Da crise atual à próxima crise, sinais de alarme – Genes, povos e línguas (2ª parte-conclusão). Por Luigi Luca Cavalli-Sforza

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Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares

Genes, povos e línguas (2ª parte-conclusão)

luigi sforza Por Luigi Luca Cavalli-Sforza

janeiro de 1992

 

Em geral, os processos migratórios refletem alterações que obedecem a pressões e a novas possibilidades ou oportunidades. Os humanos e os seus hominídeos antecessores registaram episódios de alta densidade populacional e conseguinte expansão geográfica. Tais êxitos demográficos nasceram, em muitos casos, de certo desenvolvimento cultural, que, no que toca à pré-história, só podemos coligir os restos arqueológicos. Esses testemunhos -ossos e instrumentos líticos na sua maioria- corroboram a tese africana do assentamento original dos hominídeos. Desde esse núcleo irradiaram para a Ásia via o istmo de Suez e, posteriormente, passaram da Ásia à Europa. Nessas regiões houve enclaves hominídeos há talvez um milhão de anos.

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3. A ACUMULAÇÃO DE MUDANÇAS ao longo do tempo produz diferenças genéticas, como fica refletido nesta árvore genealógica de etnias (esquerda). A dispersão, mecanismo de mudança, pode ser reproduzida no computador (direita). Quando uma população se separa em duas metades as suas frequências genéticas são similares, mas com o tempo e o acaso podem evoluir em direções opostas.

 

O seguinte passo é mais difícil de estabelecer, pois depende do momento em que imaginemos a separação dos humanos modernos do tronco hominídeo. Em qualquer caso, está claro que já tinha ocorrido quando os humanos se dispersaram desde a Ásia para a América, acontecimento que ocorreu quando o estreito de Bering estava seco e a suavidade do clima possibilitava o avanço por terra. A colonização da Austrália e das ilhas do Pacífico teve também de produzir-se em data recente, uma vez dominada a navegação em mar aberto.

Pelo que sabemos, a Austrália foi colonizada por emigrantes do sudeste asiático há uns 40.000, se não 10.000 ou 20.000 anos antes. Os arqueólogos andam divididos sobre a chegada a um continente americano. Contudo, os primeiros sinais convincentes da presença humana no Alaska remontam a uns 15.000 anos. Parece que há datações anteriores em alguns sítios da América do Sul. As estimativas oscilam, pois, entre 15.000 e 35.000 anos. Os nossos dados de genética nuclear abonam um assentamento cujos inícios se situarão há uns 30.000 anos.

A Europa, varrida em várias vagas migratórias, conserva, todavia, vestígios dos primeiros enclaves. Em 1954 Arthur E. Mourant, do laboratório de genética de populações do Conselho de Investigações Médicas de Londres e na linha da frente da geografia genética, ideava um estratagema engenhoso para resolver o puzzle. Segundo a sua hipótese, os bascos (população do norte de Espanha e do sudoeste de França) são os habitantes mais antigos da Europa, e conservaram algo da sua constituição genética primitiva, apesar do seu cruzamento com sucessivos imigrantes. A teoria apoia-se em dados sobre o Rh negativo: os bascos têm uma frequência maior desse gene que qualquer outra população. Os trabalhos com outros genes confirmam a hipótese, o mesmo que o estudo das fundas diferenças linguísticas entre o basco e a língua dos seus vizinhos.

A análise recente da variação genética que se observa de uma ponta a outra da Europa convidou a criar um modelo do possível curso seguido pela colonização europeia. De acordo com o guião proposto, os agricultores do Neolítico levaram os seus genes, cultura e línguas indoeuropeias do Médio Oriente para a Europa num processo de expansão lenta. Como os antepassados dos bascos viveram no outro extremo da corrente migratória, é provável que o grau de miscigenação genética com os agricultores fosse mínimo.

Não podemos esquecer que só encontraremos padrões de assentamentos que refletem emigrações com êxito. Também haveria outras mas que fracassaram. Na América, para tomarmos um exemplo recente, sabe-se que os vikings levaram a cabo colonizações curtas, mas desconhece-se a sua possível contribuição para o acervo genético do lugar.

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Correlação entre povos e línguas

Vejamos o nosso terceiro descobrimento importante: a surpreendente correlação entre distribuição de genes e distribuição de línguas. Chegámos, com efeito, à conclusão de que, em certos casos, uma língua ou família de línguas serve para identificar uma população genética. Temos um exemplo notável nas quase 400 línguas da família bantu da África central e do sul, línguas estreitamente aparentadas entre si, que, além disso, têm muitos pontos em comum com as fronteiras tribais e as filiações genéticas entre tribos. Os fundamentos linguísticos que sustentam este caso já tinham sido avançados nos anos cinquenta por Joseph H. Greenberg, de Stanford.

