Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada. Por Orsola Costantini

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

A Itália representa um espelho de uma Europa esfarrapada 

Orsola Costantini Por Orsola Costantini

Institute for New Economic Thinking, em 14 de junho de 2018

 

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A eleição do governo de direita e populista da Itália mostra as deficiências económicas e democráticas do projeto Europeu e dos seus rivais nacionalistas.

Os partidos “populistas” e de direita estão a ganhar terreno em toda a Europa, com uma mensagem de ceticismo sobre o euro e de pura desconfiança em relação ao establishment político europeu. A eleição geral italiana realizada no dia 4 de março de 2018 não foi exceção: o partido democrático fortemente pró-Europa do anterior primeiro-ministro Matteo Renzi registou uma baixa histórica, obtendo 18,9% dos votos (um declínio de 6,5 pontos percentuais em comparação com as eleições anteriores). Renzi quase que assume esta derrota mais como uma medalha, como prova da sua lealdade à UE, do que como um sinal de sua falha em resolver ou em aliviar os problemas do país. O movimento populista 5 estrelas (M5S) tornou-se o maior partido na Itália (com 32,2% dos votos) e o partido da ala da direita xenófoba Lega Nord obteve ganhos eleitorais substanciais (17,7% dos votos). Mas o resultado, um Parlamento suspenso, não indicou uma coligação eleitoral suficientemente forte para governar por si só, desencadeando um processo mais longo que o usual para se organizar uma coligação governamental. Finalmente, após 90 dias de negociações, o movimento 5 estrelas e a Lega Nord chegaram a uma difícil aliança para um governo de coligação. Estes dois partidos têm em comum uma forte retórica contra o tradicional establishment político, embora a Lega tenha estado no governo repetidamente no passado e tenha entrado nas eleições deste ano numa coligação com Forza Italia, o partido de Silvio Berlusconi. Tanto o M5S como a Lega Nord partilham a convicção de que o crescimento económico italiano não pode ser reavivado dentro das condições políticas impostas pela zona euro.

Assim que M5S e Lega Nord anunciaram que Paolo Savona, de 82 anos de idade e um “eurocético”, seria a sua nomeação para o cargo do Tesouro, todos os diabos do inferno foram postos à solta em Roma, Bruxelas, Berlim e Paris. O Presidente da Itália, Sergio Mattarella vetou a proposta, argumentando que ele tinha que “proteger as poupanças do povo italiano.” O Comissário de Orçamento da UE, Gunther Oettinger, comentou que “os mercados vão ensinar a Itália a votar corretamente, a votar na coisa certa.”

A ameaça pode ser mesmo real: a criação artificial de situações de emergência económicas e financeiras tem frequentemente moldado a distribuição do poder na zona euro, agora fortemente centrado nos credores e nos países excedentários. Mas a dependência da zona euro de um grande dispositivo de regulações quase técnicas aponta para a ausência de uma hegemonia bem definida e bem estabelecida.

A última crise pode ser descrita basicamente como uma luta para redefinir o lugar do poder entre Estados-nação, instituições supranacionais e o mercado na era pós-Bretton Woods.

Esta luta não é exclusiva da UE, mas num contexto global de redução das despesas sociais públicas e da regulação, as instituições da UE intensificaram esta tendência, proporcionando um conveniente “constrangimento externo” aos políticos nacionais que praticaram a austeridade orçamental. Mas um olhar mais preciso na evolução da União esclarece que a austeridade era de facto uma preferência nacional e uma arma política para interesses investidos dentro e para além das nações. Por exemplo, as regras orçamentais têm sido muitas vezes um local de negociação política, onde as diferentes preferências podem ser validadas pela formulação de estimativas adequadas. Governos de diferentes cores participaram de boa vontade no jogo e agora o “populista” governo italiano pode fazer isso também, protegendo assim os efeitos reais e a amplitude de suas políticas.

O ponto mais importante a compreender, de facto, é que qualquer que seja o partido que está no poder, nenhum verdadeiro debate democrático se pode verificar enquanto não pararem as negociações à porta fechada sobre as políticas e as instituições dos países membros. Uma maneira demasiado fácil, as forças de todas as cores política podem embrulhar as suas preferências com a retórica apropriada e alimentá-las para o público, evitando assim um debate.

