Uma nova série sobre as novas tempestades que se vislumbram já no horizonte
Parte II – Introdução. Um texto que poderia ser uma carta a enviar ao ministro Manuel Heitor sobre o ensino superior em Portugal. (2ª parte-conclusão)
Por Júlio Marques Mota
20 de fevereiro de 2018
(…)
As razões publicamente apresentadas para a grande crise, aparentemente pontual, de Wall Street são basicamente o fim do dinheiro barato, a subida das taxas de juro, a significar as consequências da contração da quantitative easing, a subida dos salários, o endividamento público americano e até um pequeno detalhe sobre um dado anúncio. Vejamos o que nos diz um analista dos mercados financeiros (Adam Hamilton em https://seekingalpha.com/article/4145379-stock-selling-unleashed , 10 de fevereiro de 2018):
“Naquela manhã, [30 de janeiro de 2018] Amazon, Berkshire Hathaway e JP Morgan declararam que iriam formar uma empresa de serviços de saúde. Essa notícia inesperada esmagou os principais títulos de empresas de saúde, cortando o SPX em 1,1%. Esse foi realmente um importante dia negativo quando encarado pelos padrões recentes, o pior que se viu desde meados de agosto.”
Quanto às taxas de juro programadas em alta pelo FED diz-nos o mesmo analista referido (ibidem):
“Taxas de juros prevalecentes mais elevadas são um enorme problema para os mercados de ações que apresentam já uma valorização a significar a presença de uma bolha. A publicação do índice SPX tinha acabado de sair com os dados de janeiro com as ações das suas 500 componentes de elite arvorando um rácio cotação/dividendos, sobre a média simples de doze meses, de 31,8x! O valor justo histórico é 14x, sendo o dobro deste – 28x – já território formal de bolhas. Num ambiente de taxas de juro mais altas, as avaliações extremas são muito mais difíceis de tolerar. Assim, os mercados de ações dispararam nas suas vendas massivas.
Uma semana atrás, o SPX deslizou o dia inteiro para fechar com uma perda importante de 2,1%. Isso provou ser a maior descida diária desde setembro de 2016, antes de Trump ter ganho as eleições e a subida extrema das ações é o resultado primeiro da Trumforia e mais tarde da taxforia. Algo estava a mudar, o muito pouco natural regime de baixa volatilidade estava a desmoronar-se. Isso deixou especuladores e investidores muito nervosos em relação ao último fim-de-semana.”
Dois estranhos nomes de significado bem evidente devemos aqui sublinhar: a Trumforia e a Taxoforia, ou seja, a ideia de que o projeto de Trump em infraestruturas iria fazer subir a taxa de crescimento, os lucros das empresas (a Trumforia) e consequentemente o valor das ações a subir, e a Taxoforia, a lei fiscal de Trump, que teria o mesmo efeito sobre as ações das empresas. Mas repare-se que já se está a falar de bolha antes mesmo das taxas de juro subirem!. Quanto a estas taxas e à sua importância no detonar do forte abalo dos mercados financeiros, isso pode ser uma via dissimulada de esconder o que se passa nas bolsas mundiais. Diz-nos um grande analista americano num artigo cujo título é bem elucidativo: “Matem os analistas quantitativistas antes que eles matem os nossos mercados” (Doug Kass em https://realinvestmentadvice.com/kill-the-quants-before-they-kill-our-markets/, 8 de fevereiro de 2018). Neste texto diz-nos o autor:
“Até sexta-feira [passada], quando experimentámos um “momento de verdade” no que diz respeito aos produtos estruturados e estratégias quantitativas relacionais (por exemplo, paridade de risco e estabilidade nos mercados financeiros em termos curto prazo), poucos ouviram as nossas preocupações de um possível Armagedon quanto à volatilidade dos títulos a curto prazo causado por uma perigosa estrutura de mercado em rápida mudança em que os produtos VIX se multiplicaram como ervas daninhas.
