COMPREENDER A CRISE POLÍTICA FRANCESA, de ROMARIC GODIN

 

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

Compreender a crise política francesa

 

Romaric Godin, do blog Le Mouvement Réel, Comprendre la crise politique française

7 de Abril de 2017

Leitura. Num livro recente, Bruno Amable e Stefano Palombarini examinam precisamente as condições da desintegração da política francesa. Uma grelha de leitura relevante que destaca as limitações de uma grande aliança “reformista” e “pró-europeia” ao centro como sendo uma forma de resolver esta crise.

Independentemente do resultado, o episódio eleitoral francesa de 2017 inevitavelmente aparece como um grande linha separadora das águas na história política do país. O colapso inevitável de dois grandes movimentos históricos da Quinta República, reduzidos a um quarto dos seus partidários, enquanto as instituições nascidas em 1958 foram construídas para o bipartidarismo, é um sintoma de uma crise política de grande magnitude. Uma crise de onde sairá uma nova paisagem política, com base em novas divisões.

A política como relação sociológica do poder

É esta crise, que se iniciou na década de 1980, que analisam com precisão e algum distanciamento, dois economistas, Bruno Amable e Stefano Palombarini, num livro recente, L’Illusion du Bloc Bourgeois [*] . Uma leitura necessária para compreender os acontecimentos políticos que se estão a desenrolar à frente dos nossos olhos. Os dois autores entendem a política como um conjunto de relações de força sociológica do poder. ” Um país, eles dizem , não escolhe o seu destino na sequência de uma deliberação coletiva e racional, nem confia o seu futuro aos líderes iluminados que decidem por ele.” O véu é pois rasgado desde o início sobre a realidade da escolha democrática: essa escolha é determinada pela criação de “blocos sociais” que são capazes de definir os interesses comuns e, portanto, de se aliarem, para construírem maiorias.

O tempo dos dois « blocos »

Se o sistema bipartidário francês foi capaz de opor na década de 1970 – e, em parte, na década de 1960 – um “bloco de esquerda” a um “direito de direita”, foi porque cada lado foi capaz de encontrar um compromisso aceitável entre estas componentes sociológicas. Os trabalhadores comunistas e os empregados e funcionários socialistas poderiam aceitar, mesmo depois de se quebrar a breve “união da esquerda”, uma unidade baseada em interesses comuns: o de uma maior intervenção do Estado na economia e o de uma política de redistribuição generosa. Este compromisso foi construído por François Mitterrand durante o famoso congresso de Epinay 1971, onde ele consegue realizar uma síntese entre as principais componentes da esquerda não comunista. Nesse momento, o PS – ao contrário da defunta SFIO – tornou-se um parceiro aceitável para o PCF. O “Bloco de Esquerda” tornou-se sociologicamente forte e capaz de ganhar, o que conseguiu dez anos depois.

Em face disto, a direita poderia – voluntária ou involuntariamente – manter um “bloco social” em torno da ideia de um Estado protetor das   empresas e não pretender  ” apropriar-se delas “, recusando pois as nacionalizações, e também em torno da ideia de aplicar uma política de cortes de impostos. Esta posição permitiu  captar para as suas fileiras gestores e quadros médios bem como os rurais. Apesar das divisões UDF-RPR, este “bloco” social manteve-se consistente. No geral, este sistema tem sido posto em prática desde 1958 e impôs-se na década de 1970. E este sistema que está em clara agonia nos nossos dias.

O fim dos dois “blocos”

O que aconteceu? Para ambos os autores, essa bipolaridade sofreu uma pressão interna que finalmente explodiu. Esta pressão é em si o resultado de dois fatores externos: a evolução do capitalismo no sentido da sua forma financeirizada e ultra-competitiva e a questão europeia. Estas duas evoluções têm dado a mão a uma das componentes dos dois blocos, os “modernistas”, maioritários à esquerda, e os “neoliberais” maioritariamente à direita. Esses dois movimentos impuseram-se politicamente nos seus blocos, dando um peso desproporcionado na prática política às classes média e alta, as mais favoráveis a estas políticas. Este fenómeno conduziu assim a uma grande contradição: para serem eleitos, os dois blocos continuaram a usar a síntese sociológica da década de 1970, mas, uma vez eleitos, as “classes populares” (definidas pelos autores como aqueles que desempenham um papel de subordinação ao trabalho) que, tanto à direita como à esquerda, procuram a proteção do Estado, foram esquecidas. Aos poucos, essas classes têm, portanto abandonado o seu “bloco” original para se refugiarem na abstenção ou no voto na Frente Nacional, que se aproveitou do vazio assim criado para construir um discurso híbrido e com ele atrair os desiludidos dos dois blocos. E gradualmente tornou-se inevitável uma síntese entre os “modernistas” e os “neoliberais”, a que os autores chamam de “bloco burguês”.