Uma condição para impedir que assim seja, é então que as teorias erradas – como aquelas que afirmam que as taxas de desemprego acima de 15% são “naturais”, que as despesas do défice público são em si mesmo inflacionárias e têm efeitos negativos sobre o crescimento, que existe isso do efeito trickle-down, ou que os nossos recursos são escassos e escassa devia ser a nossa solidariedade – devem desaparecer de uma vez por todas. Isso equivale a lutar contra a imposição de uma “linha oficial de partido” na teoria e prática económica, que transforma a economia num servo inútil fornecendo a autovalidação para as elites e contribuindo para a restrição do debate e abertura que são vitais para uma sociedade funcional e justa.

 

Entre a centralização e a autonomia nacional

Como e porque é que chegámos aqui? A resposta reside na evolução peculiar da arquitetura europeia a partir do Tratado de Maastricht de 1992 em diante.

De facto, apesar da sua representação como um quadro impossível de ser reformado, o sistema europeu de governação económica evoluiu substancialmente nas últimas duas décadas. A partir de 2018, após um intenso período de inovação legislativa, tornou-se um sistema complexo de regras, prazos e compromissos supervisionados pela Comissão Europeia. O elemento-chave desta arquitetura é um vasto conjunto de regras técnicas e aparentemente “objetivas”, que se tornaram o centro da negociação e a expressão “revelada” de um compromisso supranacional baseado nas preferências nacionais subjacentes.

A evolução é o resultado da interação de duas forças em movimento, como Kindleberger argumentou, [1] entre centralização e pluralismo: primeiro, o desejo dos arquitetos de Maastricht para reduzir o papel autónomo dos governos democráticos nacionais (e o Estado de bem-estar keynesiano); e segundo, o poder das forças tradicionais nacionais e burocráticas, insensível a qualquer coisa semelhante à verdadeira união política. A expressão mais óbvia do primeiro movimento foi a fundação do Banco Central Europeu (BCE) como instituição independente, impedida de financiar diretamente os Estados-Membros [2]. Isso eliminou o espaço para o Estado poder promulgar políticas públicas apropriadas, independentemente dos caprichos dos mercados financeiros. O segundo movimento é reconhecível no carácter intergovernamental original das instituições políticas da UE, como o Conselho Europeu.

Por vezes, os objetivos destas duas forças convergiram; outras vezes, estes objetivos opuseram-se um ao outro. No processo, e dentro de uma visão geral sobre o desejo de enfraquecer o Estado keynesiano, as preocupações sobre a estabilidade global do sistema foram negligenciadas. Eventualmente, se o acordo se revelar insuficiente, uma crise obrigaria os países membros a prosseguirem as suas ações, como parece ter previsto o pai fundador da UE, Jean Monnet. No entanto, por debaixo desta superfície, há uma contradição fundamental nesta arquitetura institucional: entre um desejo de estarem mais seguros juntos, na economia globalizada, por um lado; e um desejo de ser complacente (e, portanto, pensa-se, como credível) em face dos caprichos dos mercados internacionais, por outro.

Mas seja qual for a intenção inicial, a combinação de desregulamentação financeira, austeridade orçamental e uma dimensão única para toda a política monetária acabou por incentivar a dinâmica económica divergente entre os países da zona euro. A recente crise intensificou ainda mais essa assimetria, que tem sido descrita como uma relação entre centro e periferia, entre os membros do Norte e os do Sul da zona euro, dando maior poder de negociação para os credores do Norte sobre os devedores do Sul. Isto reflecte-se na evolução das instituições comuns e na forma como estas são interpretadas e moldadas.

 

As origens e a evolução do quadro de supervisão orçamental

Na véspera da criação da União Europeia, o contexto para a promulgação dos novos quadros monetários e orçamentais revelou-se crucial. De facto, a ruptura das ligações entre os governos e o banco central nacional foi um forte incentivo para manter as políticas orçamentais austeras, mas não constituiu uma garantia real da sustentabilidade potencial das dívidas públicas e da convergência das políticas públicas. Na tentativa de resolver o problema, os países membros acordaram num pacto de estabilidade e crescimento (PEC), introduzido em 1997. Como é sabido, o acordo definiu limites máximos para os desequilíbrios orçamentais públicos e o endividamento público total do país (3% e 60% do PIB, respetivamente).

