Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – A Polónia contesta a identidade europeia. Por George Friedman

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

A Polónia contesta a identidade europeia

george friedman gPF por George Friedman

Publicado por friedman logoem 27 de setembro de 2017

Varsóvia está relutante em abrir mão para a União Europeia da sua soberania duramente conquistada .

Estou a escrever este artigo num quarto de Hotel em Varsóvia, cercado por memoriais dedicados a Frederic Chopin, o grande compositor polaco e campeão de auto-determinação para o povo polaco. Este é um momento particularmente oportuno para estar aqui, uma vez que a Polónia está enredada numa batalha com a União Europeia sobre a questão da autodeterminação nacional polaca – mais de dois séculos depois do nascimento de Chopin.

A questão resume-se a isto: a Polónia elegeu um governo que se comprometeu a mudar a direção em que o país se estava a movimentar. O novo governo é de direita. Opôs-se às políticas e à postura institucional do governo precedente, de centro-esquerda. O governo anterior tinha integrado os seus apoiantes em várias instituições, como os tribunais e rádio nacional, como os governos tendem normalmente a fazer. O novo governo viu-se, pois, confrontado com um sistema judicial e com media estatais hostis. E assim procurou mudar a gestão dos media nas mãos do Estado e “reformar” (nos seus próprios termos) o sistema judicial.

Quando tentou mudar o pessoal em ambas as instituições, a oposição acusou-o de que essas ações violavam a Constituição, que o governo tinha ultrapassado os seus limites e que estava a tentar reprimir os críticos. O governo contra argumentou dizendo que a oposição estava a tentar impedir o novo governo de governar. Tinha sido eleito por uma maioria substancial, e tinha expressado claramente as suas políticas durante as eleições.

Política como de costume

Até agora isto é política, como de costume. Exemplos destes abundam por todo o lado. Nos Estados Unidos no século XX, o Presidente Franklin D. Roosevelt, enfrentando um Supremo Tribunal de conservadores entrincheirados, tentou aumentar o número dos seus membros e enchê-lo com os seus próprios apoiantes. Roosevelt perdeu. Na Grã-Bretanha nas décadas após a segunda guerra mundial, a BBC estatal tinha o monopólio da radiodifusão e tinha sido equipada em pessoal pelos governos trabalhistas. Os governos conservadores acusaram-na de lhes ser hostil, e as tentativas de mudar o pessoal foram recebidas com acusações de censura.

Este tipo de argumentos são endémicos às democracias com burocracias governamentais. O humor público muda, mas a ideologia das burocracias permanece intacta. Segue-se uma batalha. Fações concorrentes todas apontam para as consequências terríveis se as suas opiniões não prevalecem, mas uma solução viável, se não mesmo completamente aceitável, é normalmente encontrada.

O que torna a situação polaca diferente é a intervenção ameaçada pela burocracia da União Europeia e a hostilidade oral da Alemanha às políticas do novo governo. Isso inclui ameaças para suspender a Polónia da participação em algumas das funções da UE e várias reivindicações hostis sobre o governo polaco.

Isto não só aumenta os desafios como também atinge o coração da democracia liberal. No cerne da democracia liberal está o direito de auto-determinação nacional. Auto-determinação, de acordo com os teóricos da democracia liberal como Locke e Montesquieu, envolve algum tipo de processo democrático, um conceito com uma grande variedade de estruturas institucionais, que têm no seu núcleo algum tipo de processo eleitoral. Não há dúvida de que o atual governo da Polónia foi eleito numa votação legítima e, nesse sentido, representa a determinação do povo. A acusação implícita feita pelos seus oponentes é que na execução deste mandato o governo violou a constituição polaca. Lembro-me da resposta de Andrew Jackson a uma decisão do Supremo Tribunal com o qual ele discordou, quando aquele sugeriu que o Tribunal teria de impor a sua própria decisão, porque o seu governo não o faria. Jackson, sem dúvida, violou a essência da Constituição dos EUA, mas a República sobreviveu.

Desvio

Dado que o governo da Polónia surgiu de um ato de autodeterminação, e dado que as ações empreendidas não são inéditas nos anais da democracia liberal, é estranho que a UE e a Alemanha sejam tão agressivas em puxar a campainha de alarme sobre a Polónia. Há uma série de razões. Em primeiro lugar, a UE tem uma ideologia de base. Uma parte dela é um compromisso com o comércio livre. O outro é um compromisso com uma ordem social que é essencialmente laica, que procura ultrapassar as distinções nacionais e que não tolera a intolerância. Com isto quero dizer que ela abraça a doutrina de que o Estado deve não somente permitir variâncias na vida privada, mas estar preparado para consagrá-las num sistema legal de tolerância obrigatória. A combinação de um compromisso com o comércio livre e um compromisso com as escolhas privadas que estão a ser consagrados como parte da política pública inevitavelmente irá deparar-se com certas variedades de democracia liberal que lhe são inaceitáveis. A exclusividade nacionalista, a erosão da laicidade pela religiosidade e a relutância em transformar a liberdade privada em algo explicitamente celebrado pelo Estado são atitudes rejeitadas.

