Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
8. Sobre a democracia e populismo: contrarréplica a McCormick, Del Savio e Mameli. (2ª parte)
Por Nadia Urbinati (*)
Publicado por MicroMega Il Rasoio di Occam, em 2 de dezembro de 2014
Se estamos interessados, como me interessa a mim e aos meus interlocutores, falar da mutação anti igualitária das sociedades democráticas, devemos levar o discurso para além da política e dos seus procedimentos. Devemos evitar dar à democracia responsabilidades que pertencem e são do sistema económico de capitalismo global. O populismo de hoje é o reflexo da fraqueza dos estados nacionais, que já não têm o poder de ordenar, negociar, construir planos industriais ou planos energéticos, que não conseguem fazer políticas de redistribuição e de justiça social porque os seus executivos e os seus Parlamentos estão fortemente condicionados pela chantagem dos interesses bancários. Poderíamos dizer que as tensões sociais que crescem dia a dia são o sinal do compromisso que se quebrou entre trabalho e capital, compromisso que, após a Segunda guerra mundial, acompanhou o nascimento das democracias europeias. Dentro deste contexto, o dos estados nacionais, capital e trabalho eram dois atores sociais bem organizados bem e protagonistas de uma negociação a não poder deixar de ser feita e que não era de soma nula.
O fim da Guerra fria, que de qualquer modo impunha fronteiras ao mundo, alterou por sua vez as nossas sociedades. Até porque sobre o mapa existiam estas fronteiras, no interior do nosso mundo era possível por parte de quem trabalhava fazer perguntas e obter respostas. Não sendo um mundo globalmente aberto, não era possível aceder à força de trabalho a custo zero no quarto ou no quinto mundo para se acumular mais lucros. Estas fronteiras – para os que estavam no primeiro mundo, onde tinha renascido a democracia – tinha-se criado bem-estar, tinha-se tornado possível o controlo e o exercício do poder democrático e o equilíbrio entre as classes sociais. O mundo aberto é um mundo maldito para quem não tem poder. Um mundo sem fronteiras tem sérias dificuldades para ser governado com a arma do direito e para cultivar a igualdade sobre a qual assenta a democracia. Um mundo sem fronteiras é uma boa coisa para quem tem poder económico. É péssimo para quem não tem este poder. Por exemplo, para aquela faixa de população que se encontra em concorrência com outros trabalhadores, como os chineses ou os trabalhadores do sudeste asiático ou africanos, os quais poder é coisa que não têm, e muito menos têm ainda direitos sociais e sindicais, e que fazem concorrência ao trabalho ocidental protegida por direitos.
É aqui que está o núcleo do problema que os movimentos populistas põem à luz do dia, mas resolvem-no da pior maneira possível quando apontam o dedo acusador contra os imigrantes, e propõem retirar os direitos a quem não faz parte da comunidade de idênticos. Quando redefinem os espaços da política num modo todo ele identitário: o patamar à frente da casa, a vida no bairro, na região, na nação. E então, o diferente, (que fala uma outra língua, que tem uma religião de minoria, que fala um dialeto não idêntico) torna-se o inimigo. E, entretanto, quem tem o poder de manobrar as decisões permanece na sombra, distante e invisível.
Para muitos dos nossos populistas, o inimigo é o vizinho de casa, o imigrante, o muçulmano, o cigano. O populismo torna-se, assim, no emprego da ideologia do povo por parte de uma liderança determinada, que em nome desta ideologia justifica políticas de exclusão e autoritárias. Uma oligarquia de poucos, em suma, que procura o apoio de uma larga maioria, e frequentemente encontra-o, quando esta maioria é feita de cidadãos de uma nação que sofrem uma diminuição dos direitos e do bem-estar. Certamente, é um apoio que se ganha mesmo fazendo coisas louváveis: Peron criou a classe média argentina, construiu uma forte classe de empregados de Estado, criou para eles condições materiais de vida dignas, deu-lhes escolas… o todo, à custa de umas outras tantas coisas, desde a liberdade política, à divisão dos poderes, ao governo da lei… em suma, o populismo pode certamente ser um “grito de dor”, como escreve McCormick, mas raramente pode ser uma boa cura para esta dor.
