Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
A desilusão da política de austeridade
A política de austeridade como resposta à crise é uma grande mentira. Porque é que a Grã-Bretanha ainda acredita nisso?
Paul Krugman, The austerity delusion-The case for cuts was a lie. Why does Britain still believe it?
The Guardian, 29 de Abril de 2015
(CONCLUSÃO)
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Capítulo quarto Uma ilusão distintamente britânica
Nos Estados Unidos já não se ouve falar grande coisa a propósito do que o défice pode representar relativamente à enorme importância que o tema assumiu no debate nacional por volta de 2011. Alguns comentadores e organizações dos meios de comunicação ainda tentam fazer do défice orçamental um problema a assinalar a vermelho, mas é uma queixa, um lamento mesmo que soa às suas exortações. A época dos austerianos veio e foi-se.
Contudo, a Grâ Bretanha zig-zagueou como como de resto todos nós o fizemos. Em 2013, a doutrina austeriana estava numa vergonhosa retirada na maioria dos países – contudo nesse preciso momento muita da imprensa britânica declarava que a doutrina se confirmava como correcta. “Osborne ganha a batalha da austeridade,” anunciava The Financial Times em Setembro de 2013 e esse sentimento teve um enorme eco por todo o lado. O que é que estava a acontecer? O que é que confirmava o quê? Poder-se-ia ser levado a pensar que o debate britânico tomou um rumo completamente diferente porque a experiência britânica estava em desacordo com os desenvolvimentos verificados noutros lugares e – em particular, que o regresso da Grâ Bretanha ao crescimento económico em 2013 estava de uma maneira ou de outra em desacordo com as previsões da economia padrão. Mas estar-se-ia errado ao pensar assim.
Austeridade no Reino Unido
O défice primário ciclicamente ajustado, em percentagem do PIB
O ponto-chave para compreender a política orçamental sob a governação de Cameron e Osborne é que a austeridade britânica, ao mesmo tempo muito real e muito grave, muito profunda, foi principalmente imposta durante os primeiros dois anos da coligação no poder. O Gráfico 3 mostra as estimativas do nosso velho amigo, o saldo primário ciclicamente ajustado desde 2009. Inclui três fontes – o FMI, a OCDE e o próprio Office of Budget Responsibility – no caso de alguém querer argumentar que qualquer uma dessas fontes é parcial. Na verdade, cada uma delas conta a mesma história: os grandes cortes na despesa pública e um grande aumento dos impostos entre 2009 e 2011, nada mudou muito, depois disso.
Dado o facto de que a coligação parou essencialmente de aplicar novas medidas de imponente austeridade a seguir aos seus primeiros dois anos de governação, não há nada de surpreendente ao estarmos à vista de um reaparecimento do crescimento económico em 2013.
Olhemos para o gráfico 2 acima e, especificamente, no que aconteceu aos países que fizeram muita pouca ou mesmo nenhuma contenção orçamental. Na sua maior parte, as suas economias cresceram entre 2 e 4%. Bem, a Grâ-Bretanha não fez mais quase nenhuma pressão orçamental em 2014, e cresceu 2,9%. Por outras palavras, teve uns resultados mais ou menos como se deveriam esperar. E o crescimento dos anos recentes não muda nada quanto ao facto de que a Grâ Bretanha pagou um preço muito alto pela austeridade de 2010-2012.
Os economistas britânicos não têm nenhuma dúvida sobre os prejuízos económicos criados pela austeridade. O Centre for Macroeconomics em Londres regularmente faz inquéritos em painel com os principais economistas do Reino Unido sobre uma variedade de perguntas. Quando se perguntou se as políticas da coligação tinham promovido o crescimento e o emprego, aqueles que discordavam da politica estavam na razão de 4 para um relativamente aos que defendiam essas mesmas políticas. . Isso não é o nível da unanimidade em política orçamental que se encontra nos Estados Unidos, onde um inquérito semelhante aos economistas teve apenas 2% a discordarem da ideia de que os estímulos orçamentais praticados sob a Administração de Obama levou a maior produção e a um aumento do emprego do que prevaleceria de outra forma, mas é ainda um consenso esmagador.
