CRÓNICA DE FARO Nº 4. Por JÚLIO MARQUES MOTA

Pela mão de Spartacus, de Hegel e de Marx, uma viagem ao mundo infernal da precariedade, em Faro, em Portugal, na Europa

PARTE III
(CONTINUAÇÃO)

Aqui, uma série de ideias me vêm à cabeça, enquanto deixo instalar um certo silêncio entre nós, enquanto sobre esta questão vou pensando:

Os salários em baixa, forçados pelo governo até, com todos os mecanismos de que pode, até os da delação. Esta é a lógica da construção europeia e tal como a entendem os seus dirigentes agora. Reparemos que cada Estado-membro deixou de ter política monetária autónoma, deixou de ter política cambial, não tem política comercial. Adicionalmente desenvolveu-se internamente na União Europeia (UE) a concorrência fiscal entre os Estados-membros, defendeu-se ou tem-se sido fortemente conivente com a presença de paraísos fiscais, um quase por cada Estado-membro, deixou-se ou pretendeu-se que sejam os mercados, os especuladores, arbitrariamente a controlarem os Estados via mercados obrigacionistas ou da dívida pública. No início dos anos 90 os especuladores controlavam os Estados via mercado cambial e iam destruindo toda a construção europeia. Agora controlam os Estados via mercado de obrigações da dívida pública e a tela é ainda mais negra. É a transparência dos mercados! é o que nos apresentam como argumento. Como se isto não chegasse, defendeu-se tenazmente a concorrência ao nível interno e externo e, neste quadro, a consequência imediata tem sido a da desindustrialização, a da falta de empregos na indústria, toda ela, e nos serviços também. Neste contexto, mas sublinho que é apenas neste contexto, face a qualquer desequilíbrio que os mercados criem em qualquer Estado, a este só lhe resta responder com a desinflação competitiva, ou seja pela baixa de salários, pela redução dos custos de reprodução da força de trabalho, pela desvalorização dita interna, daí o ataque aos direitos sociais, ou seja, com a espiral sucessiva criada pois por um duplo garrote, o do desequilíbrio orçamental e o do desequilíbrio externo. Mas com esta desvalorização interna, menos empregos ainda se alcançam.

Empregos é, pois, o que é hoje cada vez mais raro, pura e simplesmente é o que não há. O problema da pressão crescente do duplo garrote em que a UE nos está a colocar a nós, não à classe dirigente que aprovou as medidas, as leis, os Tratados, etc. leva a um porto em que se contabilizam cada vez menos empregos. A pressão interna por um lado, ou seja a pressão sobre o défice, sobre a dívida pública, sobre as contas públicas, e por outro lado a pressão sobre os défices externos num contexto globalizado têm atirado os pequenos países como nós numa espiral recessiva e quanto mais se aperta cada um dos garrotes mais a recessão se aprofunda. O mais preocupante é que isto é intencional. Forçar um pequeno país, sem política monetária, política cambial, sem política comercial a uma política de austeridade quando todos os outros estão a fazer o mesmo é então conduzi-lo a uma situação de puro suicídio colectivo. Fazê-lo ainda mais num contexto globalizado sujeito a uma feroz concorrência mundializada onde em muitos casos não há regras, não é mais do que utilizar o segundo garrote e com o intuito de reforçar os efeitos do primeiro. A questão é ainda mais grave quando praticamente se quer reduzir o Estado ao mínimo das suas funções e num momento em que mais se precisava a sua presença fosse mais forte e capaz de traçar linhas de futuro no contexto da economia global. Os outros crescem, desenvolvem-se e os países sujeitos a esta política de rigor, a da desinflação competitiva ou de desvalorização interna como agora se diz, esses regridem no contexto da economia mundializada. Mas quem a nível das Instituições se interessa por isso? Ninguém. Com estas políticas de rigor, os rendimentos baixam, as receitas baixam, o emprego baixa, o défice público aumenta e a espiral permanece. Por outro lado, as exportações se numa primeira fase poderão aumentar não o podem fazer, porém, de uma forma sustentada e a prazo na cadeia de valor global, por ausência de futuros investimentos, privados e públicos, estes países tenderão a perder competitividade, contrariamente ao pretendido. A concorrer pelos salários estarão praticamente todos, daí que os mecanismos de saída não poderão ser concretizados pela redução de custos salariais mas sim pela mudança de tecnologias. Mas instaurar esta mudança, como, se os Estados estão a ficar cada vez mais depauperados e os investimentos privados estão á procura de outros abrigos? Acrescente-se, a vaga de deslocalizações, desde a produção industrial à produção de serviços mesmos especializados, à procura de mão-de-obra especializada barata e no caso europeu nem sequer isso já se poderá ter em breve com todo o sistema de ensino destruído, com o Estado privatizado ao sabor dos interesses alemães e não sei de quem mais. Fornecemos mão-de-obra para os outros produzirem bens e serviços não negociáveis internacionalmente. Mas isto também se esgota. E agora empregos procuram-se aqui e lá fora e não os há, pura e simplesmente isto.