A ideia não dita, implícita, era que os mercados de capitais privados desregulamentados, juntamente com as regras orçamentais, por si sós induziriam a convergência económica entre os países. O BCE e o sistema de pagamento TARGET2 foram concebidos para permitir a perfeita mobilidade de capitais e o acesso simétrico aos mercados financeiros, a hipótese de que os movimentos de preços garantiriam uma perfeita substituição de ativos. O Pacto de Estabilidade e Crescimento concederia eficácia às estratégias de segmentação de inflação praticadas pelo banco central. Desde o início do processo, muitos economistas advertiram sobre o enviesamento a favor da deflação do projeto e depararam-se com a completa ausência de preocupações com os níveis de emprego [3]. Uma longa série de esforços de economistas keynesianos e de alguns formuladores de políticas para fornecerem à União algum tipo de esquema de seguro foi condenado pelos receios nacionalistas, juntamente com as ansiedades sobre a subida da inflação e da dívida pública. O que realmente importava para as elites nacionais na altura era obter uma garantia de estabilidade de preços que poderia ajudar a UE a tornar-se um centro financeiro internacional (principalmente uma aspiração francesa) e poderia ajudar a alcançar os excedentes da conta corrente. A este respeito, a Alemanha beneficiou mais com uma taxa de câmbio real relativamente subavaliada (externamente) que resultou da unificação monetária.

A primeira racha neste sistema de governança macroeconómica baseada em regras ocorreu em 2005, quando a Alemanha e a França violaram as limitações orçamentais do PEC. Por mais difícil que seja acreditar hoje, naquele tempo a Alemanha e a França defenderam um abrandamento se não mesmo a revogação do pacto.

A primeira reforma do PEC foi um momento crucial para a evolução institucional e económica da União Económica e Monetária (UEM) e acabou por ser uma derrota parcial para o Chanceler alemão Gerhard Schröder. Um momento crucial, de facto, a reforma falhou na eliminação da regra orçamental, e, em vez disso, o que aconteceu foi que o objetivo do défice público nominal foi redefinido para passar a ser uma estimativa do défice orçamental estrutural. A solução tornou-se a de adicionar válvulas de escape e flexibilidade ao Pacto, mantendo o efeito disciplinar de uma regra externa, como foi famosamente expressa por Hans Eichel, Ministro das finanças da Alemanha na época.

A estimativa orçamental estrutural, de facto, coloca os atuais défices públicos orçamentais em relação com o crescimento potencial da economia, um conceito controverso e carregado de teoria, que para a Comissão envolve a consideração dos efeitos de diversas preocupações políticas e institucionais, mais do que de preocupações puramente económicas. A sua capacidade para lançar uma capa de uma falsa precisão estatística sobre qualquer mescla de pressões e interesses cruzados, torna-a um instrumento de política quase perfeito para gerir conflitos e negociações à porta fechada. Ajuda a neutralizar o papel dos eleitorados nacionais através da apresentação de decisões de política cruciais como sendo o resultado de razões objetivas e científicas.

A história e os detalhes desta primeira reforma mostra até que ponto as medidas de austeridade dos anos seguintes refletiram as convicções partilhadas pelas elites, mais do que a simples representação da imposição de um país sobre os outros países (por exemplo: a Alemanha) ou o ditado de tecnocratas. Portugal, com o primeiro-ministro Barroso, e Espanha, com o primeiro-ministro Aznar, assim como a Bélgica e os Países Baixos, estavam em posição de recusar as reformas de austeridade sugeridas pela Comissão – simplesmente tirando partido da oportunidade aberta pela Alemanha e outros grandes países – mas escolheram não o fazer.

Nessa época, a ideia da União como uma junção de nações soberanas parecia ganhar força, contra o poder central da Comissão[4]. Mas as decisões de política económica dos países periféricos que se abriram à entrada massiva de fluxos de capital, cortes da despesa pública, e reforma dos mercados laborais, juntamente com a confiança em orientações estimadas, equivaleram a um primeiro passo que transformou a governança económica europeia num sistema que tem um controlo mais profundo que nunca sobre as políticas económicas nacionais.

 

Alarmismo Económico e Reformas Finais

Na altura em que a crise bancária e outras pressões económicas forçaram a questão de mais reformas na agenda, tinham-se intensificado enormemente as divergências entre as economias do centro e as da periferia dentro da zona euro, mudando o equilíbrio político e, de facto, anulando as anteriores aspirações inter-governmentais.

