De setembro de 2008 a setembro de 2018, uma década perdida, uma década que se quer esquecida – Narrativas sobre a incapacidade, a recusa e a desonestidade intelectual dos nossos dirigentes face aos mecanismos que levaram à crise – 7. A História Esquecida da Crise Financeira. Por Adam Tooze

3 set20082018 VENDEDOR BA BANHA DA COBRA

Uma série que tomo a liberdade de dedicar ao meu amigo jornalista João Marques que tanto tem denunciado a financeirização das economias a que temos estado a assistir e que neste momento passa por uma situação de saúde bem delicada.

Júlio Marques Mota, 17 de setembro de 2018

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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

7. A História Esquecida da Crise Financeira – o que o mundo deveria ter aprendido em 2008

Adam Tooze Por Adam Tooze

Publicado por Foreign Affairs setembro/outubro de 2018

 

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“Setembro e Outubro de 2008 foi a pior crise financeira na história mundial, incluindo a Grande Depressão.” Ben Bernanke, então Presidente da Reserva Federal dos EUA, fez esta afirmação notável em Novembro de 2009, apenas um ano após o colapso. Hoje, olhando para trás, uma década após a crise, há todas as razões para concordar com a avaliação de Bernanke: 2008 devia servir como um aviso da escala e da velocidade com que as crises financeiras globais se podem desenrolar no século XXI.

A história básica da crise financeira é bastante familiar. O problema começou em 2007 com uma diminuição das transações nos mercados imobiliários dos EUA e dos mercados europeus; à medida que os preços das casas caíam desde a Califórnia até à Irlanda, os proprietários começaram a ter atrasos no pagamento das mensalidades das suas hipotecas e os credores começaram logo a sentir a alta tensão dos mercados. Graças à profunda integração dos mercados bancários, das bolsas e dos mercados de capitais financeiros globais, o contágio espalhou-se rapidamente pelas grandes instituições financeiras de todo o mundo. No final de 2008, os bancos na Bélgica, França, Alemanha, Irlanda, Letónia, Holanda, Portugal, Rússia, Espanha, Coreia do Sul, Reino Unido e Estados Unidos foram confrontados com crises existenciais. Muitos já tinham entrado em colapso e muitos outros iriam entrar dentro de muito pouco tempo.

A Grande Depressão da década de 1930 é lembrada como a pior catástrofe económica da história moderna — uma catástrofe que resultou em grande parte das respostas políticas inadequadas — mas foi muito menos sincronizada do que a queda em 2008. Embora mais bancos tenham falido durante a Grande Depressão, estas falências foram dispersas no tempo entre 1929 e 1933 e envolveram folhas de balanço muito mais pequenas. Em 2008, tanto a escala quanto a velocidade da implosão foram de cortar a respiração. De acordo com dados do Banco de Pagamentos Internacionais, os fluxos brutos de capital em todo o mundo caíram 90 por cento entre 2007 e 2008.

Como os fluxos de capital se reduziram drasticamente, a crise transformou-se rapidamente numa recessão esmagadora na economia real. O “grande colapso comercial” de 2008 foi a mais severa contração sincronizada no comércio internacional até hoje registada. No prazo de nove meses após o seu pico de pré-crise, em abril de 2008, as exportações globais baixaram 22% (durante a Grande Depressão, levou quase dois anos para o comércio cair a um valor semelhante). Nos Estados Unidos, entre o final de 2008 e início de 2009, em cada mês 800.000 pessoas perdiam os seus empregos. Em 2015, mais de 9 milhões famílias americanas perderiam as suas casas devido à execução das hipotecas -o mais importante movimento forçado de população nos Estados Unidos desde a tempestade de areia dos anos de 1930. Na Europa, entretanto, os bancos falidos e as frágeis finanças públicas criaram uma crise que quase cindiu a zona euro.

Dez anos depois, há pouco consenso sobre o significado de 2008 e das suas consequências. Narrativas parciais emergiram para destacar este ou aquele aspeto da crise, mesmo com elementos cruciais da história a serem esquecidos. Nos Estados Unidos, as memórias centraram-se sobre a imprudência do governo e sobre a criminalidade privada que levaram ao rebentar da crise; na Europa, os dirigentes políticos em deitar as culpas todas para cima dos americanos.

De facto, os banqueiros de ambos os lados do Atlântico criaram o sistema que implodiu em 2008. O colapso poderia facilmente ter devastado tanto os EUA como as economias europeias se não fosse a improvisação por parte das autoridades americanas na Reserva Federal, que alavancaram conexões transatlânticas que tinham herdado do século XX para parar a corrida global aos bancos.

Que esta realidade tenha sido obscurecida diz-nos muito tanto da política controversa de gestão das finanças globais e como da distância crescente entre os Estados Unidos e Europa. Mais importante, isto obriga a levantar a questão sobre o futuro da globalização financeira: como será que um mundo multipolar que se moveu para além das estruturas transatlânticas do século passado pode lidar com a próxima crise?

