Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – Os pobres que não merecem ser ajudados: toda uma pequena história. Por Elizabeth Bruenig

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Os pobres que não merecem ser ajudados: toda uma pequena história

Elizabeth Bruenig Por Elizabeth Bruenig, colunista no Washington Post

Publicado por MEDIUM em 7 de janeiro de 2018

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“Blessing Christ” circa 1200

Na coluna que publiquei ontem no Post (e no domingo na versão impressa), defendi que as pessoas pobres não devem ser obrigadas a trabalhar para receberem ajuda do governo. Um pouquinho de história acabou por ficar no chão da sala de corte (e com razão), mas eu queria compartilhá-la com os leitores do blog, juntamente com alguma ideias mais sobre o mesmo assunto, no caso de o leitor estar interessado.

 

O facto de que algumas pessoas que necessitam de ajuda tenham defeitos de vária ordem não é uma descoberta moderna. Também não é uma ansiedade que tenha surgido com o aparecimento de programas de bem-estar do Estado. No Ocidente latino, as distinções foram sempre desenhadas entre aqueles que merecem generosidade e aqueles que não a merecem, embora as linhas divisórias tenham mudado ao longo do tempo.

Na Roma pré-cristã, a generosidade era concedida não na base da necessidade, mas da cidadania. Os ricos davam aos seus concidadãos não porque fossem necessariamente pobres, embora alguns deles fossem, mas porque eram estimados como irmãos-cidadãos. Na cidade de Roma, os cidadãos podem ter representado menos de metade da população; simplesmente viver em Roma não dava o direito à cidadania. Os estrangeiros não-cidadãos e os pobres que viviam nos seus bairros de lata não eram considerados merecedores da generosidade dos ricos da cidade. Como Peter Brown escreve em Through the Eye of a Needle (Através do buraco de uma agulha) “mostrar generosidade para com os muitos milhares de mendigos e imigrantes que permaneceram nas margens da cidade não era um ato de caridade. Era uma afronta ao conjunto dos cidadãos“.

Assim, os pregadores cristãos do final da antiguidade tiveram muito trabalho a fazer em sua defesa. Não só tinham que criar os pobres como uma categoria social na imaginação popular, eles tinham ainda que convencer as elites romanas que a distinção entre os que têm e os que não têm era relevante para decidir como distribuir as ajudas.

Escrevi sobre os esforços de Santo Agostinho nesta matéria para a revista Point Magazine. Mas vale a pena sublinhar que ele, também, assinalou uma distinção entre os pobres merecedores de ajudas e aqueles que não eram merecedores – embora de uma forma que é estranha para o pensamento moderno. Santo Agostinho desencorajou os cristãos de darem presentes a, entre outros, aos adivinhos, gladiadores, atrizes e prostitutas, que provavelmente teriam sido pobres em geral, com exceção de alguns casos. Santo Agostinho parece argumentar que isso se deve a que as pessoas dão principalmente a esses grupos com a finalidade de os incentivar a continuarem na sua profissão – o que soa mais a um patrocínio do que à caridade, mas, novamente, estamos a falar de um período em que a distinção não é ainda nítida. Santo Agostinho diz que quando se dá a alguém na sua capacidade de um malfeitor está-se aí a incentivar o que há de mais mau neles, o que lhes é realmente prejudicial. Assim, Santo Agostinho opõe-se a isso. (Os seus intérpretes medievais consideram, corretamente penso eu, que Santo Agostinho queria exortar à doação, mas a que não se se desse com vício na mente. Johannes Teutonicus  Zemeke ironizou da seguinte forma: “o vício não deve ser alimentado mas a natureza deve ser sustentada.” Parece-me uma posição correta).

Outros pais da Igreja eram muito menos discriminatórios. São João Crisóstomo e o próprio professor de Agostinho, Santo Ambrósio, defendiam os dois a dádiva a quem em geral a pedia e são citados pelos canonistas medievais como sendo a favor da caridade sem discriminação da virtude.