Na ausência de um mecanismo de partilha de risco, a reversão súbita do movimento dos fluxos financeiros da Alemanha e França para Espanha, Irlanda e outros países resultou, inevitavelmente, num aumento substancial do poder relativo dos países credores da europa do norte. As taxas de juro dos títulos de vários países periféricos da zona euro dispararam quando foram forçados a resgatar bancos privados e instituições financeiras e no rescaldo imediato da crise, os países credores aplicaram padrões relativamente flexíveis de supervisão e correção orçamental aos seus próprios casos ainda que impusessem condições muito mais duras na sua solidariedade para com os outros.

Houve um evento que foi crucial, e relembra o que, nos anos de 1970, Federico Caffè [5] apelidou de alarmismo económico: a prática de desvirtuar a situação económica, exagerando os aspetos negativos e criando a impressão de condições de emergência sem precedentes, como forma de apresentar uma determinada combinação de políticas, frequentemente disruptivas do anterior equilíbrio sócio-económico, como a única solução possível.

Na sua famosa caminhada em Deauville em 18 outubro de 2010, a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Nicolas Sarkozy levaram o princípio do alarmismo económico ao seu nível seguinte. Contornando os habituais procedimentos de deliberação da UE, eles acordaram na afirmação do princípio do não-resgate, conhecido agora como princípio do Envolvimento do Setor Privado (Private Sector Involvement-PIS), que constitui o resgate interno dos detentores de títulos governamentais dos estados da UEM. Imediatamente, o rendimento dos títulos irlandeses e portugueses disparou, seguido pelos espanhóis e italianos.

Assim, o acordo “Merkozy” gerou, na verdade, uma emergência que preparou o terreno para mais reformas, desta vez para reforçar o poder da Comissão contra os países considerados faltosos no cumprimento das regras orçamentais. A reforma de 2011, o chamado Acordo Pacote de Seis Medidas (Six Pack Agreement), criou um quadro muito mais apertado do que o pacto de 2005. É assim de facto, mas apenas para os países mais fracos da zona euro, que estão agora submetidos a deveres e controlos específicos (adicionais).

A reforma intensificou o controlo explícito das instituições europeias supranacionais sobre uma extensa gama de práticas macroeconómicas e institucionais dos estados-membros, embora mantendo uma aplicação flexível e assimétrica das normas. Na realidade, as exceções incluídas no pacto de 2005 ainda se mantêm, mesmo com alguns adicionais, nomeadamente o “caso de eventos não habituais fora do controlo do país com um importante impacto na posição financeira do governo geral” e o “caso de recessão económica severa na zona euro ou no conjunto da união.”

Neste novo contexto, a Comissão determinou dramaticamente a agenda política na maioria dos países da UEM, pressionando de Bruxelas reformas do mercado de trabalho e das pensões bem como mudanças sistemáticas nas estruturas tributárias nacionais desenhadas para aumentar o peso de uma tributação regressiva do consumo. A criação de uma emergência financeira é certamente um jogo muito perigoso, um claro exemplo de brincar com o fogo.

O quadro instável, os riscos elevados, a fragilidade financeira e o vazio político deram um poder enorme ao Banco Central Europeu, que frequentemente atua como mais um árbitro da política orçamental, graças à condicionalidade (arbitrária) do seu apoio aos países membros.

O jogo perigoso e o espelho italiano

Deste modo, o jogo perigoso continua. A ausência de vontade política para criar mecanismos automáticos de respaldo financeiro emergiu de novo no contexto da criação da união bancária, um processo iniciado em 2012 (com resultados que beneficiam desproporcionadamente os bancos alemães) e que ainda está em curso. Em contraste com o que está estabelecido no plano da Comissão Europeia de 12 de setembro de 2012, a decisão do Conselho Europeu em 13-14 de dezembro de 2012 de criar um sistema comum de supervisão chefiado pelo BCE nunca foi acompanhada pela possibilidade de o Mecanismo Europeu de Estabilidade recapitalizar diretamente os bancos. O Conselho de também apelou a uma situação reguladora harmonizada e a adoção da diretiva de recuperação e resolução dos bancos bem como um esquema de garantia de depósitos harmonizado em junho de 2013 (IMF 2013). Em vez disso, saiu em julho de 2013 uma Comunicação da Comissão sobre a aplicação de regras de ajudas estatais para apoiar medidas a favor dos bancos no contexto da crise financeira (Comissão Europeia 2013) estabelecendo – novamente – o princípio do resgate interno: “o banco e os seus detentores de capital devem contribuir para a reestruturação tanto quanto possível com os seus recursos próprios. A ajuda do Estado deve ser dada em termos que constituam uma adequada partilha de encargos por aqueles que investiram no banco.”