A escolha do “modernismo”

Segundo os dois autores, esse fenómeno não é, contudo, um fenómeno imposto por fora ou “natural”. É o resultado de escolhas conscientes. À esquerda é a “viragem da austeridade” em 1983, que decidiu a vitória dos “modernistas”. Estes, desde então têm dominado o PS. Esta escolha foi justificada pela “construção europeia” numa forma de chantagem: ou a Europa e o seu neoliberalismo ou então nada. Foi Jacques Delors, que, de acordo com os autores, quem melhor encarna essa escolha que, de forma irrevogável, levaria a um divórcio entre o PS e as classes populares e, portanto, levaria à implosão do “bloco de esquerda”. Os referendos europeus de 1992 e especialmente o de 2005 foram os dois momentos fundadores desta rutura.

François Hollande e a morte do PS

Em 2002, o sistema bipartidário francês mostrou sinais de desaceleração. O dia “21 de abril” era a prova de que o PS não poderia alcançar a união das classes trabalhadoras e das classes médias. François Hollande tinha no entanto sido bem sucedido em 2012, em fazer pela última vez a síntese de Epinay. Assumindo um discurso de refundação da Europa e de um forte combate contra a finança, Hollande conseguiu unir as classes populares. Os dois autores explicam esta persistência do bloco de esquerda pela capacidade de PS em se concentrar em ” reformas neoliberais que não iriam imediatamente atingir o potencial de unificação do bloco de esquerda “, como por exemplo a reforma dos mercados financeiros ou dos mercados mercadorias. Mas uma vez eleito, François Hollande atingiu os limites dessa estratégia, ele tinha que tocar a fundo no coração do sistema, na relação de trabalho com as leis Macron e El-Khomri. Isto pôs em grande relevo a contradição do PS que perdeu o apoio das classes populares. Enquanto isso, do outro lado as classes sociais favoráveis às reformas consideravam que  o PS, bloqueado na sua contradição, já não parece ser capaz de “prosseguir as reformas necessárias.” A sua relevância no quadro neoliberal desaparece e é isto que explica quer a renúncia de François Hollande em tentar a sua reeleição quer a incapacidade de Benoît Hamon em convencer o eleitorado.

A tentação do “bloco burguês”

Agora, a ambição “modernizadora” ou “reformadora” deve necessariamente assumir a sua base sociológica. É isto que uma parte do PS tenta fazer desde há vários anos, reivindicando o “divórcio” com as classes populares agora definidas agora como “intelectualmente de direita”, uma vez que rejeitam a construção europeia. Na realidade, esta identidade é bem ela o resultado dessa escolha da identificação da construção europeia com o neoliberalismo. Enquanto as classes populares de imediato terão apenas rejeitado as políticas neoliberais da Europa, estas acabaram por aceitar esta identificação imposta pelos “modernistas” e tornaram-se eurocéticos.

Este divórcio exige agora aos “modernistas” que encontrem aliados algures, principalmente à sua direita, onde uma parte da classe média aceita as “reformas” e a Europa tal como ela é. É a esta aliança que os dois autores chamam de “bloco burguês”. Este “bloco” é hoje claramente encarnado por Emmanuel Macron, que apelou “a que se ultrapassem as divisões entre esquerda-direita” e que tenta uma síntese entre os “modernistas” de ambos os lados. Para os autores, este bloco burguês, contudo, não é a solução, porque a sua base sociológica é muito fraca, cerca de um quarto do eleitorado. Deve, portanto, ser alargada por promessas para com os estratos sociais que se vão encontrar entre as “vítimas” da política neoliberal. Daí futuras deceções.