Os medievais tinham, deste modo, duas mentalidades. Mesmo no Decreto de Graciano, duas opiniões diferentes emergem: “na hospitalidade, não se deve levar em consideração o que são as pessoas pois devemos acomodar todos aqueles para quem os nossos recursos são suficientes“, por um lado, e, por outro, que os cristãos não têm nenhuma obrigação para com os mendigos válidos. Zemeke, mais uma vez, ironizava dizendo: “a Igreja não deve sustentar um homem capaz de trabalhar…. porque os homens fortes, seguros da sua comida sem trabalho, muitas vezes negligenciam a justiça.” Como diz Brian Tierney em Medieval Poor Law: “a pobreza como tal não era considerada um crime aos olhos dos canonistas, mas a ociosidade voluntária, essa, era-o.”

Naturalmente, a ociosidade intencional teve uma ressonância social diferente na Idade Média, pois mesmo que fosse um pequeno número de moradores a negligenciar o seu trabalho isso poderia significar um desastre para todos os outros. O desemprego tal como nós o conhecemos — o fenómeno de pessoas que querem trabalhar mas que não encontram trabalho – era virtualmente desconhecido para eles; a escassez de trabalhadores era um problema mais urgente

Deste modo, como Peter Speed assinala na sua antologia de fontes primárias medievais Those Who Worked, “não havia dúvida que as gentes medievais tentavam erradicar a pobreza. Em primeiro lugar, teria sido uma tarefa impossível, pois não havia recursos suficientes para o fazerem“. Simplesmente não havia produção suficiente para sequer pensar nisso, um facto que se tornava mais complicado ainda pelos vários episódios de fome e de peste. Assim, os medievais tinham as suas próprias razões para terem a ociosidade em muito baixa estima.

Por outras palavras, em três épocas diferentes encontramos três maneiras diferentes de separar os pobres entre aqueles que merecem a caridade e aqueles que a não merecem. Para os romanos pré-cristãos, tudo era uma questão de cidadania; para (alguns dos) padres da igreja, a questão era a de evitar estar a alimentar o vício; para os medievais, a ociosidade era uma ofensa extraordinária, mas havia uma distinção muito cuidadosa feita entre aqueles que estavam infelizmente sem trabalho (como aqueles que foram atingidos pela fome ) e aqueles que negligenciavam as suas oportunidades.

Para saltar um pouco, é por volta da era vitoriana que surgiu a visão reinante dos programas de socorro da pobreza como ferramentas convenientes para administrar a higiene social. Como Walter Trattner aponta em From Poor Law to Welfare State:

A assistência pública seria confinada aos cuidados institucionais, principalmente para os pobres “dignos” ou para os mais desmunidos, os permanentemente incapacitados, e outros que claramente não podiam cuidar de si mesmos. Além disso, os pobres aptos ou os “indignos” que procuravam ajuda pública seriam institucionalizados em asilos onde o seu comportamento não só poderia ser controlado mas onde, retirados da sociedade e dos seus vícios tentadores, eles presumivelmente adquiririam hábitos de indústria e trabalho e, assim, preparar-se-iam para uma vida melhor (ou seja, uma vida de auto-suficiência)“.

Isto para já não falar de todos as outras medidas estúpidas, punitivas, e, ao que tudo indica, sádicas tomadas para reduzir o número de pessoas pobres durante esse mesmo período e bem assim até ao século XX. Mas ao concentrarem-se apenas sobre a relação entre o trabalho e o mérito, as razões dos Vitorianos para insistirem sobre o trabalho tinham-se deslocado relativamente ao que foi o consenso medieval. Agora, a ociosidade não era nem um pecado contra os outros nem uma ameaça existencial para a Comunidade, mas sim um fracasso da higiene moral pessoal.

Os pobres tinham necessidade de ser educados nas virtudes e hábitos de diligência e serem despojados dos seus vícios porque a sua pobreza os impedia de serem indivíduos totalmente autónomos. Ser menos do que um indivíduo é ser menos do que ser verdadeiramente livre, por um lado, e por outro, é forçar os outros a serem menos do que verdadeiramente livres. Neste quadro, ser pobre, na medida em que obriga os outros a ajudá-lo, começa a ser visto como qualquer coisa de verdadeiramente imoral.