Chegados aqui, alguns leitores estarão, no entanto, a abanar a cabeça e a declararem, “mas a economia está a crescer e Krugman a dizer-nos que isso não poderia acontecer sob a aplicação de políticas de austeridade.” Mas é a lógica keynesiana que nos diz que uma contracção orçamental única produzirá uma único choque directo sobre a economia não uma redução permanente da taxa de crescimento. Um retorno ao crescimento depois de austeridade ter sido colocada em espera não é de todo nada de surpreendente. Como o sublinhei muito recentemente: “se isto conta como um sucesso da política, porque não tentar bater em si mesmo repetidamente na cara por alguns minutos? Afinal, quem o fizer vai-se sentir bem quando parar.”
Nesse caso, contudo, porque é que meios de comunicação tão sofisticados tais como o FT estão a validar esta falácia brutal? Bem, se lerem com atenção o Financial Times ou outras peças jornalísticas similares, descobrem que estes se exprimem com muito cuidado. O FT na verdade nunca defendeu que a justificação económica para a austeridade era correcta . Declarou somente que Osborne tinha ganho a batalha política, porque o público em geral não compreende todo esta questão à volta das políticas de consolidação estrutural concentradas na fase inicial, ou em que é que interessa a discussão entre níveis e taxa de crescimento. Poder-se-ia ter esperado que a imprensa procurasse remediar tais confusões, em vez de as terem ampliado. Mas aparentemente não.
O que me conduz, finalmente, ao papel dos interesses em distorcer o debate económico.
Conforme sublinhou Simon Wren-Lewis de Oxford, no mesmo dia em que o Centre for Macroeconomics revelou que a grande maioria dos economistas britânicos discordava da proposição de que a austeridade é boa para o crescimento, o Telegraph publicou na primeira página uma carta de 100 dirigentes de empresas a declarem o contrário. Porque é que as grandes empresas preferem a austeridade e odeiam a economia keynesiana? Afinal, o leitor poderia esperar dos dirigentes empresariais que estes quisessem políticas que produzem fortes vendas e consequentemente, fortes lucros, igualmente.
Eu já sugeri uma resposta: o medo de falar da dívida e do défice é utilizado frequentemente como uma cobertura para uma agenda muito diferente, principalmente , uma tentativa de reduzir a dimensão global do governo (o volume das despesas públicas, o papel do Estado) e especialmente os gastos na Segurança Social. Isto tem sido transparentemente óbvio nos Estados Unidos, onde muitos planos supostamente de redução dos défices incluem fortes cortes em impostos ou na tributação de grandes empresas e dos mais ricos ao mesmo tempo que cortam nos cuidados de saúde, nos auxílios alimentares aos mais pobres. Mas há também uma motivação bastante óbvia no Reino Unido, se bem que não tão cruamente expressa. O “objectivo principal” de austeridade, o jornal Thelegraph admitiu-o em 2013, “é o de diminuir o volume das despesas públicas ” – ou, como Cameron o colocou num seu discurso mais tarde naquele mesmo ano, é o de tornar o Estado “mais magro… não agora, mas permanentemente”.
Além disso há uma questão mais fortemente tratada nos Estados Unidos por Mike Konczal do Instituto Roosevelt: os interesses dos negócios não gostam de economia keynesiana porque esta ameaça o seu poder de negociação política. Os dirigentes das grandes empresas gostam da ideia de que a saúde da economia depende da confiança, que por sua vez – é o que eles argumentam – requer que estes estejam contentes. Nos Estados Unidos havia, até à recente decolagem no crescimento do emprego, muitos discursos e artigos de opinião a argumentarem que a retórica do Presidente Obama era uma retórica anti-grandes empresas– o que só existia na imaginação da direita, mas não importa – e que isso era um entrave à retoma da economia. A mensagem era clara: não se devem criticar as grandes empresas, ou então a economia vai sofrer.