A divisão entre esquerda-direita persiste

Na lógica do “bloco burguês” a vida política vai-se reestruturar apenas em torno da questão da soberania, entendida como a quinta-essência de tudo o resto. Ser-se-ia, portanto, favorável às “reformas” pró-europeias por oposição aos soberanistas que defendem à manutenção do Estado de bem-estar. Vemos, além disso, no seio das equipas de Emmanuel Macron, como nos círculos próximos da FN, esta vontade de reduzir tudo à questão da soberania e de organizarem um frente-a-frente deste tipo na primeira volta. Mas, dizem os autores, a divisão direita-esquerda ainda é relevante. Os soberanistas de direita não rejeitam de forma nenhuma as “reformas” liberais, o que lhes alienam os seus homólogos da esquerda. Mesmo dentro da FN, a conversão para o Estado Providência, que nega o essencial da história do partido, parece sobretudo ser o resultado de um “transformismo”,  nome italiano a significar um puro  oportunismo político. A mesma coisa no polo pró-europeu, onde uma parte da esquerda não renunciou ainda a mudar ou a reconstruir a Europa. A primazia dada à questão da soberania não irá resolver o problema social.

Jogo complexo a quatro

A oferta política francesa é, assim, organizada em torno de quatro áreas à priori irreconciliáveis: soberanismo de esquerda; soberanismo de direita; europeísmo de esquerda e europeísmo de direita. Certamente, a oferta política tem dificuldade em se organizar em torno destes polos durante esta eleição presidencial. Se o “bloco burguês” visa a junção estas duas últimas componentes, a distância entre Benoît Hamon, François Fillon e Emmanuel Macron, todos os três “pró-europeu” mostra os limites deste exercício. De momento, tanto à direita como à esquerda, a questão europeia impede toda e qualquer reformulação dos antigos “blocos”. O futuro do país dependerá da capacidade destes quatro polos encontrarem uma base social suficiente para formar uma maioria estável no país, ou, por outras palavras, uma maioria que não seja uma maioria de circunstância, como em 2002, ou uma maioria  efêmera como foi a maioria alcançada em 2012. Até essa base não ser encontrada, a crise política vai continuar.

As fraquezas do “bloco burguês”

Não é certo que o “bloco burguês” de Emmanuel Macron seja capaz de responder a um tal desafio. Claro, a França já teve um tal bloco sob a quarta república, quando, para bloquear o caminho de poder aos comunistas como aos gaullistas, os socialistas, radicais e democratas-cristãos poderiam-se aliar. Mas a base social deste “bloco burguês”, era então muito mais ampla e se definia também ela numa visão mais ampla: a da “defesa do mundo livre” num contexto de Guerra Fria e de persistência a Ocidente de regimes autoritários. A função social do “bloco burguês” do século XXI que os autores consideram é muito diferente e é por isso que este bloco pode não passar de uma enorme ilusão.

Uma grelha de leitura útil

Este pequeno livro é, em todo o caso, de uma densidade que convida à reflexão sobre o estado atual da política francesa. Ele deixa claro algumas realidades desta campanha como o fracasso do PS ou o caráter impossível da reformação do “Bloco de Esquerda” constituída a partir de uma aliança entre Jean-Luc Mélenchon e Benoît Hamon. É também um elemento necessário de reflexão para o que se seguirá a este episódio eleitoral e que será, sem dúvida, um momento crucial na crise política francesa. O quadro interpretativo aqui proposto para a França merece, no entanto, ser alargado a outros países europeus, onde o desenvolvimento do capitalismo moderno tem provocado profundas decomposições políticas, todas elas bem singulares, mas frequentemente marcadas pelo desaparecimento da social-democracia e pelo enfraquecimento da direita tradicional.

Romaric Godin , blog Le Mouvement Réel, Comprendre la crise politique française. Texto disponível em :

https://lemouvementreel.com/

[*] B. Amable et S. Palombarini, L’Illusion du Bloc Bourgeois, Ed. Raisons d’Agir, 176 pages, 8 €.

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Ler o original em:

https://lemouvementreel.com/2017/04/07/comprendre-la-crise-politique-francaise/

 

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