O PROBLEMA DA HABITAÇÃO, por André Brun

1881 - 1926
1881 – 1926

 

 

III

No dia de partida do Costa, o Silva foi ao vapor. Na véspera, o Costa dera-lhe a chave da porta e tudo corria pelo melhor. Simplesmente, sobre a tolda do navio, o Costa, abraçando o seu amigo, fazia por se lembrar de qualquer coisa e não havia maneira.

― Queria dizer-te já não sei o quê e não há forma de me vir à ideia…

― Era coisa séria?

― Não sei, meu velho… Enfim, se me lembrar no caminho, escrevo-te.

O vapor abalou e o Silva voou para junto da Alzira.

No dia seguinte foram em cortejo ver a casa que o Silva já dispusera um pouco a seu modo e tudo se aprazou para a boda. Chegou a hora tão desejada e ontem, depois de uma visita ao administrador e ao prior, os noivos e a comitiva instalaram-se para o copo de água.

Reinava a melhor animação quando bateram à porta e um grupo apareceu, comboiado pelo guarda-portão:

― É aqui! Podem entrar…

O Silva supôs que seriam convidados da D. Alzira. Esta imaginou que seriam parentes do noivo. Receberam os visitantes com toda a amabilidade, forçaram-nos a comer bolos, a fazer saúdes, etc.

Um sujeito de idade perguntava ao Silva, mastigando uma croquette:

― E quantas divisões tem a casa?

Uma velha, que naufragara com asma num sofá, indagava da mãe da noiva:

― A retrete fica muito longe do quarto da casa?

Uma menina media a altura das janelas para efeito de namoro.

Por fim, o Silva, enervado de tanta pergunta, achou melhor mostrar a casa toda até à dispensa e ao quarto da sopeira…

― Ah! concluiu a velha, ao cabo da visita. Eu não te dizia, Anastácio, que esta casa não nos servia?!

E abalaram escada abaixo sem se despedirem. O Silva ficou de dizer à Alzira que aqueles parentes eram muito ordinários e a Alzira tencionou fazer sentir ao Silva a conveniência de escolher melhor as suas relações.

Dali por um pedaço, quando os convidados já iam abalando e só ficavam os íntimos para o jantar festivo, bateram de novo á porta. Era outra família. A certa altura não quis mais croquetes e quis ver a casa também. Não tinha essa família saído, já vinha chegando outra. Depois, veio uma senhora gorda, que metendo o nariz em tudo, declarou ao Silva em confidência que o quarto independente e a saleta pegada se podiam alugar para pouca permanência. O Silva ficou convencido tratar-se de uma tia mal comportada da D. Alzira, de que nunca se falava e cuja existência ele viera a conhecer por uma carta anónima.

À hora do jantar chegou um major reformado, com uma ranchada de netos e, quando às onze horas da noite, Silva e D. Alzira iam enfim pronunciar o tradicional ― “Enfim sós!” uma forte campainhada os chamou à porta. Era um lavrador de Alpiarça que, explicou ele, tinha arranjado uma mulher num clube e lhe queria pôr casa. Vinha ver se aquela conviria e apresentava-se fora de horas porque, voltando para a terra na manhã seguinte, desejava deixar o caso arrumado.

― Mas qual casa?

― Esta, explicou o lavrador, mostrando um anúncio de jornal em que se oferecia por um ano casa mobilada, com roupas e louças em muito bom uso.

O Silva ia tendo uma síncope. D. Alzira teve um ataque de nervos e os vizinhos de baixo bateram para cima com o pau da vassoura.

Esta manhã, logo ao romper da alva, recomeçou a romaria. Cerca do meio dia já tinham vindo trinta e sete pretendentes à casa e ao chegar o trigésimo oitavo o Silva acudiu à porta em fralda de camisa com uma faca de cozinha na mão, e a flor de laranja da D. Alzira na cabeça. Tinha endoidecido e seguiu para Rilhafoles.

O que o Costa distraído lhe queria dizer a bordo é que se esquecera da promessa feita ao amigo e mandara pôr um anúncio oferecendo a casa para a não ter desocupada um ano, o que é contra a lei do inquilinato.

In Procópio Baeta – Ditos e Feitos de um Burguês Lusitano do Primeiro Trinténio do Século XX. Primeira edição, 1927, Livraria Editora Guimarães & C.ª.

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