A LÍNGUA DO “PAS COMPRIS”*. POR ANDRÉ BRUN

1881 - 1926
1881 – 1926

I

Quando os ingleses desembarcaram em França, o governo de Sua Majestade Britânica forneceu-lhes, além dum solidíssimo par de botas e de um excelente capote, um pequeno dicionário das frases mais usuais em França. Os ingleses, para beberem bass e stout, venderam as botas, o capote, e deram o dicionário como gorjeta às meninas dos estaminets que, invertendo as colunas e o destino do livro, aprenderam a fingir que falam inglês.

Os tommies criaram, para se fazerem compreender em território francês, uma língua especial composta de quinze ou dezoito palavras, pela qual se têm à maravilha entendido com os indígenas durante os quatro anos de guerra: Os seis vocábulos fundamentais dessa língua são: pas compris, compris, no bonne, bonne, finish e tout de suite.

Um flamengo pilha um escocês de saiote a roubar batatas num campo? Furioso exclama em francês ou em patois:

― Bandido! Ladrão! Vou já queixar-me ao provost-marshall…

Com a mais serena das fleumas, o filho da verde Erin sorri e replica, voltando as costas:

Provost-marshall? Pas compris.

Em compensação, se num acantonamento uma velha madame leva uma Anzac até um fofíssimo molho de palha ao fundo dum estábulo, ele, com o seu melhor sorriso ao léu, exclama:

Coucher! Bonne! Tout de suite…

Ir para o descanso é três bonne. Ter de sair do estaminet às seis da tarde é no bonne. Ter morrido, ter bebido a última pinga do copo de cerveja, ter acabado uma tarefa, estar seu um penny no bolso, tudo isso é finish. A que vinham, pois, os dicionários do governo de Sua Graciosa Majestade?

Escusado será dizer que aos portugueses desembarcados na Flandres não se distribuíram dicionários. De resto, a maior parte não sabia ler. O mesmo seria entregar uma viola francesa a um hipopótamo.

“Isto é rapaziada que noutro tempo foi à Guiné, às Angolas, à Índia, e sempre se soube entender” ― disseram consigo os desorganizadores da nossa participação.

Os “lãzudos”, ao pisar o solo da Gália, tiveram pois que tratar de se governar como pudessem.

Nos primeiros dias, um muito desconsolado escrevia à família: “Nesta terra em que só os cães falam como a gente… “; mas pouco a pouco lá foram indo. A gente da terra conversava naquela linguagem com os verbos no infinitivo, que usam os palhaços franceses nos circos e os professores do método Berlitz nas primeiras lições: ― Vous asseoir! Vous sortir!… O patois da Flandres, onde há séculos correram aventuras espanhóis e até portugueses, conserva vestígios dessas passagens. Uma vaca é uma vacque, uma cadeira, uma caiere, e quantos outros termos semelhantes. Com isso e com as dezoito nossas palavras  da língua do pas compris começou Folgadinho a acamaradar com as meninas da região, e até com os ingleses. Não era de estranhar ver taratas nossos de braço com tommies, passeando e conversando. O quê? Não lhes sei dizer; mas conversavam horas seguidas, faziam negócios em que os ingleses eram sempre explorados, e contavam histórias que nunca consegui perceber. Com o andar do tempo fizeram-se grandes progressos entre os nossos. Hoje falam francês pelos cotovelos, e até escrevem, benza-os Deus.

Nota – neste interessante texto, André Brun comete contudo alguns erros. Um é chamar a um escocês filho da verde Erin. Como se sabe, Erin era uma designação tradicional da Irlanda. Outros erros derivarão de não estar familiarizado com a existência de várias línguas na Bélgica. Daí expressões como o patois da Flandres, ou atribuir à influência espanhola ou portuguesa a existência de termos que, possivelmente (o autor desta nota também não tem a certeza) pertencem ao valão, que é uma língua românica. 
 *IN A MALTA DAS TRINCHEIRAS, MIGALHAS DA GRANDE GUERRA, 1917 – 1918.

2 Comments

  1. Não conheço… patavina… de valão (ou da variante do francês ou dialecto que por lá se fala). Mas deu-me assim um vislumbre e fui consultar uns calhamaços (em que já não punha os olhos há bastante tempo) com traduções em inglês e francês de poemas antigos. E lá confirmei o que vagamente recordava: as palavras “vacque” e “carrière” (também escrita “carri’ere”) nos originais – as edições são bilingues – de poemas medievais em “anglo-normando” (!), língua ainda de raiz latina, usada oficialmente em Inglaterra durante um certo período, o que é perfeitamente compreensível pelos episódios históricos e correlativas bagunças de guerras, invasões e disputas de tronos que conhecemos. Confesso é que tal informação me deixa, diga-se, ainda mais confuso perante as referências de Brun…
    Talvez venha alguma coisa aqui na “net” (desde que seja de confiança… tipo Encyclopedia Britannica). Fica a pista e o pedido de desculpa por não me apetecer ser eu próprio a segui-la…

  2. Obrigado, Paulo, pelo teu comentário. Hei-de ver de consigo encontrar alguma referência. O Brun é que não terá tido hipótese. Não conheço os pormenores, mas sei que ele foi gaseado durante os combates, e teve de ser evacuado para a retaguarda. Alíás, nunca mais se recompôs. Foi promovido a major, mas perdeu a saúde (parece que antes já não era muito robusto) lá na Flandres. Ficou com problemas na laringe e nos pulmões, que terão sido a causa da morte dele em 1926, com 45 anos.

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