Legislativas : para uma Assembleia (verdadeiramente) nacional, por Gil Mihaely

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Legislativas : para uma Assembleia (verdadeiramente) nacional

Se não houver maioria, Macron deverá ter em conta a opinião pública.

gmihaely

Por Gil Mihaely,  historiador e  diretor da revista Causeurlogo CAUSEUR

Publicado em 9 de junho de 2017 / Politique, http://www.causeur.fr/legislatives-assemblee-nationale-representative-scrutin-44624.html

Os resultados das presidenciais criam as condições da emergência de uma Assembleia mais representativa da diversidade política do país. Se tal for o caso, e na ausência possível de uma maioria às ordens do Eliseu, o presidente será forçado a governar tendo em conta a opinião pública.

França Legislativas 2017
Assemblée nationale. Crédit photo : DeNoyelle/Godong/Leemage

Todas as sociedades são atravessadas por conflitos, e a missão da política consiste em civilizá-los. Esta generalidade vale evidentemente para a França, ainda que, no nosso país a divisão tenha frequentemente assumido contornos de verdadeira guerra civil: entre “monárquicos” e “republicanos”, “esquerda” e “direita”, “mundialistas” e “patrióticos”. A cartografia eleitoral francesa revela, de resto, a persistência de pelo menos duas Franças: a do Nordeste e a do Sudoeste, separadas por uma fronteira invisível que vai da Mancha aos Alpes. Mesmo Júlio César, contemporâneo de Astérix e Obélix, tinha-o confirmado, ao ponto de começar os seus Comentários sobre a guerra da Gália com estas palavras: “Toda a Gália está dividida… ” O nosso problema não reside por conseguinte tanto nas nossas divergências de interesses e de pontos de vista mas sim na maneira como se organiza a discórdia. Ora, a discórdia francesa está hoje muito mal organizada.

Pense-se o que se pensar da Frente Nacional e de Marine Le Pen, que os seus milhões de eleitores sejam representados por dois deputados e dois senadores não é somente um escândalo democrático, é também uma verdadeira deficiência do país. A sobrerrepresentação das outras correntes de ideias e de partidos fantasmas não faz senão agravar a fraca legitimidade da política nacional. Esta falta de legitimidade é sem dúvida o mais grave dos défices que abalam a França. De resto, todos os outros défices – dívida pública, balança comercial negativa e orçamentos desequilibrados do Estado – encontram a sua raiz na incapacidade de agir dos governantes, o que verdadeiramente está ligado a esta fraqueza democrática.

Nem representatividade, nem eficácia

O paradoxo, é que esta impotência política, que está na origem da fraca legitimidade dos nossos governantes, resulta de uma vontade de reforçar o executivo. Em 1958, após uma série de crises pós-coloniais (Indochina, Suez e sobretudo a Argélia), a França apelou a um grande homem. Ele exigiu poder cortar na representatividade das instituições democráticas a fim de reforçar a estabilidade e a capacidade de governar do executivo. E o país aceitou esta negociata.

Após a partida de De Gaulle, este novo sistema funcionou, umas vezes bem outras vezes mal, durante um pequeno quarto de século, até que as legislativas de 1986 e a coabitação que se instalou expuseram as suas fraquezas à luz do dia. A longa década de Chirac – com o conflito social de 1995, a dissolução de 1997, os cinco anos de coabitação e o 21 de abril de 2002 – nada mais fez do que confirmar a gravidade do mal. Esta lógica chegou ao seu fim, com a adoção do mandato presidencial por cinco anos, aprovada por referendo em 1999.

Como o confirmou Mitterrand à sua chegada ao poder em 1981, os Franceses são consequentes. Desde 2002, por três vezes atribuíram, de maneira quase automática, uma maioria ao presidente que tinham eleito – e que beneficia já de uma margem de manobra constitucional considerável. Ora, é-se forçado a constatar que esta situação, teoricamente muito favorável à ação, não produz os resultados esperados: desde há cerca de trinta de anos, o balanço das presidências sucessivas é mais que magro, é magríssimo. Dito por outras palavras, o sacrifício consentido em termos de representatividade não conduziu aos benefícios esperados em termos de eficácia.