Greenberg defendia, e isso é hoje aceite pela maioria, que as línguas bantus descendiam de uma língua comum ou de um grupo de dialetos aparentados que falavam os antigos agricultores do leste da Nigéria e dos Camarões. Com a expansão dos camponeses para o centro e sul de África, há pelo menos 3.000 anos, as suas línguas diversificaram-se, mas não ao ponto de proteger a sua origem comum. A explicação é aplicável aos genes dessas populações; e assim, o bantu – na sua origem uma categoria linguística – emprega-se agora para designar um conjunto de populações que partilham uma mesma base linguística e genética

Em 1988 publicámos uma árvore filogenética de 42 populações com os seus respetivos parentescos linguísticos. A árvore demonstra que o agrupamento genético das populações se sobrepõe sem qualquer ruído ao agrupamento por línguas. Com muito poucas exceções, as famílias linguísticas parecem ter uma origem bastante recente na nossa árvore genealógica. Acrescente-se a isso o trabalho de dois grupos de linguistas, que criaram categorias linguísticas superiores (“superfamílias”) com uns resultados paralelos aos obtidos no rastreio genético, de índole obviamente distinta. Para já não falar da excitação que nos produzia termos confirmado uma conjetura de Charles Darwin, que no capítulo 14 do seu livro Sobre a origem das espécies mediante seleção natural assinalava que, se se conhecesse a árvore da evolução genética, poder-se-ia prever a da evolução linguística.

Porque vão lado a lado a evolução genética e a linguística? Não se veja nisso nenhum determinismo genético; a resposta está na história: os genes não controlam a linguagem, não senso senão as circunstâncias do nascimento as que determinam a língua com que cada um se enfrentará. As diferenças linguísticas poderão levantar ou reforçar barreiras genéticas entre as populações, mas não é provável que sejam o motor da correlação. A evolução humana está cheia de fragmentações das populações em grupos, alguns dos quais assentam noutras partes. Cada fragmento desenvolve padrões linguísticos e genéticos que levam a pegada de um ponto de ramificação comum. Portanto, alguma correlação é inevitável.

Pode-se objetar que as separações totais, como as que se estabelecem quando um grupo dissidente emigra para um novo continente, devem ser raras. Mas não são necessários oceanos nem cordilheiras para dividir as populações: basta a distância, como demonstram os estudos genéticos em muitas espécies. Como os intercâmbios demográficos costumam ser mais habituais nas distâncias curtas, é expectável e encontra-se um maior grau de disparidade genética conforme se dilata o afastamento entre dois subgrupos. O mesmo acontece com as línguas. Sem barreiras especiais, as variações linguísticas e genéticas tendem a ser contínuas; a descontinuidade aparecerá (na genética e na língua) se se levantar algum obstáculo contra o fluxo livre de pessoas ou populações.

A nossa regra da correspondência entre genes e línguas apresenta dois tipos de exceções: quando se produz substituição de língua e quando se dá substituição de genes. O primeiro caso ocorre quando as pessoas abandonam a sua língua ancestral por outra, a dos imigrantes, conquistadores ou elite cultural. Não é fenómeno habitual e a sua probabilidade é menor se a língua nova procede de uma família diferente. O basco é um caso extremo de relíquia linguística que conseguiu sobreviver a milhares de anos de contínuas mudanças nas regiões vizinhas.

A substituição de genes, normalmente parcial, acontece com a mistura de duas populações. A mistura pode ser gradual e afetar então as frequências relativas de todos os genes na mesma proporção. Este gradualismo é nota discriminante entre genes e línguas, que podem ou não ser substituídas. A língua conserva a sua integridade ancestral ainda quando incorpore muitas palavras de outra família ou subfamília linguística. Os linguistas coincidem, por exemplo, em que o inglês continua a ser um membro da subfamília germânica apesar dos contributos do francês, do grego e do latim. O que importa é que a estrutura e o vocabulário básico conservem as características da família.

Esta diferença significa que, quando uma minoria conquista uma maioria e lhe impõe a sua língua, a substituição do idioma é quase absoluta, enquanto que a substituição génica é proporcional à razão demográfica. Os húngaros, por exemplo, falam uma língua originária dos Urais (que dividem a Europa e a Ásia) imposta pelos conquistadores magiares da Idade Média, mas apresentam um padrão genético europeu. Não é trabalho fácil detetar restos de genes magiares na população moderna.

A substituição génica em grande escala é talvez a mais rara. Mas há um exemplo, pelo menos: os lapões, ou saame, da Escandinávia setentrional.

A sua língua pertence à família unilica, mas o seu padrão genético sugere uma mistura entre mongoloides da Sibéria e escandinavos, responsáveis estes últimos pela maioria dos seus genes. A mistura genética é evidente também no cabelo e na pele dos lapões, que variam de muito claro a escuro. Uma situação não muito distinta apresenta-se nos etíopes, uma mistura genética de africanos e de cáucasos da Arábia, com um predomínio dos primeiros.

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Correlação entre povos e línguas

 

Até mesmo um modesto gotejo de genes pode produzir grandes efeitos se for persistente. Exemplo arquetípico temo-lo nos afroamericanos, em que 30% dos seus genes atuais, em média, derivam de antepassados europeus. Esta é a misturada esperada se do total das uniões de negros, desde que se instituiu a escravatura na América, 5% se tivessem realizado com europeus, e os seus filhos tivessem sido classificados como negros. Outros 1000 anos com um fluxo genético similar acabariam praticamente com o genoma africano de origem.