Somos herdeiros desta visão da pobreza como uma espécie de imoralidade, e na medida em que a pobreza coloca exigências coercivas (legais) sobre os outros, como algo quase criminoso – a tributação é um roubo, é o que nos gritam os libertários. O Workfare [1] é uma espécie de terceirização dos asilos para as empresas privadas, raciocínio por detrás do qual está algo notavelmente semelhante ao antigo raciocínio vitoriano sobre os asilos. Eis aqui Larry Mead, o padrinho intelectual da reforma do Estado Providência (o Welfare) a falar num testemunho no Congresso em 2013:

O propósito do Estado Providência então, não é principalmente o de apoiar as pessoas em necessidade, por importante que isto seja. A pura indigência é invulgar na América de hoje, com ou sem o Estado Providência. Em vez disso, o Estado Providência deve direcionar os pobres para terem uma vida mais produtiva, quando for possível — vida que eles próprios desejam. Aqueles que se considera que podem trabalhar – homens ou mulheres – devem realmente fazê-lo. A única coisa que a reforma do Estado Providência (a passagem do Welfare para Workfare) mudou claramente sobre o estilo de vida da pobreza foi o de aumentar os níveis de trabalho para as mães pobres. Isso não foi um acidente. Os pobres respondem ao que a sociedade claramente espera deles.

Mead não fez nenhuma campanha, que eu saiba, para conseguir que as mães ricas que não precisam do Estado Providência saíssem para fora de casa e se colocassem atrás de um balcão de qualquer cadeia de restaurantes como o seu Arby local. (este é um ponto que eu o questionei quando discuti o tema na Universidade Johns Hopkins há já algum tempo; Mead alegou que as mães ricas em casa têm patrões de um outro tipo – os seus maridos. Considera então que isto não é frequentemente o caso, com as mães pobres. Sobre isto o leitor conclua o que entender.). Na opinião de Mead e no Estado Providência que Clinton nos deixou, podemos ver a visão do Estado do bem-estar não como assistência, mas como uma ferramenta de controle social -Mead disse-o abertamente. A intenção é moldar as pessoas pobres para o tipo de pessoas que queremos que eles sejam, não para as ajudar a desenvolverem-se como elas são, ou como elas pretendem ser. O mercado de trabalho, a produtividade e a autonomia são tudo aspetos que o bem-estar da pessoa ajudada e modificada deve levar a criar, neste quadro transformador.

Eu não acho que a causa principal da pobreza seja a indolência, geralmente. E mesmo que, em alguns casos, o seja, parece-nos que o conselho original de Agostinho como reformulado por Zemeke, faz algum sentido: quando se escolhe, enquanto sociedade, definir um padrão base de qualidade de vida para todos não se está a fazê-lo com o argumento de que com isso se está a desencorajar a produtividade ou a coesão social, quando ambas as coisas são naturais para todos e de toda a maneira, mas sim que se está a querer criar uma sociedade que valoriza todas as pessoas por igual.  Não se pode chegar a este objetivo ao querer transformar as pessoas que não valorizamos em pessoas que se está depois disposto a valorizar.

 

Texto original em https://medium.com/@ebruenig/the-undeserving-poor-a-very-tiny-history-96c3b9141e13

Nota

[1] N.T. O termo workfare surgiu nos últimos 25 anos em oposição e como alternativa ao termo welfare. O termo workfare refere-se “…. àquelas políticas que, em vez de porem o acento nos ‘incentivos’ e ‘direitos’ ao emprego, colocam o acento na direta ‘obrigação’ de empregar-se como preço a pagar para receber um subsídio. (…) (N. del E in: Gough,2003, p.237). (…) a expressão workfare surgiu nos Estados Unidos (…) cuja base assentava na ideia de que quem recebia ajuda pública do governo deveria realizar uma “troca” com trabalho”.

A reestruturação das políticas sociais, como consequência da desmontagem dos direitos sociais apresenta-se como um dos principais problemas associado ao processo de reestruturação das formas de produzir e dos modos de organizar e gerir o trabalho (…) Esse processo vem ocorrendo (…) desde a década de 1980, no bojo das transformações desencadeadas pela crise capitalista dos anos 1970 e pela expansão do neoliberalismo, dentre os quais ressalta o trânsito do regime de produção keynesiano/fordista para o regime de produção pós-keynesiano/pós-fordista, ancorado nas ideias empreendedoristas schumpterianas e no bem-estar como produto do mérito individual e não mais como direito social; ou melhor, ressalta a passagem do welfare (bem-estar como direito incondicional) para o workfare (bem-estar em troca de trabalho) (…)“. Vd. “Do welfare ao workfare”, tese de doutorado de Ricardo Gonçalves da Silva, Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, abril de 2011, em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/8419/1/2011_RicardoGon%C3%A7alvesdaSilva.pdf

 

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