CONTOS & CRÓNICAS: “AU BERTO DUAS LETRAS” – Por José Magalhães (11)

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AU BERTO, DUAS LETRAS!

 

 

Há muitos anos, ainda meu pai era rapazote, havia em casa de meu avô, em Paços de Ferreira, um empregado (chamava-se criado na altura, e isso nada tinha de pejorativo) de seu nome Alberto. Era o homem de confiança de meu avô, e a palavra dele quando consultada, fazia lei lá em casa.

Paços de Ferreira, era na altura, e ainda o foi até à minha juventude, uma aprazível Vila, com Amoreiras espalhadas por várias ruas da terra, cujas amoras brancas eram deliciosamente doces, e as folhas serviam em grande parte para alimentar os bichos-da-seda de uma fábrica de  fio de seda, pertença do meu tio Simplício, e existente no centro do Porto, e para criar uma maravilhosa sombra nos dias de canícula. A casa de meu avô ficava mesmo no centro da terra e tinha um terreno de aproximadamente meio hectare, e que nos dias de hoje é um (mais um) Centro Comercial. A vida corria calma e a feira da rotunda, nos dias em que realizava, era um dos locais onde eu mais gostava de ir.
Alberto era extremamente esperto, quiçá mesmo muito inteligente. Era ele que fazia os negócios em nome de meu avô, no que dizia respeito à compra ou venda de vacas, vitelos, ou porcos, à compra ou venda de terrenos para cultivo, ou de pinhais, ou outros quaisquer negócios que fossem necessários ou vantajosos. Bastava-lhe olhar para um pinhal para dizer, sem nunca errar quantos metros cúbicos de madeira ele produziria. Bastava-lhe olhar para uma vaca para dizer se valeria a pena comprá-la e quantos litros de leite poderia dar por dia. Meu avô era Solicitador Encartado com escritórios montados em várias comarcas e o seu tempo para estas lides era limitado, para além de ter uma demasiada brandura nas negociatas, sendo muitas vezes levado à certa.
No entanto, Alberto tinha uma dificuldade que lhe trazia de quando em vez alguns transtornos.
Não sabia ler nem escrever!

Minha avó, e também minhas três tias que estudavam para virem a ser professoras primárias, diziam-lhe que tal era necessário, até mesmo para um dia ele poder arranjar uma noiva e casar. Na sua boçalidade e com uma certa arrogância dizia que tal não era preciso para nada, que lhe bastava a sua sabedoria e esperteza. Em tom de brincadeira, dizia que para casar não precisaria de saber dessas coisas, que as mulheres eram como as vacas leiteiras, desde que tivessem perna fina e pescoço alto, seriam o ideal. Nestas conversas recebia sempre admoestações das senhoras da casa, e incentivos à aprendizagem das coisas das letras.

Minha avó e minhas tias, meteram na cabeça que teriam de conseguir ensinar Alberto a ler e a escrever, e ele acabou por concordar em ser aluno delas. Meu avô, sempre muito céptico quanto às capacidades para as letras do seu homem de confiança, dizia que quando elas conseguissem isso, e se, lhes daria o que elas pretendessem, fosse o que fosse. Tudo dito com a certeza de que nunca teria de concretizar tal obrigação.
Mesmo assim, mesmo sabendo das dificuldades que iriam encontrar, meteram mãos à obra, uma de cada vez, primeiro minha avó que ao fim de algum tempo desistiu, depois meu pai, que também tentou intrometer-se no assunto e que dizia ao fim de três semanas que era uma missão impossível, depois, cada uma das minhas tias.
Toda a gente desistiu, e em conjunto foram dizer-lho. Apesar de toda a sua esperteza e inteligência, no que dizia respeito às letras Alberto era verdadeiramente um calhau com dois olhos.

Ao ouvir tal decisão, dita pela minha tia mais velha, ripostou que tal não era possível, que o esforço de todos tinha sido compensado e que ele já sabia as letras todas, pelo que deveriam continuar a ensiná-lo, e quis ir falar com o meu avô.

Já na sua presença, disse:

-Senhor doutor, sinto-me muito triste e ofendido. Algumas meninas, poucas, disseram-me que não me ensinavam mais a ler e a escrever pois que eu nunca o conseguiria. Isso não é verdade e por favor diga-lhes e mande-as continuar a ensinar-me. Eu até já sei muitas letras.
Perante tal, meu avô interpelou-o:

-Se é assim Alberto, diz-me lá, quantas letras tem o teu nome?

-Duas senhor doutor!

-Duas?

-Sim, claro, duas, Au e Berto!

Claro que Alberto, que ainda trabalhou muitos anos em casa do meu avô, ganhou algum  bom dinheiro em negócios, acabou por casar com uma mulher pequena, rechonchuda e de perna bem  curta e gordinha, teve um rancho de filhos e foi muito feliz até ao fim dos seus dias. Morreu muito velho.

Nunca mais se livrou do seu novo nome, que ostentava com orgulho:

Au Berto Duas Letras.

 

Alvin_Toffler

7 Comments

  1. Mais uma narrativa centrada numa época de um espaço que perdeu toda a sua singularidade –
    Linguagem simples ,saborosa e divertida .
    Os meus agradecimentos DR.
    Nem imagina como me faz regressar a um tempo já sem regresso ,apesar de luso africana .Mas,pela força das circunstâncias vim com 10 anos estudar .Vivi de bem perto com a ruralidade que nunca esqueci e até muito aprendi .Maria .

  2. Caro amigo
    Mais uma vez a tua narrativa nos leva à vivência da n/ infância tão agradável de recordar.
    Parabéns!!
    Um abraço
    J. Macedo.

  3. Gostei desta narrativa que me remeteu aos tempos de juventude, quando passava as férias de Agosto precisamente em Paços de Ferreira. Na quinta dos meus parentes, lembro-me de haver um criado a pesar de analfabeto era um sabedor nato das lides da quinta. Muito fiel e dedicado fazia-nos todas as vontades…
    Um abraço amigo,
    Eudora

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