RETRATOS DA EUROPA, RETRATOS DO MERCADO DO TRABALHO EN FRANÇA – ACORDO EUROPEU SOBRE OS TRABALHADORES DESTACADOS – por JÚLIO MARQUES MOTA

europe_pol_1993

1. Directiva Trabalhador destacado, Directiva Bolkestein; hoje, qual a diferença?

Júlio Marques Mota

PARTE II
(conclusão)

Mas isto era pouco. O passo seguinte é perfeitamente lógico: poder-se importar trabalhadores com caracter temporário. Mas o trabalho é uma mercadoria, o seu custo é o seu custo de reprodução enquanto membro de uma classe. Já o sabemos desde Adam Smith, desde Ricardo, desde Marx. Pois bem, passava-se a importar uma mercadoria específica, o trabalho, e ao custo da sua reprodução no país de origem, ao custo mais baixo que no mundo se permite. E na senda da exploração máxima avançava-se assim e bastante relativamente à directiva de 96! Avança-se com a Directiva Bolkesten. Enquanto na Directiva de 96 , o salário a pagar é o do país onde o trabalho é executado , na directiva Bolkesten o salário a pagar seria o do país de origem. Os países da periferia da Europa alimentariam assim o núcleo central da zona euro, e o mundo em vais de desenvolvimento seria também uma periferia, embora mais longe. Simplesmente a directiva levantou um tal barulho que Chirac terá chegado a exigir que fosse cancelada uma entrevista num dos canais de Televisão franceses a…Durão Barroso e por causa, porque contrariamente a Durão Barroso, Chirac tinha a consciência que assim, com a defesa da Directiva Bolkesten, se caminhava para um não à Constituição Europeia. Inversamente, Durão Barroso achava que o modelo neoliberal tinha a força de um buldózer e que arrasaria tudo o que se lhe opusesse e com a chancela do voto popular. Enganou-se e o referendo não passou, na França e na Holanda. A nada disto é estranha a campanha a favor da Directiva Bolkesten. E assim aconteceu e assim deixou depois de haver referendos. São perigosos para a oligarquia de Bruxelas e nesta oligarquia apodrecem nomes como Prodi e como António Vitorino. A social-democracia bastarda a alimentar o sistema neoliberal e em força.

Mas um antigo aluno de Economia Internacional poder-me-á dizer: mas o seu discurso é altamente incoerente. Sendo neoliberais eles farão tudo para que os mecanismos de mercado actuem. Ora nestes mecanismos temos a verificação do teorema Lerner-Samuelson que nos levará à igualização da remuneração absoluta dos dois factores, capital e trabalho, isto é, o salário nominal tenderá a ser o mesmo em toda a Europa, a remuneração do capital tenderá a ser a mesma em toda a Europa igualmente. É isto o teorema, ou não é ? Mais ainda, a mesma lógica de mercado levar-nos-á à verificação do teorema de Stolper Samuelson que nos diz que no quadro do mercado único então haverá convergência nas remunerações reais dos dois factores, ou seja, o poder de compra por hora de trabalho realizada e a trabalho igual será exactamente o mesmo, o poder de compra na posse dos capitalistas por unidade de capital utilizada será também o mesmo onde quer que seja utilizada a unidade de capital. Ora pela lógica da sua argumentação as duas directivas vão em sentido contrário à teoria neoliberal que suporta o modelo da Comissão em que nos situamos. Mas isto é então contraditório.

Como primeira argumentação diremos que coerência dentro do seu próprio modelo é coisa que não falta à União Europeia. Mas vamos devagar.

Em primeiro lugar, o aluno virtualmente aqui presente fala-me de dois teoremas da Economia Internacional e que seriam a consequência da aplicação da livre-troca. Simplesmente no quadro da moeda única e do mercado único não existe comércio internacional: nenhuma das hipóteses que levam à verificação deste teorema se verificam neste contexto: nem há imobilidade do trabalho, nem há imobilidade do factor capital, nem as quantidades de “factores” de que dispõe uma nação estão eles mesmos constantes, nem está presente o capital financeiro como uma terceira classe social na repartição. Nada mesmo, ou melhor, neste teorema da economia não existe nenhuma economia. Portanto, deixemos os teoremas da Economia Internacional em paz.