Se pensarmos que a desigualdade económica é o problema, então é mesmo necessário ir para além das propostas quanto aos procedimentos. Voltamos a falar de luta de classes: isto parece-me bem mais relevante do que a proposta muito problemática como é a construção teórica de duas classes, a de uns poucos e a de muitos (e quantos degraus são admitidos entre os muitos? E porque é que o limiar do rendimento proposto por McCormick para discriminar os poucos e os muitos deveria ser aceite como bom?). Estas políticas “romanas” ou massificantes são problemáticas e não são menos arbitrárias que as existentes e classistas porque introduzem outros planos de discricionariedade que talvez sejam o pior dos remédios.
É, por conseguinte, incorreto colocar no terreno dos procedimentos um problema que é económico e de classe. Pensa-se realmente que suprimindo o mandato livre se consegue a justiça na sociedade como pensam Savio e Mameli? Pensa-se realmente que substituindo o referendo e o plebiscito às eleições dos representantes se resolve o problema da dominação do capitalismo financeiro sobre os estados? A história dá-nos exemplos contrários: para a democracia plebiscitária voltaram-se precisamente aqueles que em nome dos interesses do povo ou da nação se aproveitaram para se substituírem à velha classe dirigente. A posição do Savio e Mameli para além de ter lacunas é ingénua. E é uma falta de lógica, digamos, é uma via sem saída. Com efeito, de um lado acusam-me de querer empregar os procedimentos para defender o status quo capitalista (!!) e de propor uma democracia não substancial mas sim formal e processual, e, por outro, propõem-se resolver a desigualdade de classes com soluções que são apenas processuais (Marx criticá‑los‑ia de reformismo ingénuo). Em suma acusam-me de defender o capitalismo, porque defendo o mandato livre e seguidamente, em vez de terem a coragem de verem até onde as suas premissas os poderiam levar (ou seja, ao Estado e revolução de Lenin), propõem simplesmente reescrever o artigo 3 da Constituição italiana!
Mas, se de fato os procedimentos são assim de tão somenos importância, se eu sou acusada de defender o status quo, porque defendo que a democracia vive nos procedimentos, então não entendo porque é que os meus críticos acabam por propor a reforma dos mecanismos processuais (precisamente o mandato imperativo e o plebiscito). Mas, com o devido respeito pela sua vontade reformadora, acho que preferia a atual redação do artigo 3 da nossa Constituição. A nova redação é de facto tão aberta à interpretação discricionária que deixa para os juízes ou para a maioria ou para a força, um poder exorbitante de interpretação. Aqui está o texto modificado do segundo parágrafo do artigo 3.º:
“É pois responsabilidade da República remover os desigualdades económicas e sociais que interferem com a igualdade de participação de cidadãos na organização política, económica e social do país …”. A expressão “as desigualdades económicas e sociais que interferem” é uma ampla porta aberta à discricionariedade – na verdade, quem decide quais são “as” desigualdades que “interferem” com a participação igualitária? Uma constituição deveria permitir resolver os desacordos e não estar a incentivá-los: esta reescrita seria um desastre, uma porta aberta às hostilidades, porque em democracia ninguém tem na mão a balança política para decidir sem sombra de dúvida, “quais são” essas desigualdades que “interferem ” com uma decisão voluntária de participar (ou de não participar?). À reforma do artigo 3 proposta pelos novos populistas devemos preferir as palavras de Lelio Basso, que não era um político, mas um processualista político, muito atento às condições de participação política. Entre elas, a do dinheiro.
De acordo com os meus leitores, a do dinheiro privado em política seria apenas um pequeno problema, ou ainda um não problema. No entanto, estamos a assistir a uma transformação oligárquica da política que vai fazendo o seu caminho injetando dinheiro privado: com isto se obtém a privatização dos partidos, a privatização dos deputados eleitos, a privatização dos meios de informação. Confrontados com este massacre do que é público e do que é a política democrática, os populistas não desarmam: o que lhes interessa é que se façam mais plebiscitos e mais referendos!