Conjugando impotência política e falta de representatividade, a França encontra-se hoje, por conseguinte, perdedora sobre os dois tabuleiros. A estabilidade em contrapartida está assegurada: confortavelmente instalado em Faubourg Saint-Honoré durante cinco anos, a impotência, ainda que extremamente impopular, é inamovível. Como explicar esta aberração francesa? Pela falta de legitimidade. Com efeito, a legitimidade é a chave do consentimento, que é ele mesmo a condição sine qua non de uma ação eficaz. Ora, em democracia, a legitimidade da ação política depende intrinsecamente da representatividade da maioria que a apoia: aceita-se mais facilmente decisões desagradáveis e criam-se menos obstáculos à sua aplicação quando se pensa que esta ação é desejada pela maioria dos cidadãos.

Um presidente em roda livre

O nó do problema deve, por conseguinte. ser menos procurado do lado do poder executivo que do lado da fraqueza e do disfuncionamento do sistema legislativo: mesmo que o presidente chegue a ter uma maioria na Assembleia Nacional, é cada vez mais claro que esta maioria não representa o país. Ora, se um presidente é, por definição, eleito por mais de 50% dos eleitores, o sistema de duas voltas não gera a adesão ao projeto. Assim, os candidatos que não seduzem mais de 20 a 30% dos eleitores (o seu resultado da primeira volta das presidenciais) podem obter, semanas depois de terem entrado no Eliseu, as chaves da França por cinco anos.

Não são as piscadelas de olho enfadonhas que dirigem a tal ou tal fração do eleitorado entre as duas voltas que podem constituir a base de um pacto maioritário. E tão pouco os acordos pré-eleitorais negociados entre grandes e pequenos partidos com o propósito das investiduras: na ausência de uma relação de forças real, nada obriga o presidente eleito a manter os seus compromissos.

O mesmo é dizer que, uma vez ganha a presidência, a jogada está feita. O chefe do Estado, que tem todas as possibilidades de ter uma maioria graças à racionalidade dos eleitores, pode barricar-se no Eliseu, sem escutar ninguém, exceptuando misteriosos visitantes ao serão que têm frequentemente mais peso que os três quartos dos eleitores.

Nestas condições, é quase impossível tomar medidas dolorosas que não seduzem senão uma pequena minoria dos eleitores. O pior ainda, face aos obstáculos, o presidente da República não tem verdadeiros parceiros com os quais negociar. Numa democracia que funciona, são os chefes dos partidos representados no Parlamento que desempenham este papel de parceiros/adversários com os quais o executivo eleito deve encontrar um compromisso e elaborar um programa suscetível de recolher o apoio de uma maioria. É o princípio de qualquer coligação, até aí impossível, a estabelecer na França, porque o que falta ao nosso país mais que qualquer outra coisa, é um verdadeiro Parlamento onde se sentariam os representantes das principais correntes de pensamento e grupos de interesses do país.

Transcender as divisões

Atualmente, o programa presidencial é negociado, certamente, mas nas piores condições; em cima do joelho e/ou em segredo. É assim que, em vez a ser negociada a montante, a lei EL Khomri foi diluída a jusante, num contexto de greves e de manifestações em série tendo como únicos parceiros sindicatos fracamente legítimos. No seio de um sistema político mais representativo, este texto essencial teria sido objeto de duras negociações com partidos que, uma vez o compromisso adquirido, tê-lo-iam apoiado com todo o seu peso.

Contudo, a vitória de Emmanuel Macron cria talvez, pela primeira vez desde há muito tempo, as condições da emergência de uma Assembleia nacional verdadeiramente representativa e uma relação de forças que obrigam o presidente eleito a negociar a criação de uma coligação que não será nem uma maioria automática nem uma coabitação. É num Parlamento deste tipo que uma maioria dos Franceses se reconhecerá e que a França dos do topo, a França dos ricos, e a França dos de baixo, a França das classes trabalhadoras, poderão alimentar o diálogo político e social que nos faz hoje falta e de modo bem dramático.

O importante não é saber se estamos a entrar na IV, VI ou na XVIII República, mas encontrar urgentemente instituições permitindo às diferentes Franças, que existirão sempre, transcenderem as suas diferenças numa ação política mais legítima e eficaz.

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