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O presidente polaco Andrzej Duda numa conferência de imprensa para anunciar os seus projetos de reforma judicial depois de ter bloqueado em julho reformas judiciais controversas da parte do Parlamento, em Varsóvia, em 25 de setembro de 2017. WOJTEK RADWANSKI/AFP/Getty Images

 

A transgressão do governo polaco não é realmente sobre tribunais ou a radiodifusão. Em vez disso, trata-se do facto de a Polónia se estar a desviar da ideologia da UE. O governo polaco opôs-se à imigração ilimitada de muçulmanos para a Polónia, argumentando que isso mudaria o caráter nacional do país. Por outras palavras, a Polónia elevou as distinções nacionais a um nível inaceitável para a União Europeia. O governo polaco insiste que há uma nação polaca e que outros com valores diferentes não podem tornar-se parte dela.

Há a questão adicional do secularismo. A Polónia é um país católico, não só no sentido de que muitos praticam essa religião, mas no sentido mais profundo de que a história polaca está vinculada ao catolicismo. Isso é verdade para toda a Europa (acrescentando os ortodoxos e os protestantes), mas para a Polónia este vínculo é muito mais vivo. A destruição do comunismo na Polónia, e em grande medida na Europa Oriental em geral, foi profundamente dependente da Igreja Católica polaca que encorajou e protegeu o movimento de resistência contra o comunismo e contra a ocupação alemã que o precedeu.

Quando o Catolicismo era visto como um movimento antitotalitário, os europeus celebravam-no. Quando se viu que a Igreja Católica não era apenas uma organização não-governamental a exigir o respeito pelos direitos humanos, mas também era verdadeiramente Católica – uma religião – os europeus arrefeceram o seu entusiasmo em relação a ela. Quando a Igreja Católica, sempre profundamente enraizada na vida política polaca, adotou posições sobre a vida privada inaceitáveis para a ideologia da UE e se entrelaçou com o novo governo, então a hostilidade tornou-se clara.

Benefícios da adesão

O governo polaco representa um desafio fundamental para a UE. A UE promoveu uma ideologia em que as distinções nacionais deveriam diminuir e ser substituídas por uma ideologia europeia. Desde 2008, aumentou a resistência à prioridade do europeísmo sobre a identidade nacional. Isto é o que motivou o Brexit. A Polónia e alguns outros países da Europa Oriental têm-se mostrado particularmente reticentes em abandonar as suas identidades nacionais. No caso da Polónia, esta identidade nacional estava ligada à religiosidade pública – uma religião que não quer ser confinada à esfera privada e não quer aceitar as opiniões da UE sobre a afirmação do Estado relativamente a uma variedade de comportamentos.

A ideologia da UE tornou-se bem mais problemática após 2008, à medida que os benefícios económicos da adesão diminuíram. A UE procurou proteger os seus princípios morais e sociais face a este declínio.

O governo polaco desafia diretamente esta ideologia. Se a ideia do europeísmo diminui e a ideia da nação aumenta, enquanto a Europa falha em ser capaz de regressar à sua prosperidade de antes de 2008, então os princípios morais que vinculam a UE irão murchar.

Há uma razão para a Europa Oriental – a Polónia e a Hungria, em particular – estarem a defender isto. A Polónia foi soberana durante cerca de 20 anos nos últimos séculos. Perdeu a sua soberania para a Alemanha e para a Rússia. Perdê-la novamente para a UE, cuja promessa económica está em causa e que exige o direito de julgar e orientar a vida interna da Polónia, parece ser um mau negócio. A Europa Oriental tem lutado pela sua soberania durante muito tempo. A soberania significa não se colocar de joelhos perante um poder maior.

Mas para a UE, a Polónia e a Hungria são desafios mortais. Eles definiram ser Europeu de uma certa maneira. A Polónia e a Hungria estão a reivindicar o seu direito à sua própria identidade nacional. A propagação da ideia de identidade nacional sobre os valores da UE deixa a UE como sendo uma relação económica, uma afinidade eletiva baseada no que a UE traz para a mesa. A UE está configurada para julgar os seus membros. Se a doença polaca (e britânica) se espalha, os seus membros estarão a julgar a UE.

Texto original em https://geopoliticalfutures.com/poland-challenges-european-identity/

 

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