Nadia Urbinati, Su democrazia e populismo: controreplica a McCormick, Del Savio e Mameli. Texto disponível em:
(*) Nadia Urbinati (Doutorada, pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, 1989) é uma teórica política especializada em pensamento político contemporâneo e moderno e das tradições democráticas e anti-democráticas. Ensina na Universidade de Columbia Workshop on Politics, Religion and Human Rights e ensinou no seminário Political and Social Thought. É co-editora com Andrew Arato do jornal Constellations: An International Journal of Critical and Democratic Theory. Membro do comité executivo da fundação Reset Dialogues on Civilization-Istanbul Seminars. Vencedora do prémio de 2008-9 Lenfest/Columbia. Commendatore della Repubblica em 2008 pelo Presidente da República Italiana. Em 2004 o seu livro Mill on Democracy recebeu o prémio David and Elaine Spitz. Autora de Representative Democracy: Principles and Genealogy, e Mill on Democracy: From the Athenian Polis to Representative Government, Le civili libertá: Positivismo e liberalismo nell’Italia unita, Individualismo democratico; e Ai confini della democrazia: opportunità e rischi dell’universalismo democratico. Publicou numerosos artigos em revistas e jornais. Editorialista no jornal La Repubblica e colaboradora no I/ Sole24ore.
http://polisci.columbia.edu/people/profile/114
Dois de nove comentários
silvano escreve:
2 de dezembro de 2014 às 14:05
Aviso prévio: não sou senão um simples cidadão que procura estar informado sobre a evolução política.
Que depois da guerra, a democracia representativa italiana (a que conheço) tenha sido até certo ponto mediadora das relações de classe entre capital e trabalho, e assim desempenhou o seu papel, poderá ter acontecido, mas por pouco tempo: com a passagem do PCI para o campo capitalista seguramente não mais desempenhou esse papel uma vez que o capital tornou-se hegemonicamente incontestado nos meios de controlo, na formação cultural e orientação social; a igreja e os meios de comunicação foram e são os meios de condicionamento que determinam o âmbito do debate e da ação política. Os representantes eleitos já não são mais do que falsos representantes da luta de classes e o resultado foi a plena liberdade destruidora do capital contra os direitos e o ambiente. Pode-se chamar democracia, ainda que com votações periódicas (além disso com leis eleitorais manifestamente concebidas para retirar peso às poucas forças antagonistas), a esta estrutura processual??. A ausência de limites temporais à representação gerou uma oligarquia corrupta capaz de selecionar e cooptar por intermédio dos partidos o pessoal político fiel a essa mesma oligarquia (esta expressão é já por si mesma muito significativa). Somente se poderá sair desta situação (provavelmente similar em muitas nações) reduzindo o poder da representação nas instituições através de formas de expressão popular diretas (referendum sem quorum, limitação a 2 legislaturas, revocação, consultas referendárias vinculativas a nível local para quaisquer propostas que modifiquem profundamente o território, os serviços públicos ou que impliquem despesas para além de determinado montante). O território nacional e os recursos públicos foram em grande parte sacrificados aos interesses privados através desta falsa democracia dos representantes. Estes são os factos que impõem uma superação democrática da “democracia” liberal visto que doravante o planeta não aguenta fisicamente a ideologia capitalista (o capitalismo é inevitavelmente oligárquico pela sua natureza).
Interessante a definição do prof. Cavalli-Sforza: des de que a humanidade pôde acumular recursos com o advento da agricultura teve início o domínio por parte da cleptocracia; um pouco mais, um pouco menos, mas foi e é sempre assim.
eduardo d’errico escreve:
2 de dezembro de 2014 às 17:15
Tenho a impressão que os “contendores” quando falam de populismo referem-se a significados diferentes da palavra. E assim acabam por falar de coisas diversas. Para mim, populismo é um MÉTODO . Enquanto tal pode ser utilizado por forças e moovimentos diversos, não necessariamente definíveis tout court como populistas. O nazismo, o fascismo, o estalinismo utilizaram abundantemente o instrumento populista sem que possam ser definidos como “populismos”. O mesmo, penso, deverá dizer-se da Venezuela de Chavez, que Urbinati cita. O apelo ao povo contra as elites económicas e políticas ppoderá ter um rosto “democrático” (os Gracos, parte “democrática” oposta aos senadores, e mais em geral os líderes daquela parte -a “plebe”-utilizavam o populismo como instrumento principal de luta política). Na verdade o populismo representou, historicamente, o instrumento indispensável de luta para mobilizar as classes subalternas, nas quais os indivíduos estavam privados, por definição, da capacidade e dos instrumentos culturais e críticos (além dos “direitos”), que lhes permitissem conduzir o conflito político e social com as armas da democracia representativa. Coisa que, demasiadas vezes, acontece também hoje.