Se os países membros não chegam a um acordo quanto a um seguro comum de depósitos brevemente, isso poderia ser o locus da próxima crise. Estando prevista a discussão do progresso da união bancária para o encontro do Conselho deste mês, este espectro assombra a resolução do atual impasse político italiano. A razão é simples e está nas palavras do presidente da república italiano Sergio Mattarella quando anunciou que não podia aceitar a formação de um governo que incluía um ministro do Tesouro anti-Euro. Disse ele: “Tenho de cuidar das poupanças do povo italiano.” A frase é bastante reveladora do colete-de-forças do euro. Por um lado, os principais países que dominam as negociações estão em posição de forçar uma crise em Itália (com, é claro, resultados incertos para todos), ameaçando assim verdadeiramente as poupanças pessoais dos italianos e muito provavelmente de outros. Mas também é claro que, desde o Tratado de Maastricht, a moeda comum e a união monetária significaram para os italianos sobretudo uma redução do seu rendimento real disponível e da sua capacidade para acumular poupanças.

Contudo, é necessária uma advertência: como mencionámos acima, durante muito tempo a austeridade foi a opção escolhida e as elites italianas (e os que votaram nelas) não podem negar muita da sua responsabilidade pela prolongada estagnação. Isto significa também que sair da zona euro não seria garantia de uma mudança nas prioridades políticas e económicas. Efetivamente, o caótico debate que está agora a ter lugar entre os pro e os anti- euro suscita um embaraçante vazio em relação ao que deviam ser essas prioridades.

Um elemento importante a ter presente é que a austeridade não é um conceito simétrico: não se aplica igualmente a todos os setores e grupos da economia. Um exemplo ilustrativo são as sugestões da Comissão para aumentos nas abomináveis taxas regressivas do IVA e para o endurecimento das reformas do mercado laboral, que reduziram os salários drasticamente. Tais medidas não estimulam o crescimento, a ponto de que poderiam ao invés piorar a posição das finanças públicas de uma economia. Não obstante, elas favorecem os ricos contra os pobres.

Desse ponto de vista, as propostas de política fiscal do novo governo italiano, tais como a introdução de uma “taxa única,” parecem similarmente aumentar uma desigual distribuição da carga fiscal. Se a decisão de cortar impostos for acompanhada de mais redução de serviços e fornecimentos públicos, o efeito geral do orçamento poderá ser restritivo. O risco é que as medidas, tal como foram vagamente anunciadas nesta fase, se reduzam a uma mera redistribuição das componentes do orçamento a favor de diversos eleitorados, com um efeito basicamente equivalente a zero equilíbrio orçamental.

Conclusão

Embora a crise de 2010 tenha posto a descoberto de forma dramática a necessidade do capitalismo europeu de um poder central mais forte, capaz de reagir rapidamente às recessões económicas e financeiras com intervenções discricionárias temporárias, a corrente instabilidade inerente poderá ou alimentar ou cortar o processo em direção a uma solução unificada. A França e a Alemanha poderão decidir utilizar a discussão sobre a união bancária para forçar um resultado que intensifique o seu controlo sobre a política italiana, mas este jogo perigoso poderá ter consequências (talvez não intencionais) políticas e económicas que poderão levar ao desastre. Além disso, qualquer progresso em direção a uma centralização estável implica uma redução do envolvimento dos eleitorados em decisões económicas cruciais, canalizando-as através de procedimentos tecnocráticos e negociações à porta fechada.