Contos de fadas

Um das críticas mais comuns que apareceram desde 2008 é que ninguém previu a crise. Esta é uma construção após os factos. Na verdade, houve muitas previsões de uma crise – apenas não da crise que, finalmente, aconteceu.

Especialistas em macroeconomia de todo o mundo tinham alertado desde há muito tempo sobre os desequilíbrios globais decorrentes do défice das trocas comerciais dos EUA e do défice do orçamento americano e sobre a acumulação pela China de títulos da dívida americana, que estes mesmos economistas temiam que poderiam desencadear uma venda global de dólares ao desbarato.  O economista Paul Krugman advertiu em 2006 de “um momento tipo coiote”[1], em que os investidores, reconhecendo os fundamentais da economia americana degradados, de repente fugiam dos ativos denominados em dólares, prejudicando a economia mundial e fazendo disparar as taxas de juro.

Mas os melhores e os mais brilhantes economistas estavam a ler os sinais errados. Quando a crise chegou, os chineses não venderam ao desbarato ativos dos EUA. Apesar de terem reduzido as suas compras em empresas patrocinadas pelo governo americano, como os empresas de apoio ao crédito hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac, eles aumentaram as suas compras de títulos do Tesouro americano, recusando-se a juntar-se aos russos num ataque à baixa do dólar. Ao invés de cair como se previa, o dólar realmente subiu após a queda da economia em 2008. O que as autoridades americanas estavam a enfrentar não era um afundamento das relações sino-americanas, mas sim a uma implosão do sistema bancário transatlântico, uma crise do capitalismo financeiro.

E a crise era geral, não apenas americana, embora os europeus tenham tido dificuldade em acreditar nisso. Quando, no fim de semana de 13 a 14 de setembro de 2008, o Secretário do Tesouro dos EUA Henry Paulson e outros funcionários tentaram organizar a venda do falido banco de investimento Lehman Brothers ao banco britânico Barclays, a reação de Alistair Darling, o Chanceler britânico do Tesouro, é muito relevadora do estado de espírito inglês [que não percebia o que se estava a desenrolar]. Ele não queria, foi o que disse aos seus homólogos americanos, “importar” dos Estados Unidos o “cancro”- isto apesar do facto de que os próprios bancos do Reino Unido já estavam a falir à sua volta.

Para os europeus, a crise foi uma punição merecida sobre os Estados Unidos.

 Os franceses e os alemães não eram menos emproados. Em setembro de 2008, como a crise estava a tornar-se global, o ministro das Finanças alemão, Peer Steinbrück, declarou que este era “um problema americano” que faria com que os Estados Unidos “perdessem o seu estatuto como a superpotência do sistema financeiro mundial.” O Presidente francês Nicolas Sarkozy anunciou que o estilo de “laissez faire” dos EUA estava “acabado”.

Para os europeus, a ideia de uma crise americana fazia sentido. Os Estados Unidos tinham-se deixado envolver por opção em guerras sem sentido ao mesmo tempo que se recusavam a pagar por elas. Os Estados Unidos estavam a viver muito além dos seus meios, e a crise foi a sua merecida punição. Mas as confiantes previsões de que este era um problema americano foram rapidamente superadas pelos acontecimentos. Não só os bancos da Europa estavam profundamente envolvidos na crise dita de subprimes dos EUA, como também os seus modelos de negócios deixaram-nos desesperadamente dependentes do financiamento em dólares. O resultado foi o de ter colocado todo o continente numa crise económica e política da qual só agora começa a recuperar-se.

Ainda hoje, os americanos e os europeus têm memórias muito diferentes da crise financeira. Para muitos comentadores americanos, esta acontece como um momento chave num prolongado arco de declínio nacional e da pré-história da radicalização do Partido Republicano. Em setembro de 2008, a Câmara dos Representantes dirigida pelos Republicanos votou contra o plano de resgate da administração Bush para salvar a economia nacional da implosão iminente (embora tenha aprovado um projeto de lei semelhante no início de outubro); alguns meses mais tarde, depois de uma eleição perdida e numa altura em que todos os meses 800.000 americanos eram despedidos dos seus empregos, os republicanos da Câmara de Representantes votaram quase por unanimidade contra o projeto de lei dos estímulos à economia defendido pelo Presidente Barack Obama. A crise gerou uma nova era de antagonismo partidário absoluto que iria abalar a democracia americana nos seus próprios alicerces.

Os europeus, entretanto, permanecem satisfeitos em deixar os Estados Unidos arcar com a culpa. A França e a Alemanha não têm equivalente à Queda de Wall Street, o livro best-seller (e mais tarde filme) em que se dramatizaram os acontecimentos de 2008 como um conflito bem americano entre as forças do instinto de manada e o individualismo quase selvagem, encarnado pelos especuladores heterodoxos que viram a crise a chegar. Os alemães não podem ignorar que o Deutsche Bank era um importante participante na criação desses acontecimentos, mas eles podem facilmente explicar-se, alegando que o banco tinha abandonodo a sua alma alemã. E tal como os europeus optaram por esquecer os seus próprios erros, também esqueceram o que a crise revelou sobre a dependência da Europa relativamente aos Estados Unidos – uma verdade inconveniente para as elites europeias numa altura em que Bruxelas e Washington andam a deriva e se distanciam.  

