A GALIZA COMO TAREFA – 12 de Outubro – Ernesto V. Souza

Na cozinha da casa vou picando cebola, pimentos, tomate, para combinar com curry, coentro, orégano, gengibre, qualquer outro tempero que ache no caixão, e aproveitar umas mangas que amadureceram demais e servem de base para um chutney.frigideira

Gosto de ir cortando com a faca retangular chinesa os pedacinhos e e ir fazendo moreínhas coloridas e diversas sobre a tábua. A minha cozinha é branca, com peças de madeira de carvalho, grande e cómoda; e a mim relaxa-me preparar as refeições. Aí, e no meio dos meus livros, brincando ou de conversa com os cativos, com as minhas ferramentas, tenho um refúgio.

Nestes últimos 10 anos, de mais em mais, na minha vida inadequada de emigrante, tenho ido desligando de tudo, desativando-me e afastando-me, da Galiza e da pesquisa. Houve um tempo em que a República espanhola, o nacionalismo galego de antes da guerra, as Irmandades da fala, o exílio, a maçonaria, a repressão genocida, os livros galegos e as editoras de antes do 36 ocupavam o meu mundo. Papéis, arquivos, testemunhas, dados,  notas de horas em bibliotecas, acumulavam-se, arrumadinhos, como os elementos das mais variadas receitas enquanto a minha cabeça ia improvisando e experimentando com eles.

Cada vez agacho-me mais nestas cousas. A cebola e o alho, o cheirinho da especiaria, algo de jazz, evadem a minha mente. Como os bons livros ou a carpintaria. Conversar, por aí fora é quase impossível. Catalunha, bandeiras, patriotismo, besteiras. Eu procuro falar do tempo. A malta, a pouco que te despistes, na rua, nas cafeterias, nos trabalhos, exibe bandeirinhas e fala com tópicos de “mano dura“, “una ostia a tiempo“… 155, tanques… enfim… demais.

Eu não sei como explicar-lhes, é impossível, que a independência já aconteceu. É a gente, mobilizada, nas ruas. A ocupação a provocou. Formalize-se ou não, aplique-se o 155, ocupe-se a Catalunha, demore, a Europa ignore, venha o caos… mas nunca mais e em gerações o Estado espanhol recupera qualquer legitimidade na Catalunha.

E a esquerda espanhola? no canto de subir ao carro do protesto e tomar rumo à República apanhou o da bandeira. Nunca tão evidente me pareceu aquilo que uma vez me disse um velho exilado no Uruguai: “as bandeiras nacionais separam gente de ideologia afim, o ateísmo, como a religião, une gente de diferentes classes sociais…” falávamos da I Guerra mundial e da desativação da esquerda na Alemanha, Inglaterra e França que terminou convertida na carne de canhão nas trincheiras.

O que me verdadeiramente deprime é ver a gente arredor: pais e mães, mais ou menos normais, companheiros/as de trabalho, tragando com os discursos incendiários de jornalistas, artistas, intelectuais, não compreendendo nada, não escutando; e aceitando que caminham de mãos dadas com fascistas.

Durante uns anos foi de mau gosto, socialmente não eram possíveis dizer as cousas que agora se normalizam. Eram cousas fachas, como a bandeira, e a gente era moderna. Mas estavam aí e, aos poucos e a nadinha que se agitasse a superfície, apareciam.

Que país é este? onde a gente de bem aceita os trágala de sempre, as dicotomias eles (a por ellos) e nós… e afinal prefere andar da mão e sob a mesma bandeira com fascistas que exibem os seus punhos e paus e cantam o Cara al sol desejosos de passar à ação?

Sempre soubemos que a ultradireita estava aí: que convivia com juízes, fiscais, polícia e com os seguratas e porteiros de discoteca. Havia que ter vigiado mais algumas cousas, com mais cuidado. Tínhamos que ter acompanhado uma outra reflexão coletiva sobre o fascismo e a memória histórica.

Levamos anos dizendo que algo não se estava a fazer bem na Espanha. Mas os que dizíamos éramos exagerados, loucos, saudosos da revolução, minoria separatista. Espanha ia bem, era uma grande democracia.

Agora o mundo civilizado contempla estuporado, estes dias, na rua e nas televisões, nas redes, os velhos fantasmas. A ultradireita, exibindo-se plena de vida e voz pela Espanha, organizada em grupos paramilitares violentos e disposta a colaborar e impune ante uma polícia e uma fiscalia que não os vê como uma ameaça.

A ameaça são, somos outros. Vou no wok combinando os elementos no azeite de oliva. Vêm saudades da pequena cozinha tradicional da minha avoa e os seus prebes de cebola, alho, verde salsinha e colorido pimentão, lume lento, numa frigideira de ferro. Sorrio. Mas lembro também aquelas velhas histórias e silêncios que arrepiam.

“Tu não sabes o que é –  penso naquela outra velha numa outra cozinha argentina a preparar um mesmo molho – esperar na casa a que nos venham procurar a qualquer hora do dia ou da noite… e rezando para que sejam os bestas da polícia e não os fascistas… ?

1 Comment

  1. Ernesto que maravilha: literária e de racionalidade nestes tempos nos que o fascismo volta a andar a solta.
    Apertão caro
    Abanhos

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