À margem deste meu amigo e deste ponto de vista talvez valha a pena reler o que à volta deste tema nos diz Jean Claude Werrebrouck num texto notável com o título Le redressement productif comme stratégie d’adaptation régressive à la mondialisation que aqui apresentamos numa tradução livre:

(…) uma estratégia de relocalização industrial e de reequilíbrio das contas externas pressupõe uma alteração nas taxas de câmbio. Se uma mudança externa na taxa de câmbio não pode ser obtida devido a uma base monetária única é então certo que nada mais resta a não ser a desvalorização interna e esta passa necessariamente por uma diminuição do custo do trabalho, acompanhada de uma suficiente flexibilidade de preços. Esta é a estratégia que é actualmente seguida em toda a Europa e, em especial na sua parte sul (nos ditos países periféricos).

Mesmo admitindo que com esta estratégia se desenvolve a competitividade, não quer isto dizer que obrigatoriamente se verifique uma verdadeira saída da crise. E isto por uma razão muito simples, que é o facto de a recuperação produtiva está a ser realizada num contexto de uma concorrência generalizada que reduz os salários somente à sua dimensão de custo e de custo mínimo (e nunca é encarado este como variável da repartição e como dinamizador da procura efectiva e da evolução tecnológica), enquanto que no quadro da regulação nacional dos 30 gloriosos anos do crescimento a dimensão de mercado foi essencial na regulação global – uma perspectiva micro contra uma perspectiva macro. Mais grave ainda, uma renovação e recuperação produtiva a querer ser feita com base na desvalorização interna só pode agravar a crise geral de superprodução global. Torna-se uma adaptação regressiva à mundialização, por assentar numa regressão social. Nesta situação, os chamados países emergentes também eles sofrem uma perda de mercados que lhes advém dos países em vias de recuperação produtiva regressiva socialmente. Os chineses podem-se pois preocupar com uma potencial nova competitividade europeia que os venha a impedir de revitalizarem a distribuição em grande escala, em que os clientes desta produção tem sido constituída pela massa de trabalhadores europeus munidos de salários já diminuídos. Uma mundialização socialmente regressiva é o que se tem estado a impor na Europa, pelas políticas recessivas impostas via Troika. [Aliás, a União Europeia com a política seguida parece-me mesmo querer colocar os países periféricos ao nível das condições de trabalho, remunerações inclusive, da China.] Já depois destas linhas escritas, li um artigo sobre a China publicado desta semana por Foreign Affairs onde se diz:

“Este ano, para a consternação de produtores de bens de luxo do mundo, o termo “austeridade” tornou-se um dos mais proeminentes chavões políticos de Pequim. Desde que se tornou autoridade máxima do Partido Comunista Chinês em Novembro passado, Xi Jinping, anunciou um fluxo constante de medidas de rigor: os funcionários do governo já foram proibidos de realizarem banquetes luxuosos e de usar relógios de designers, tendo inclusive também a construção de novos edifícios governamentais sido proibida por cinco anos. É natural que os comentadores ocidentais sejam rápidos a interpretar a política de austeridade agora introduzida na China em termos do sua próprio longo debate sobre macroeconomia: de Atenas a Dublin, de Dublin a Washington D.C., políticos e economistas estão a discutir os méritos económicos e as desvantagens de cortes orçamentais e dos défices.

Mas seria um grande erro o interpretar a proibição do Xi tão apressadamente como como uma extensão do que Paul Krugman descreve como a “viragem para a austeridade” desencadeada no  Ocidente desde 2010. Considerando que a austeridade ocidental tem sido uma ferramenta de política económica a Ocidente, na China, na sua essência, esta é essencialmente política. A China tem uma longa história de viragem para a frugalidade não tanto para estimular a confiança dos empresários, mas, sim, para combater a doença da corrupção. É seguro dizer que Xi tem pensado bem menos em Milton Friedman ou em John Maynard Keynes do que na tradição da reforma política da China, que vem desde Confúcio até aos comunistas.

No período de formação da política chinesa, há 2.500 anos, Confúcio trabalhou sobre uma filosofia de governo e ética social, que deixou uma marca profunda na civilização no leste asiático. Ele admoestou governantes para manterem tanto a tributação como as despesas no seu mínimo. O governante esclarecido, dizem-nos Confúcio e os seus seguidores, deve encarnar uma certa austeridade moral no seu comportamento pessoal e deve aplicar a austeridade orçamental em assuntos de Estado. O povo – a maioria das pessoas eram agricultores- então seguiriam o imperador “como a grama do linho se dobra ao vento.” Por outras palavras, demonstrando a virtude política através da austeridade, frugalidade e simplicidade assegurar-se-ia a legitimidade popular e a estabilidade política.”

(continua)

______

Para ler a Parte II desta crónica de Júlio Marques Mota, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

http://aviagemdosargonautas.net/2013/09/02/cronica-de-faro-no-4-por-julio-marques-mota-2/

1 Comment

Leave a Reply