Eu acredito que a precipitada queda do mercado na última semana tem pouco a ver com a evolução projetada das taxas de juros ou, de resto, tem pouco a ver com os fundamentais da economia.
Provavelmente, foi produto do mundo distorcido e perigoso de novos produtos e estratégias de investimento.
Conforme se discute abaixo (e acima), a proliferação das estratégias de curto prazo [o chamado short-volatility trade], da tendência à volatilidade e da paridade de risco quando combinadas com uma explosão de ETFs e ETN alavancados – muitos dos quais eram derivativos de derivativos e em que não existe nenhuma atividade por detrás, exceto a de agradar aos jogadores – haviam alterado a estrutura do mercado de forma tão extrema quanto o Seguro de Carteira de títulos há cerca de 30 anos atrás (o que levou ao colapso de outubro, 1987).
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A SEC estava então a dormir, (em 1987) e a SEC está também hoje a dormir.
O canil dos produtos financeiros aparentados aos VIX (que se tornaram no chamariz dos mercados financeiros) deve ser pura e simplesmente fechado e muito rapidamente.
Os participantes no mercado (e os reguladores) sabem muito pouco sobre a natureza técnica desses produtos / estratégias ou sobre o efeito dominó ou efeito cascata que estes geram.”
As autoridades andaram a dormir, as autoridades andam a dormir, face à ganância dos operadores nos mercados financeiros, é, pois, a conclusão de base, a tirar.
Quanto ao mercado de trabalho como um dos principais elementos detonadores do pânico que ocorreu nas bolsas, diz-nos o economista Bill Mitchell (vd. http://bilbo.economicoutlook.net/blog/?p=38000):
“Não há nenhuma pressão para a subida salarial dos trabalhadores.
Antes de analisar as tendências habituais no emprego e no desemprego, pensei que seria melhor investigar os dados para ver se há sinais evidentes de uma pressão à alta salarial.
Em resumo: não existe.
Se os salários estão a aumentar mais rapidamente no seu conjunto, será então porque os salários no topo da distribuição salarial estão a aumentar. Os trabalhadores de produção e de áreas de não-supervisão dificilmente terão visto um qualquer movimento nos seus salários hora nos últimos anos.
O primeiro gráfico mostra o movimento anual de ganhos horários médios no total e de trabalhadores de produção e não pertencentes à supervisão. As séries temporais do BLS (departamento das estatísticas do trabalho dos EUA) para a última categoria começaram em março de 2006.
Os ganhos horários médios nominais totais atingiram 2,5 por cento nos 12 meses até novembro de 2016, em seguida, 2,7 por cento até novembro de 2017 e 2,9 por cento nos 12 meses até janeiro de 2018.
É essa aceleração que levou os comentadores a aproveitarem a tese da “pressão à alta dos salários”. O problema é que eles não examinaram cuidadosamente os dados.
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Por outras palavras, 82,4 por cento do emprego privado não agrícola dos EUA é contabilizado como sendo por empregados da produção e da não-supervisão.
O gráfico mostra que para esses trabalhadores – a maioria predominante no mercado de trabalho dos EUA – o crescimento dos salários foi claramente vizinho de zero desde 2013 com uma evidente descida em 2015.
A taxa de crescimento anual tem estado em torno de 2,3 a 2,4 por cento desde 2009 (com flutuações mensais em torno desse valor).
A conclusão é que, para a grande maioria dos trabalhadores, não há aceleração nos salários nos EUA.
Para se ter uma imagem mais próxima, o gráfico seguinte mostra o crescimento anual da média de ganhos por hora para a trabalhadores da produção e áreas de não-supervisão, de março de 2008 a dezembro de 2018, por trimestre.
Não há nenhuma aceleração.
O próximo gráfico mostra os movimentos na produtividade horária na Produção e de trabalhadores da não-supervisão e os seus salários reais – indexados a 100 em março de 2007.
