Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
Obrigado a David Hesse e El País
Não lhes chamem “campos”
Os centros vedados nos quais serão concentrados os emigrantes não se conhecerão com um nome que evoca associações terríveis
por David Hesse
em 9 de julho de 2018

Deixando de lado as reticências, a Europa quer regressar aos campos de internamento. Supõe-se que os campos vão ser a solução. A ideia é que se retenham os emigrantes em África —na Líbia, por exemplo, ou no Níger— antes de que empreendam a sua perigosa travessia por mar em direção à Europa. É o que a UE quer. Até mesmo aos refugiados que, apesar de tudo, consigam chegar a território da UE, o que os esperará serão campos em solo europeu. O lugar está por decidir. Isso sim, serão instalações fechadas e vigiadas, já que haverá que “registar” os seus ocupantes e devolver os não autorizados. E se se escapassem, não seria possível fazê-lo.
O Governo alemão quer ampliar a terra de ninguém situada na fronteira entre a Alemanha e a Áustria, de maneira que se possa interceptar os emigrantes e refugiados antes que entrem oficialmente na Alemanha e tenham direito a um procedimento regular de pedido de asilo. Cria-se uma “ficção da não entrada”, como se denomina no acordo. Artimanhas do Estado. Entretanto, Angela Merkel declarou que não se reterá a ninguém mais de 48 horas, nem sequer em terra de ninguém. No que toca à Áustria fará o mesmo, está por ver. Ou seja, o plano consiste mais numa fantasia de campo que numa política exequível, o que não faz mais que piorá-lo.
É claro, os centros vedados em que os imigrantes serão concentrados não se vão chamar campos. Esse nome evocaria associações terríveis. À memória viriam os campos de concentração nazis, o sistema de gulags soviéticos, os campos de refugiados para gerações de palestinianos ou o campo de prisioneiros estado-unidense de Guantánamo.
Não. Na Alemanha, estas não prisões chamar-se-ão “centros de trânsito”, uma denominação amável, eficiente, prática, inspirada nas zonas de trânsito dos aeroportos em que os viajantes mudam de avião. Uma ocorrência parecida à que denominam “turismo de asilo” relativamente à fuga da guerra e da pobreza. A política da União Europeia, todavia, está indecisa no que se refere à sua terminologia para os campos. Em algumas publicações apareceu o termo “centros de acolhida”, mas também o de “plataformas de chegada e desembarque”, o que soa a cruzeiro e aventura.
Na Alemanha, estas não prisões chamar-se-ão “centros de trânsito”, uma denominação amável, eficiente, prática
Debaixo de todo este verniz linguístico, a realidade é que a Europa já não é suficientemente nobre para não criar campos fechados e vigiados para pessoas que não cometeram nenhum delito. Os campos vão-se converter num elemento quotidiano, em algo normal. Se possível, serão instalados em sítios horríveis e afastados; se necessário, no nosso próprio território. Isolar, recontar, registar.
A alegria com que se leva avante o plano deixa-nos boquiabertos. Passaram apenas dois anos desde que a opinião pública europeia condenou a Austrália pelos seus brutais campos de internamento, geridos por empresas privadas de segurança, nas ilhas de Nauru e Manus, no Pacífico, e já estamos dispostos a deixar de lado as críticas. Porque não pagar aos líbios para que detenham e encerrem as pessoas?
Quando a política interna as pessoas em campos sem que haja ocorrido nenhuma catástrofe, fá-lo por outros motivos. Neste caso trata-se de controlar, ordenar, reeducar, dominar. As potências coloniais utilizaram os campos para os seus fins, desde os campos cercados com arame farpado dos britânicos no Quénia até aos campos alemães para os pertencentes à etnia dos hereros na atual Namíbia. Em campos encerraram os Estados Unidos aos seus cidadãos de origem japonesa durante a II Guerra Mundial.
A Europa respira tranquila pensado que esses desvarios estão longe. “Nunca mais campos na Alemanha” é um slogan ridículo na opinião dos governantes alemães. A razão é que evoca imagens que, supostamente, nada têm que ver com o presente. O objetivo dos diversos campos para emigrantes da Europa e de fora das suas fronteiras não é exterminar, mas “tão só” controlar o acesso e dissuadir. Isto tem que ser explícito. Pelo mundo deve correr a notícia dos campos do horror, e não a do paraíso estado-unidense.
A normalização da reclusão em campos na Europa —tal como os campos para crianças emigrantes nos Estados Unidos que o autor irlandês Fintan O’Toole qualifica de “teste de mercado para a barbárie”— constitui um indício de que o verniz de civilização é cada vez mais fino. Todo o que façamos para nos opormos a isso será pouco.
Texto original em https://elpais.com/elpais/2018/07/08/opinion/1531068401_589730.html
David Hesse é redator e colunista de Tages-Anzeiger e historiador.