Mas isto não é afirmar que os nossos pequenos monstrinhos de Bruxelas sejam incoerentes. Vejamos a Directiva Bolkesten. Que pretendia ela? Admita-se um barco de duplo casco a ser construído nos Chantiers de l’Atlantique em Saint-Nazaire. O barco não pode ir ser pintado na Letónia, por exemplo. Pois bem, contratam-se os trabalhadores da Letónia a ganhar sob as suas condições da Letónia para virem pintar o barco, aqui em França. Quer-se electrificar o barco? Não se pode ir ao Sudeste Asiático fazer esse trabalho. Solução simples: contratam-se na Índia trabalhadores, electricistas, que vêm fazer a instalação eléctrica do barco, com os mesmos salários que ganham na Índia. O barco assume assim ser o resultado de uma construção à escala mundial e a reflectir a diversidade de custos à escala planetária. Que nos resta dos dois nossos teoremas citados? Nada, portanto. Resta um outro oposto a tudo o que ensinado nas Universidades financiadas a partir de Bruxelas e que é bem traduzido pela Directiva Bolkesten: a troca desigual. As mercadorias são cada vez mais o produto de condições produtivas dispersas à escala mundial, vivendo da especificidade dos salários nacionais e da uniformização da taxa de lucro, mesmo por patamares como muito bem o sublinhou David Ricardo.

 Mas um neoliberal daqueles habituados a produzir um discurso que convém às oligarquias bem pensantes nas Instituições internacionais pode dar-lhe, a este meu aluno virtual, uma outra explicação. Dir-lhe-ão que no curto prazo temos k tipos de trabalho ditos factores específicos, desde os de mais alta qualificação até aos de mais baixa qualificação. Nas estruturas dos países desenvolvidos, a pequena e média burguesia têm sido e continua a ser em grande parte o sustentáculo ideológico do sistema. Esses saem abrigados no quadro da concorrência e na lógica da directiva vai precisamente condenar os trabalhadores situados a partir da gama média de formação e de salários para baixo e é naquilo, SUBLINHE-SE, que não pode deslocalizar. O factor capital esse pela lógica dos teoremas e não só, tende a alimentar a sua remuneração real. Como o trabalho de maior formação é o segundo factor abundante este, de acordo com os teoremas vai também aumentar a sua remuneração. No curto e médio prazo tendem a aumentar as remunerações mais utilizadas nas produções que se expandem, simplesmente isso. Diremos que aumentam as remunerações nominais e reais dos factores abundantes nos países mais fortes da zona euro, o capital e o trabalho especializado, e força-se à baixa dos outros salários. Nos países ricos temos que fazer o upgrading da população se queremos sobreviver condignamente. Engenheiros, biólogos, médicos, etc e…mais nada. Não podem haver trabalhadores de tipo Moulinex, abatam-se estes brutos, é pois esta a lógica! Aqui, força-se quer pela Directiva e pelos fenómenos migratórios consentidos como ilegais, que os salários das classes mais desfavorecidas não subam, que seja assim rompida a coesão social. Mas e pelo lado dos países fornecedores da mão-de-obra barata? Aí faz-se valer o peso da crise, como se tem estado a fazer feito e os salários reais e nominais em vez de subirem como diz o teorema descem, mas tudo conforme, porque se está no quadro de outros elementos que não só os de mercado funcional, mas de factores da crise e dos desequilíbrios que se quiseram instalar desde há décadas para dar este resultado: as políticas de contenção salarial têm que ser duramente aplicadas para, mais tarde, deixar que os mercados a este nível funcionem livremente e que os teoremas referidos se venham a verificar.

Mas este meu aluno teimoso que nem um asno mas sem o ser, desafia-nos: mas e antes da crise ter rebentado? Como é se poderiam passar as coisas nos países fornecedores de mão-de-obra barata? Não deveria aqui verificar-se a verificação dos dois teoremas, se nos referirmos ao período de antes da crise rebentar, dado que os países se especializam nos bens que relativamente mais utilizam trabalho?

Este argumento é curioso e tanto mais quanto é hoje uma questões que se levanta relativamente à China. Com efeito, muitos peritos consideram que os rápidos aumentos salariais verificados na região Leste da China farão com que este gigante venha a perder competitividade face a países como o Vietname ou como o Cambodja. Se adicionarmos a este factor a possibilidade de o yuan se valorizar fortemente então teremos que naturalmente o sistema mundial tenderá para o equilíbrio. Naturalmente assim! Mas isto é esquecer que não há nenhum mecanismo ou instituição que regule os valores para as taxas de câmbios nem que force à verificação da situação de equilíbrios da balança corrente dos países fortemente excedentários. Os tempos de Bretton Woods já se foram, destruídos passo a passo pelos neoliberais de todos os perfis políticos. No caso em presença, e o raciocínio acima foi durante anos o de Pascal Lamy director da Organização Mundial do Comércio, por exemplo, é esquecer que a mão de obra disponível para a indústria pode crescer e muito nas outras regiões da China. A quem se quer mentir, afinal?