Como expliquei anteriormente, se a produtividade ultrapassa o crescimento dos salários reais, esses trabalhadores estão a perder peso na repartição do rendimento e deslocando essa diferença para os lucros (ou para outros trabalhadores no topo da distribuição do rendimento).
A diferença salarial real nos EUA (crescimento da produtividade do trabalho menos o crescimento dos salários reais) é pronunciada. A produtividade do trabalho (produção por hora) cresceu de 14,4 por cento desde o primeiro trimestre de 2007, enquanto os salários horários reais cresceram apenas 6,3 por cento no mesmo período.
Nos últimos anos, o crescimento real dos salários por hora foi praticamente inexistente (como mostra o gráfico).
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Estamos, pois, esclarecidos quanto ao aumento dos salários reais dos trabalhadores nos Estados Unidos. Mas mesmo que fosse verdade que os salários reais aumentaram, o que não é, sobre isso vejamos o que nos diz o New York Times (Peter Goodman em https://www.nytimes.com/2018/02/06/business/stocks-bonds-markets-central-banks.html):
“A amarga ironia é que o atual do desfalecimento [na Bolsa] foi desencadeado pelo aparecimento de algo que o mundo aguarda desde há anos: salários mais altos para os trabalhadores
Mesmo que as taxas de desemprego tenham diminuído drasticamente na Grã-Bretanha, no Japão e nos Estados Unidos, as empresas continuaram a encontrar novas formas de fazer mais produtos e vender mais serviços sem pagar mais aos seus empregados. Esta foi uma importante fonte de mal-estar entre os trabalhadores e um tema de consternação entre os decisores políticos.
Então, na última sexta-feira, a última publicação mensal sobre o mercado de trabalho americano revelou que os salários haviam subido 2,9% em janeiro em relação ao ano anterior. O mercado de trabalho sob pressão da escassez de mão-de-obra estava a obrigar os empregadores a pagar mais.
Isso parecia pressagiar um fortalecimento do poder dos consumidores americanos. Se há mais pessoas com emprego e a levar mais dinheiro para casa, presumivelmente estas pessoas estarão mais inclinadas a comprar casas e carros, gerando assim mais empregos na construção e nas fábricas de automóveis de Michigan até à Carolina do Sul. Eles irão encher os restaurantes, necessitando mais condutores de caminhões para transportar os alimentos e mais mecânicos para manter os caminhões em funcionamento
Este mesmo chamado ciclo virtuoso pareceu estar a ampliar o crescimento global. Mais carros fabricados nos Estados Unidos exigiriam mais travões produzidos no México ou mais circuitos elétricos ou eletrónicos produzidos na China, utilizando o cobre extraído no Chile. Mais construção exigiria equipamentos vindos da Alemanha e do Japão, e mais minério de ferro do Brasil para fabricar aço.
Esta interconectividade tem sido fundamental para a antecipação de que o fortalecimento da economia americana poderia melhorar as fortunas por todo o mundo.”
Esta é a versão trickle-up da economia. Mas os mercados financeiros não gostam da trickle-up, desde sempre preferem a economia trickle-down. Como assina o jornalista citado no New York Times:
“Mas o aumento dos salários para os trabalhadores americanos significava outra coisa. Foi um alerta intermitente para os investidores sobre a inflação potencial, ou o aumento dos preços, que paralisaria muitas economias. O Fed, sempre vigilante, possui uma ferramenta padrão para eliminar a inflação: taxas de juros mais elevadas.
É assim que um relatório de emprego positivo, presumivelmente um sinal de um certo fortalecimento da economia americana, acabou por constituir o impulso para a queda das ações desde Taipei até Toronto. Isso aumentou a probabilidade de o FED aumentar as taxas ainda mais rapidamente. Isso levou os investidores a se interrogarem por quanto tempo é que o Banco Central Europeu poderia manter as suas próprias taxas ultra baixas.”
Coimbra, 20 de fevereiro de 2018