RETRATOS DA EUROPA, RETRATOS DO MERCADO DO TRABALHO EN FRANÇA – ACORDO EUROPEU SOBRE OS TRABALHADORES DESTACADOS – por JÚLIO MARQUES MOTA

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2. Trabalhadores destacados, os tecnocratas neoliberais de Bruxelas continuam a sua obra de demolição

Theux, site L’Espoir

Bolkestein

Se tivéssemos que manter uma medida que simboliza por si só as derivas da política económica da União Europeia, esta seria, sem dúvida, a directiva relativa aos serviços no mercado interno, mais conhecida como a directiva Bolkestein. Mesmo que esta não tenha feito parte do Tratado da Constituição Europeia, em si-mesma, esta directiva está-lhe inevitavelmente ligada, tanto os opositores ao Tratado dela se têm servido para provar a realidade da dominação das ideias neoliberais no seio da União Europeia. Infelizmente a vitória do não ao Tratado da CE de 2005 rapidamente se transformou numa derrota com a adopção do Tratado de Lisboa. Na altura em que há um combate contra o dumping social e enquanto a França sofre desde há anos as consequências das deslocalizações, o estudo da Direcção-geral do Trabalho (DGT), mostrando a explosão do número de trabalhadores deslocados em França confere um sabor ainda mais amargo para esta derrota. Expliquemo-nos.

“A realidade é outra. O verdadeiro objectivo da União Europeia não é o de procurar resolver o problema dos empregos sob forte tensão mas de conseguir impor a livre circulação dos trabalhadores depois de ter já atingido a livre circulação de mercadorias.»

 “A realidade é outra. O verdadeiro objectivo da União Europeia não é o de procurar resolver o problema dos empregos sob forte tensão mas de conseguir impor a livre circulação dos trabalhadores depois de ter já atingido a livre circulação de mercadorias.»

 A realidade do destacamento temporário de uma empresa estrangeira não cobre totalmente o da directiva Bolkestein. Com efeito, este último visava tornar possível o emprego de trabalhadores de um país da União Europeia no âmbito da prestação de serviços a serem realizados no país B, com as condições de emprego, de salário e de folha de pagamento de impostos do país A, país de origem do trabalhador, enquanto que no quadro dos trabalhadores destacados somente as condições na segurança social seriam as do país A . Durante a campanha de 2005, relativa à adopção do Tratado Constitucional Europeu, o exemplo clássico usado pelos adversários da Directiva Bolkestein tinha sido o do “canalizador polaco”. Com efeito, a fraqueza do salário mínimo polaco (€368,87) deixa augurar uma dimensão potencial do dumping social no seio dos países mais desenvolvidos da União Europeia.

 A teoria do trabalhador destacado

 Em teoria, a regra a aplicar aos trabalhadores requer que se vá pagar ao empregado no respeito das condições legais do país em que ele está a realizar a missão para a qual é destacado, ganhando assim o salário deste mesmo país. Essa configuração levaria a sugerir que o objectivo da directiva 96/71 /CE é só a de resolver as dificuldades de recrutamento das empresas nos empregos onde há tensão no mercado de trabalho, ou seja, onde há necessidades de recrutamento que não são satisfeitas. O argumento é relevante, mas não explica o motivo pelo qual as contribuições sociais são pagas no país de origem e pelas regras deste mesmo país.

A realidade é, porém, bem outra. O verdadeiro objectivo da União Europeia é não o de resolver o problema dos empregos ou profissões em tensão mas para impor a livre circulação dos trabalhadores, após ser conseguido alcançar a livre circulação de mercadorias. O sociólogo Gérard Mauger mostrou no seu último livro, Repères pour résister à l’idéologie dominante, a capacidade dos neoliberais em usarem as palavras para aplicar conceitos contrários ao seu significado original. Em especial, ele mostrou que a palavra reforma, que foi utilizada historicamente para expressar as conquistas sociais, se transformou hoje num conceito sinónimo de regressão social.