É surpreendente, talvez, que se conserve esse alto grau de correlação entre línguas e genes, apesar da distorção provocada pelas substituições génicas e linguísticas. Em parte isso pode ser reflexo da nossa concentração nas populações aborígenes: Em qualquer caso, outras análises confirmam a existência desta correlação microgeográfica, às vezes de forma espetacular. Talvez o exemplo mais notável seja a forte coincidência entre as nossas análises de padrões genéticos nos nativos americanos e a recente classificação de Greenberg de línguas do Novo Mundo entre famílias principais. Embora os estudos se tenham realizado com metodologias diferentes, e manejado dados de conteúdo muito díspar, os dois fornecem um sólido apoio à existência de um grupo de migrações discretas em direção a ambos os hemisférios americanos.

A explicação última desta correlação entre genes e cultura deve procurar-se nos dois mecanismos de transmissão: horizontal e vertical. Os genes, que se transmitem sempre de pais para filhos, descrevem uma rota vertical através das gerações. A cultura também pode transmitir-se verticalmente de geração em geração, mas diferentemente dos genes admite uma transmissão horizontal, entre indivíduos não aparentados. A moda de temporada, por exemplo, apresenta-se em Paris e transmite-se ao mundo inteiro (embora agora pareça que a Itália toma a dianteira). No mundo moderno a transmissão horizontal ganha cada vez maior importância. Mas as sociedades tradicionais distinguem-se precisamente pelo apego à sua cultura -e normalmente à sua língua- de geração em geração. A sua forma predominantemente vertical de transmissão cultural fá-las mais conservadoras.

As substituições de genes e línguas são exceções complicadas à nossa regra. Cada exceção opera de acordo com as suas próprias normas, e assim se explica em boa medida a evolução das populações e línguas e, portanto, o desenvolvimento da cultura humana. O nosso trabalho deve completar-se com a investigação de tais substituições. Os antropólogos devem acostumar-se a manejar essas ferramentas e não deixar escapar uma informação que se perde por dias. Provas de um valor incalculável escapam-se-nos das mãos quando populações aborígenes diluem a sua identidade. O crescente interesse pelo Projeto Genoma Humano poderia estimular a busca acumulativa de provas de diversidade genética humana antes de que se esfume.

 

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

RECONSTRUCTION OF HUMAN EVOLUTION: BRINGING TOGETHER GENETIC, ARCHAEOLOGICALAND LINGUISTIC DATA. L. Cavalli-Sforza, A. Piazza, P. Menozzi y J. L. Mountain en Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 85, nO 16, pags. 6002-6006; agosto de 1988.

DRIFT, ADMlXTUREANDSELECTIONIN HuMAN EVOLUTION:A STUDY WITH DNA POLYMORPHISMSA. . M. Bowcock, J. R. Kidd, J. L. Mountain, J. M. Hebert, L. Carotenuto, K. K. Kidd Y L. L. Cavalli-Sforza en Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 88, nO 3, pags. 839-843; 1 de febrero de 1991.

 

Texto original em http://evolucion.fcien.edu.uy/Lecturas/genes_pueblos_y_lenguas.pdf

 

LUIGI LUCA CAVALLI-SFORZA (1922-2018), ensinou genética na Universidade de Stanford desde 1971. Doutorou-se em medicina pela Universidade de Pavía. Estudou genética bacteriana em Itália e, de 1948 a 1950, no laboratório de Sir Ronald A. Fisher, na Universidade de Cambridge. Em 1952 mudou o seu interesse para a genética de populações humanas. Desde então estudou os fenómenos de consanguinidade, dispersão genética e forma de a prever mediante observações demográficas, as relações recíprocas entre evolução biológica e cultural, o significado cultural de nomes e apelidos, e a reconstrução da evolução humana. Dirigiu trabalhos de campo entre os pigmeos africanos e aplicou técnicas moleculares na análise de genes e a persistência no tempo de material genético procedente de populações aborígenes. Membro emérito da Pontifícia Academia das Ciências e da Academia Francesa de Ciências. Prémio Balzan em 1999.

Obras:

  • CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca (2003). Genes, Povos e LínguasCompanhia das Letras. [S.l.: s.n.]
  • CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca; Bodmer, Walter F. (1981). Genética de las poblaciones humanasEdiciones Omega. [S.l.: s.n.]
  • CAVALLI-SFORZA, Francesco; Cavalli-Sforza, Luigi Luca (1998). La ciencia de la felicidadGrijalbo. [S.l.: s.n.]
  • CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca (2007). La evolución de la culturaEditorial Anagrama. [S.l.: s.n.]
  • CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca; Cavalli-Sforza, Francesco (1999). ¿Quiénes somos?: historia de la diversidad humanaEditorial Crítica. [S.l.: s.n.]
  • La transizione neolitica e la genetica di popolazione in Europa” 1986, com A.J. Ammerman, Bornighieri
  • The History and Geography of Human Genes” 1993, com Alberto Piazza e Paolo Menozzi, Adelphi
  • Il caso e la necessità, Di Renzo Editore, 2007

 

 

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