Mas voltemos à Europa e ao nosso aluno. Aqui um neoliberal, disfarçado até de alguns tons de Keynesianismo para melhor fazer passar a mensagem responde-lhe com a máxima facilidade. Com a queda do regime comunista a Leste houve aumento de mão de obra disponível que entra no sistema capitalista. Ora o dado dos teoremas é a quantidade de recursos constante e estas quantidades deixam de estar constantes. Há um aumento da oferta de trabalho e o salário desce. De novo, será o mercado a funcionar e a colocar inclusive as variáveis demográficas no seu lugar e depois tudo se passará harmoniosamente como previsto pela teoria neoliberal. Neste caso as duas directivas com os seus ritmos próprios reforçariam a velocidade a que se fariam os ajustamentos: do lado de cá, dos países ricos, ajuda-se a socialmente eliminar os trabalhadores descartáveis, elimináveis, os nossos trabalhadores Moulinex, incapazes de subir na escala da formação. Do lado de lá, reduzia-se o ritmo de pressão á baixa dos salários tanto quanto os melhores e seriam muitos poderiam estar a trabalhar do lado de cá, aos custos sociais do lado de lá, para onde iriam necessária e obrigatoriamente viver. Vivam pois as duas Directivas.

Entretanto, é nesta lógica que a Directiva de 96 ganha força, porque a desregulamentação europeia continua a sua obra de desmantelamento de décadas de civilização que se foram construindo e a tudo isto também não é estranho a abertura aos países de Leste. Um reservatório brutal de mão-de-obra de alta qualidade como o assinalava Gunther Walraff, feita a partir das tecnologias do século XIX! Faltava uma peça a sério para essa exploração se estender ao limite: a perda de peso dos Estados nacionais. Hoje, a desregulamentação, a crise, a falta de empregos por todo o lado leva a que a Europa seja atravessada por milhões de pessoas à procura de emprego. Nada melhor do que fixar muita dessa gente no pais de origem. Depois, contorna-se a lei, e fica-se na mão com as mesmas prerrogativas que a Directiva Bolkesten. Impera a lei do silêncio, a miséria assim obriga, é o que nos relata um dos textos. Repare-se ainda que em plena época do socialismo a governar em França, mas a mando dos neoliberais de Berlim, são os empresários que não entraram no jogo que funcionam de inspectores a exigir o cumprimento da Directiva de 96 e contra a sua transformação na prática em Directiva Bolkesten! Inacreditável, portanto.

Mas já agora é a França a pressionar por um reforço da Directiva, não pela eliminação da Directiva como o deveria fazer um governo que se arvora de socialista , como muito bem o assinala Murer. Porquê a França, depois de anos de silêncio ? E aqui mais uma vez encontramos o cinismo dos nossos socialistas franceses de trazer por Berlim a limpar o chão que a senhora Merkel pisa. Porque a Bretanha rebentou, porque a violência pode alastrar e as europeias estão também elas quase à porta. E a Bretanha está a rebentar, porquê? Por causa da concorrência desleal feita a partir da Alemanha, com trabalhadores de Leste a 2 euros a hora, contra os 9 euros por hora na Bretanha! De novo encontramos aqui um dado que nos é infelizmente querido: são as ruas que obrigam os governos a corrigir o tiro e o sistema que até agora só recua quando assim acontece. Que não desagrade a amigos meus.

E para o meu aluno sugiro que se peça, e faço-o em seu nome, um comentário à peça conjunta que se segue mas um pedido feito a especialistas em sociologia do trabalho como o Paulo Pedroso, em economia do trabalho como a Margarida Antunes ou em direito do trabalho como o João Pedroso, por exemplo. Estarão eles dispostos a fazer um pequeno comentário sobre o conjunto de artigos que compilámos?

Os textos abaixo dão-nos pois conta da realidade da Directiva de 96 transformada em Directiva Bolkesten , dão-nos pois conta do desprezo com que o trabalhador é encarado nesta Europa de submissão e na minha opinião valem, e muito, por isso mesmo.

Júlio Marques Mota

______

Para ler a Parte I deste texto de Júlio Marques Mota, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

RETRATOS DA EUROPA, RETRATOS DO MERCADO DO TRABALHO EN FRANÇA – ACORDO EUROPEU SOBRE OS TRABALHADORES DESTACADOS – por JÚLIO MARQUES MOTA

1 Comment

Leave a Reply