A crítica demolidora de Michael Pettis à teoria e à política económica neoliberal. Carta aberta aos senhores Ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, e da Economia, Caldeira Cabral – 2. Sobre o que possivelmente não se ensina de economia em nenhuma Universidade em Portugal, apesar da crise (Parte III – Comentários finais sobre o Teorema de Ricardo ). Por Júlio Marques Mota

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Carta aberta aos senhores Ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, e da Economia, Caldeira Cabral

Um texto dedicado aos meus antigos alunos que tanto massacrei com fórmulas e gráficos ao longo de décadas, a todos os outros os que se interessem pelo ensino de Economia em Portugal.

 

2. Sobre o que possivelmente não se ensina de economia em nenhuma Universidade em Portugal, apesar da crise (Parte III – Comentários finais sobre o Teorema de Ricardo ).

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Por Júlio Marques Mota julio-marques-mota

em 7 de julho de 2018

Parte III – Comentários finais sobre o Teorema de Ricardo 

Michael Petis, no conjunto de textos por nós selecionados, faz sucessivamente referência a Alexander Hamilton e ao seu famoso texto Report on manufactures contra a lógica que resulta do teorema de Ricardo. Dois grandes autores, Hamilton e Ricardo, dois pensamentos sobre a economia bem diferentes, duas realidades económicas e sociais igualmente bem diferentes, a Imperial Inglaterra a ser o centro económico do mundo, numa lógica assente no modelo de Ricardo-Mil, e uma das suas colónias a querer libertar-se desse jugo económico, os Estados Unidos, tomando como base as linhas económicas apresentadas por Hamilton ao Congresso em 1791. Como assinala Douglas A. Irwin [9]:

O famoso Relatório de Alexander Hamilton sobre o tema da indústria transformadora paira como uma enorme sombra sobre a política comercial dos EUA em relação à indústria. Publicado em Dezembro de 1791, o relatório não apenas fornece as justificações para a promoção da indústria transformadora nacional mas também como documento de política em que se fazem propostas específicas para serem tomadas pelo governo. Essas propostas incluem direitos mais elevados sobre as importações de produtos acabados, direitos de importações menos elevados sob certas matérias-primas, subsídios pecuniários (subsídios à produção) para certas indústrias selecionadas, uma ajuda governamental para a imigração de trabalhadores qualificados, entre muitas outras medidas. Até hoje, o relatório é frequentemente apresentado como a declaração americana por excelência contra a doutrina do laissez-faire, contra a livre troca e a favor de políticas industriais ativas, entre as quais a utilização de tarifas protecionistas, no sentido de desenvolver a indústria transformadora americana.

Ricardo, o financeiro e defensor do capitalismo britânico e da financeirização da economia inglesa, Alexander Hamilton, o defensor de um Estado ativo na criação da sua própria base industrial e da articulação dos setores chaves da economia americana, são duas visões do mundo e da política económica que atravessam grande parte dos textos de Michael Petis selecionados, de entre os quais salientamos o texto “A China e a História dos modelos de crescimento americano- o programa de Hamilton” e o texto “Estará Peter Navarro errado sobre o comércio internacional?

Por esta simples razão, e uma vez que temos vindo a falar da perda de qualidade do ensino universitário em geral, julgamos conveniente estendermos esta análise ao caso particular do ensino de economia em Portugal e tomando como base exatamente o que ensinámos durante décadas sobre Ricardo e Stuart Mill a que acrescentamos a análise do último trabalho teórico de Paul Samuelson sobre a Teoria do Comércio Internacional.

O que acima é dito sobre a livre-troca foi uma parte do que ensinei sobre Ricardo e nessa mesma linha sobre Stuart Mill. Um ensino que lhes pode parecer, a si senhor Ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior Manuel Heitor, e a si senhor Ministro da Economia Caldeira Cabral, e à maioria dos estudantes de economia das Faculdades de agora, um pouco esotérico, senão mesmo como um ensino inútil [10], mas como explico estou em boa companhia, de dois Prémio Nobel, Maurice Allais e Paul Samuelson, e recuando bem mais atrás encontramos uma outra linha de proximidade, tendo outros dois notáveis da Economia, Alexander Hamilton com o seu texto Report on the Subject of Manufactures, 1791, e Friedrich List com a sua obra The National System of Political Economy.

