. Se erros passaram, desculpem-na, é uma criança ainda.

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