O raciocínio é o mesmo relativamente à livre circulação de pessoas e mercadorias. A priori, o facto de poder ir até onde o bom-senso nos parece que podemos ter ou a oportunidade de comprar ou de vender produtos em todo o mundo aparece particularmente benéfico. No entanto, há uma nuance que JM Keynes tinha perfeitamente analisado: “Portanto sinto-me mais próximo daqueles que desejam reduzir a interdependência das economias nacionais do que daqueles que desejam aumentar essa mesma interdependência. As ideias, o saber, a ciência, a hospitalidade, as viagens, devem, pela sua própria natureza, ser de caracter cada vez mais internacional . Mas produzamos no nosso país , sempre que isso for razoável e praticamente possível, e sobretudo façamos de modo a que a finança seja nacional”.

 Keynes mostra assim a diferença que importa saber fazer entre economia e cultura .

Quando o neoliberalismo se refere à livre circulação de mercadorias, é porque pensa colocar em concorrência os países da União Europeia na produção de mercadorias, ou seja, na indústria. A consequência lógica é um movimento de deslocalização de empresas dos países com exigências sociais, fiscais e ambientais mais fortes e em direcção aos países que têm este conjunto de exigências bem mais fracas. O exemplo característico deste fenómeno é a Alemanha que transformou o seu ‘Made in Germany’, num ‘Made by Germany”, sinónimo de deslocalização da sua produção para os países da Europa Oriental. Este fenómeno é acentuado pela impossibilidade e pela recusa dos países, vítimas destas deslocalizações, de se defenderem com a aplicação de políticas proteccionistas.

Estes riscos ainda tinham sido anteriormente bem compreendidos por economistas brilhantes. Na sua obra La mondialisation: la destruction des emplois et de la croissance, Maurice Allais tinha estimado que aproximadamente 50% do sub-emprego crónico da França entre 1995 e 1997 estava ligado à liberalização do comércio global. Neste livro, o Prémio Nobel de economia inquietava-se principalmente pelas consequências económicas de um possível alargamento da EU-15 a países em diferentes níveis de desenvolvimento económico.

«As ideias, o saber, a ciência, a hospitalidade, as viagens, devem, pela sua própria natureza, ser de caracter cada mais internacional. » J. M. Keynes

Bolkestein - II

O Lobo de Wall Street

«Simplesmente o facto de se aceitar que alguns funcionários possam trabalhar no território com um sistema de menor contribuição social constitui um de problema . »

Agora que foram analisados os efeitos da livre circulação das mercadorias, é certo que a livre circulação de trabalhadores deve ser abordada com tanta precisão. Os serviços são, na sua maioria, muito mais difíceis de deslocalizar que a produção de bens industriais. A aplicação de restrições idênticas à indústria e aos serviços requer pois a utilização de um outro procedimento. É com esta finalidade que o princípio dos trabalhadores destacados foi criado.

Simplesmente aceitar que alguns trabalhadores possam trabalhar no território com um sistema de contribuições sociais menos elevadas constitui um problema. Num universo fortemente competitivo, isso equivale a recompensar as empresas que empregam trabalhadores de países que praticam dumping social e significa igualmente penalizar as outras empresas. O risco é o de assim se poder levar a um alinhamento, pelos valores mais baixos, dos sistemas de protecção social nos países membros da UE.

Por esta via eliminam-se dois séculos de lutas sociais. Com efeito, como nos explicam os trabalhos de Erik Reinert um trabalhador chileno, um cabeleiro, por exemplo, ou um operário búlgaro da construção civil tinha uma produtividade semelhante à dos seus congéneres belgas ou italianos, franceses ou alemães. A única diferença que permite assegurar ao trabalhador francês um salário maior do que a de um trabalhador búlgaro ou chileno está relacionada com a capacidade da economia francesa de criar mais valor acrescentado que a economia chilena ou búlgara.

(continua)

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Para ler a primeira parte de Acordo Europeu Sobre os Trabalhadores Destacados, “1. Directiva Trabalhador destacado, Directiva Bolkestein; hoje, qual a diferença?”, que se acabou de publicar ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

RETRATOS DA EUROPA, RETRATOS DO MERCADO DO TRABALHO EN FRANÇA – ACORDO EUROPEU SOBRE OS TRABALHADORES DESTACADOS – por JÚLIO MARQUES MOTA

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