O texto que se segue tem como base a carta enviada ao então ministro Álvaro Santos Pereira, a partir do qual iremos fazer a integração de um texto de Paul Samuelson [11].

O tratamento até aqui dado ao teorema de Ricardo pode parecer esotérico, mas se o é, é porque esotérica é a realidade face aos quadros tradicionais do pensamento dominante em economia. Com efeito, o texto que se acabou de ler à volta do teorema de Ricardo e do seu contrário pré configura duas visões do Estado, a do Estado intervencionista contra a do Estado vergado apenas à força dos mercados, a do Estado colbertista ( França) ou Estado hamiltoniano (USA) contra a do Estado neoliberal (União Europeia), e sugiro que se tenha bem presente o antagonismo destas duas visões do mundo e da política económica na leitura de todo este texto sobre as Universidades.

Deste ponto de vista, e antes de passar a uma análise detalhada do exemplo numérico de Samuelson, valerá até a pena reproduzir aqui excertos de um texto importante de Jean-Michel Quatrepoint:

Iniciou-se um novo ciclo económico nos anos 1980 com os governos de Margaret Thatcher, primeiro-ministro do Reino Unido, e de Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Esta é a vingança do mercado sobre os Estados: livre comércio, livre concorrência, privatização, desregulamentação. Surge uma dupla divergência entre a França e a Alemanha, entre duas conceções da construção europeia: a Europa grande potência económica ou a Europa aberta a todos os ventos. A política industrial ilustra esta oposição. Os franceses querem reproduzir, a nível europeu, o modelo implementado durante os “trinta gloriosos”: criação de campeões nacionais com capital público ou privado nos principais setores estratégicos, apoiados por grandes projetos impulsionados pelo Estado. Esta política colbertista, vertical, política de objetivos precisos, permitiu à França recuperar muito rapidamente, graças ao surgimento de um capitalismo de Estado que tomou o lugar de um capitalismo desconsiderado de famílias durante a guerra.

A história da Alemanha leva-a a favorecer uma outra abordagem, oposta à da França. As suas grandes empresas desenvolveram-se com Bismarck, apoiando-se na segunda revolução industrial, a da eletricidade. Os grupos poderosos assim criados foram forçados a apostar na exportação, até porque o país não tinha nenhuma ou poucas colónias. É a partir deste momento que surge o mercantilismo e o espírito de excelência da indústria alemã, que ainda hoje se mantém.

Duas abordagens para a política industrial estão pois em confronto. A Alemanha favorece os setores da segunda revolução industrial. A França está mais interessada nos setores da terceira revolução industrial: eletrónica, informática e hoje o digital.

A expansão da ideologia neoliberal nos anos 1980 e a crescente influência dos britânicos na Comissão Europeia irão progressivamente marginalizar as ideias francesas numa Europa que, além disso, está a alargar-se.

Em Bruxelas, as opiniões são partilhadas. Se a Direção da Indústria é favorável às teses francesas, a direção-geral da concorrência, que reúne funcionários alemães e britânicos, é visceralmente hostil.

Resultado: na segunda metade dos anos 1980, as ambições são revistas para o mínimo; Preferimos a pesquisa a montante, mas a cooperação industrial é esquecida. Ao longo dos anos, o peso dos neoliberais vai crescendo e as ambições francesas desfazem-se. Assinado em 1986, sob o impulso do Presidente da Comissão Jacques Delors, o Ato Único europeu estabelece o objetivo de completar o mercado interno: desregulamentação, privatização. Em 1988, a Diretiva relativa à livre circulação de capitais entra em vigor. Em suma, a França está gradualmente a integrar-se na nova ordem económica mundial: o “consenso de Washington” . O Ministério das Finanças, dominado pelas ideias neoliberais ganha um muito maior peso face aos industriais.

Durante a sua breve temporada por Matignon, em 1991, Edith Cresson tentou reverter o curso das coisas, propondo uma política industrial europeia e a criação de uma “comunidade eletrónica”- sem sucesso. É o Comissário alemão para o Comércio Exterior e dos Assuntos Industriais, Martin Bangemann, que define o Credo a impor: “a questão principal diz respeito às condições que devem estar presentes a fim de reforçar a dotação de recursos pelas forças de mercado.