As constituições nacionais e os parlamentos, que foram cruciais para as democracias europeias do pós-guerra, estão a tornar-se crescentemente marginalizados e enfraquecidos. Estas democracias representavam a tentativa, após as experiências totalitárias da primeira metade do século 20, de construir garantias institucionais para a manutenção de uma representação democrática equilibrada e a resolução de interesses políticos e económicos. Esta tentativa foi abandonada. O lugar da negociação política, agora, reside crescentemente em comités tecnocráticos, onde as tensões entre os diversos grupos de elite nacionais são mediadas por uma recombinação de componentes orçamentais e reformas institucionais.

Os estados-nação são hoje a única instituição na Europa capaz de expressar qualquer preferência democrática, fazendo deles o único espaço possível para a ação política do eleitorado. Mas embora o total recuo para o interior das fronteiras nacionais possa parecer uma solução apelativa, não será garantia de uma mudança de direção, não sendo menos importante que as estruturas dos estados-nação estão agora desgastadas por décadas de políticas neoliberais. Agora, mais do que nunca, necessitamos considerar a diferença entre o acesso formal e substancial às decisões.

A definição de instituições adequadas  para regularem e mediarem as forças económicas e sociais é um desafio global, não apenas europeu, mas a sua consecução poderá parecer demasiado longe para poder ser alcançada. Uma forma para recuperar o espaço de deliberação construtiva democrática e experimentação política é opor-se aos dispositivos tecnocráticos e científicos que suportam o atual bloqueio. A retórica ‘tecnocrática’ dos economistas e dos banqueiros centrais convenceram a maioria das pessoas de que não existe uma alternativa exequível à lógica do mercado (financeiro), à austeridade orçamental, aos baixos salários, aos mercados laborais flexíveis e aos bancos centrais independentes. Desta forma, a economia dominante, dos poderes estabelecidos, restringe (e continua a restringir) as escolhas políticas, retirando aos eleitorados a sua autonomia de avaliação política e moral. Este é um jogo perigoso, uma vez que a única maneira que os marginalizados eleitorados têm para expressar a sua raiva, ansiedade e impotência é escolhendo forças que se autodefinem de “anti-establishment”. Isto aconteceu não apenas em Itália, mas também noutros lugares da zona euro e na Grã-Bretanha. Os EUA estão a sofrer as consequências da sua versão própria da mesma história. Ninguém sabe dizer aonde isto nos conduzirá.

Os economistas são grandemente culpados de toda esta confusão: têm a responsabilidade de ajudar a melhorar a atual situação de apuro. A única maneira de o fazerem é criando espaço para deliberação política relevante sobre políticas alternativas à austeridade orçamental, à elevada desigualdade e aos trabalhadores flexíveis mal pagos. Eles têm que abandonar a “linha partidária” oficial da teoria e prática económicas – um Politburo que transforma a economia num servidor inútil fornecendo auto-avaliação às elites e contribuindo para bloquear o debate e abertura que são vitais a uma sociedade funcional e equitativa.

 

Este artigo assenta extensamente no meu texto “Political Economy of the Stability and Growth Pact,” European Journal of Economics and Economic Policies: Intervention, Vol. 14 No. 3, 2017, pp. 333–350. Estou em dívida para com Servaas Storm, Roberto Ciccone, Thomas Ferguson, Sergio Levrero, Robert Johnson, e Annamaria Simonazzi pela enorme ajuda na clarificação e e aperfeiçoamento do texto.

 

Texto original em https://www.ineteconomics.org/perspectives/blog/italy-holds-a-mirror-to-a-broken-europe

 

Notas

[1]  Kindleberger, C.P. (1996): Centralization versus Pluralism: A Historical Examination of Political-Economic Struggles and Swings within Some Leading Nations, Copenhagen: Copenhagen Business School Press. Devo esta referência a Perry Mehrling

[2]  A decisão de tornar os bancos centais nacionais independentes do Tesouro tinha já sido tomada pela Itália em 1981 e pela França em 1986.

[3] Demasiados para que dê uma lista exaustiva, mas veja por exemplo Godley (1992), Goodhart (1998), Parguez (1999), e Simonazzi/Vianello (1999).

[4]  Nota de Tradutor: esta é uma visão tipicamente dos países grandes; aos países pequenos sempre interessou uma Comissão forte que pudesse contrabalançar o poder dos grandes países, expresso nomeadamente no Conselho Europeu.

[5]  Caffè, Federico (1976): Un’economia in ritardo: contributi alla critica della recente politica economica italiana, Turin: Bollati Boringhieri

 

 

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