Mas este tipo de argumento perde a sua força se se reconhece que a criação de emprego pode ser alcançada através de uma política deliberada e promovida pelo Estado, através do défice, através da despesa pública, não através da graxa aos dirigentes empresariais, é que isso sim é a maneira efectiva de reavivar uma economia deprimida. No entanto, os interesses dos dirigentes das grandes empresas são fortemente inclinados a rejeitar a clássica macroeconomia e a insistir que é o estimular da confiança – o mesmo é dizer, fazendo-os então ficar felizes – que constitui então o único caminho possível a percorrer.
Se a oposição política não questionar a má política económica praticada pela coligação, quem o fará?
No entanto, todas estas motivações são as mesmas, seja nos Estados Unidos seja na Inglaterra. Porque razão nos Estados Unidos a força dos austerianos está a desvanecer-se enquanto que na Grã-Bretanha são ainda eles que conduzem o debate?
Tem sido surpreendente, do ponto de vista dos EUA, testemunhar a ausência de firmeza na resposta do Partido Trabalhista inglês à política de austeridade imposta pela coligação. A oposição na Grã-Bretanha tem-se mostrado incrivelmente disposta a aceitar as ideias austerianas de que os défices orçamentais são o maior problema económico que enfrenta a nação e mais, não têm feito praticamente nenhum esforço para contradizer a proposição extremamente duvidosa de que a política orçamental seguida sob Blair e Brown foi profundamente irresponsável – ou mesmo a afirmação absurda de que foi esta suposta irresponsabilidade orçamental que provocou a crise de 2008-2009.
Porque esta fraqueza, esta incapacidade da oposição? Em parte, esta fragilidade na crítica pode reflectir o facto de que a crise ocorreu com os trabalhistas no poder; os democratas americanos devem considerar-se com sorte pelo facto do Lehman Brothers não ter caído um ano mais tarde, com os democratas já na Casa Branca. Em teremos mais gerais, o centro-esquerda europeu parece preso numa espécie de repugnância à reflexão, incapaz de defender as suas próprias ideias. A este respeito, a Grã-Bretanha parece-se muito mais com a Europa do que com a América.
O paralelo mais próximo que posso dar do meu lado do Atlântico é a já velha fraqueza dos democratas na política externa – a sua aparente incapacidade em 2003 ou, então, em tomarem uma posição contra as ideias obviamente terríveis como a invasão do Iraque. Se a oposição política não questionar, não criticar, a economia nefasta da coligação, quem o fará?
Podemos ser tentados a dizer que tudo isto é a água que passa debaixo da ponte, tendo em conta o facto de que a coligação, qualquer que seja o que esta pode proclamar, efectivamente fez uma paragem na política de mais pressão na austeridade, a meio do caminho do seu mandato. Mas esta história não acabou. Cameron está a fazer campanha em grande parte sobre a pretensão espúria de ter “resgatado” a economia britânica – e prometendo, se ele ficar no poder, continuar a fazer cortes substanciais nos próximos anos. O Partido Trabalhista, é triste dizê-lo, está a dar eco a esta posição. Desta forma, podemos dizer que os dois principais partidos britânicos estão de facto a prometer uma nova vaga de austeridade que bem poderá levar a travar uma retoma da economia britânica que, até agora, não chegou nem de perto nem de longe a recuperar o terreno perdido durante a recessão e a fase inicial de austeridade.
Qualquer que seja a política, a economia de austeridade não é diferente na Grã-Bretanha relativamente aos restantes países avançados no resto do mundo. A dura austeridade nas economias deprimidas não é uma necessidade e fará grandes estragos quando é aplicada . Isso era verdade na Grã-Bretanha há cinco anos atrás – e ainda é verdade hoje.
Paul Krugman, The austerity delusion-The case for cuts was a lie. Why does Britain still believe it?. Texto publicado em Guardian e disponível em:
http://www.theguardian.com/business/ng-interactive/2015/apr/29/the-austerity-delusion
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Esse artigo é bastante elucidativo quanto à política econômica brasileira de 2015. Parabéns pela tradução e divulgação!