A Europa já não é mais do que um vasto mercado que se quer expandir o mais rapidamente possível, porque o interesse estratégico dos Estados Unidos o quer e os alemães encontram nisso a vantagem de terem uma zona menos desenvolvida reconstituída às suas portas. Os seus grupos industriais têm estado a deslocalizar para produzir subconjuntos de baixo custo que eles montam depois nas suas fábricas na Alemanha Ocidental.

Para Louis Gallois, presidente da EADS de 2006 a 2012, a responsabilidade por esta falta de política industrial europeia é partilhada. “Os alemães não a queriam”, explica ele, “porque é contrária à sua ideologia ordoliberal e porque não precisam dela.”

Além disso, esta mesma política industrial não interessava aos sucessivos presidentes da Comissão, nomeadamente a José Manuel Barroso.

Ao longo dos anos, foi construída uma jurisprudência excessivamente restritiva. Para Louis Gallois, “esta jurisprudência impediria que se lançasse hoje um projeto como o Airbus [12]“.”

Gallois diz-nos que os alemães não precisam que a Europa alinhe numa politica industrial ativa. Hoje há sinais de mudança, na construção de campeões industriais europeus, desde que na sua base estejam os campeões nacionais alemães. O que se passa hoje com a fusão entre Siemens e Alstom, com a Alstom, uma das joias da coroa francesa, a ser absorvida pela Siemens, com o apoio dos alemães e de Macron a pressionarem ambos a Direção da Concorrência mostra alguns sinais de mudança. Sublinhe-se porém que essa mudança se deve ao facto de que uma política “colbertista” da China, este país dispõe hoje de uma empresa líder mundial [13], a CRRC Corporation Limited, nos caminhos de ferro e serviços conexos que pode vir a ocupar um papel de relevo exatamente na Europa e tendo como ponto de partida a tecnologia Siemens que esta vendeu aos chineses. A China ganhou nos caminhos de ferro a produtividade dos alemães ou mesmo ultrapassou-a, tal como no nosso modelo anterior ou no modelo adaptado de Samuelson que iremos em seguida analisar. O mesmo se irá passar com o Airbus, possivelmente.

 

(continua)

Notas

[9] Veja-se DOUGLAS A. IRWIN em “The Aftermath of Hamilton’s “Report on Manufactures” disponível em: https://www.dartmouth.edu/~dirwin/docs/ham.pdf

[10]  Esotérico ou inútil dir-me-ão, mas o certo é que os problemas subjacentes e assim colocados estão hoje na ordem do dia, em Washington, em Bruxelas, em Berlim, em Pequim, enfim, nas relações económicas internacionais do mundo atual. Veja-se ainda mais à frente a demonstração atual de O teorema de Ricardo ao contrário no que refere às relações entre a China e a Alemanha.

[11] O texto enviado ao então Ministro Álvaro Santos Pereira pode ser visto sobretudo como um resumo das nossas aulas sobre Ricardo. O texto que agora se segue, apesar de ser um desenvolvimento do texto de Samuelson de 2004, pode ser tomado como um pequeno resumo do que durante décadas ensinámos sobre Stuart Mill. No fundo, eram outros tempos, outras formas de pensar a economia, de pensar o ensino, de pensar em formar criticamente os estudantes e de os levar a serem capazes de se posicionar face ao meio em que se inseriam e ao mundo em que viviam.

[12] Veja-se Jean-Michel Quatrepoint, De désaccord en rivalité, une introuvable politique commune – L’Europe en retard d’une guerre industrielle, publicado por Le Monde Diplomatique e disponível em : https://www.monde-diplomatique.fr/2017/06/QUATREPOINT/57557

[13] Veja-se o recente trabalho de Rochelle Toplensky e Alex Barker publicado pelo Financial Times, intitulado The Franco-German deal that could derail Europe’s competition police, disponível em: https://www.ft.com/content/153a4d84-6d73-11e8-852d-d8b934ff5ffa

 

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