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EDUARDO MUNOZ / REUTERS. Manhattan durante um corte de energia, Outubro 2012.

 

Um punhado de dólares

As persistentes ilusões da Europa estiveram bem à mostra num comunicado de imprensa da Comissão Europeia de 9 de agosto de 2017. Nele, a Comissão anunciou que a “crise não começou na Europa” e que o problema subjacente tinha sido a “exposição a mercados hipotecários sub-prime nos Estados Unidos”, o que tinha desencadeado a profunda recessão europeia que se lhe seguiu. Bruxelas atribuiu-se a si-mesma o crédito de atenuar essa recessão através das “fortes decisões políticas” das instituições da UE e dos seus Estados-Membros.

O momento do comunicado de imprensa foi significativo. Veio no décimo aniversário do que a maioria de peritos consideram ser o verdadeiro início da crise financeira global- o momento crítico em 9 de agosto de 2007, quando o banco francês BNP Paribas anunciou que congelava três dos seus fundos de investimento devido à volatilidade dos ativos emitidos e garantidos por títulos de dívida nos mercados de valores mobiliários nos Estados Unidos. Esta foi a primeira indicação de que a diminuição dos preços das casas, que tinha começado no início de 2007, teria ramificações globais. Nesse mesmo dia, o Banco Central Europeu (BCE) estava suficientemente alarmado para injetar $131 mil milhões em liquidez no sistema bancário da Europa.

A análise da Comissão sobre o que aconteceu em 2007 foi reveladora de como ela entendia a crise e as suas causas. Esqueça, por momentos, o facto de que os problemas num banco francês foram o motivo para o aniversário, esqueça que havia enormes crises imobiliários na Irlanda e na Espanha, e que a Grécia e a Itália tinham acumulado volumosa dívida interna por sua conta. O que é que, exatamente, mostra a implosão dos mercados hipotecários subprime nos Estados Unidos?

O sistema hipotecário dos Estados Unidos estava obviamente falido. Alguns dos empréstimos eram mesmo criminosos. E a conceção de emissão de títulos garantidos por dívida hipotecária, em que muitas das emissões obtiveram os mais altos “ratings” de títulos, tendo como base o agrupamento em pacotes de hipotecas de má qualidade, era altamente defeituosa. Mas nenhum desses problemas explica porque é que a desaceleração repentina destas emissões precipitou uma crise bancária global. Afinal, os investidores perderam mais dinheiro quando a bolha dot-com explodiu em 2000 e 2001, mas em que não se levou o sistema financeiro global à beira do desastre.

O que é que transformou 2008 na pior crise bancária da história foi um novo modelo de negócios praticado pelos bancos.

Tradicionalmente, a maioria dos bancos tinha financiado as suas operações através do que é conhecido como “retalho” bancário, em que os consumidores emprestam dinheiro aos bancos na forma de depósitos, que os bancos utilizam para conceder empréstimos.

A partir dos anos 1980, no entanto, os bancos em todo o mundo passaram cada vez mais a recorrer ao mercado bancário “por grosso”, financiando as suas operações de crédito através de grandes empréstimos a curto prazo de outras instituições financeiras, como outros bancos e fundos do mercado monetário. O motivo desta mudança foi o lucro e a sobrevivência num quadro de concorrência fortemente agressiva. O financiamento por grosso deu aos bancos a capacidade de emprestar somas muito maiores de dinheiro do que poderiam fazer utilizando o mercado bancário dito de retalho, permitindo-lhes tornarem-se mais alavancados – e, portanto, mais expostos ao risco – do que nunca.

Mas a verdadeira ameaça para a economia global não foi apenas que os bancos nos Estados Unidos, Europa, e, em certa medida, na Rússia e na Ásia estavam a ficar sobreendividados; era também porque muito do financiamento de curto prazo destes mesmos bancos envolvia desajustamentos cambiais sobre ativos e passivos. A fim de fazer negócios nos Estados Unidos, os bancos não-americanos precisavam de dólares que obtinham nos mercados “por grosso” através de uma variedade de métodos: contrair empréstimos sem colateral junto das fontes de financiamento americanas, emissão de papel comercial (essencialmente promissórias a curto prazo), e, principalmente, utilizando swaps de moedas, recebendo  empréstimos em dólares a curto prazo  em troca das suas próprias moedas locais, com a promessa da “troca” em sentido inverso das mesmas divisas no final do prazo de empréstimo. Em suma, os bancos estrangeiros estavam acumulando responsabilidades consideráveis que tinham de ser pagas em dólares.

Se os mercados monetários onde obtinham estes dólares deixassem de funcionar, muitos dos bancos mundiais estariam imediatamente em risco de falência.

E, de facto, foi isso precisamente o que aconteceu. O primeiro grande banco a falir espetacularmente foi o banco de crédito britânico Northern Rock, em agosto e setembro de 2007. Não tinha nenhuma exposição às hipotecas americanas do subprime, mas o seu modelo de financiamento baseou-se esmagadoramente em empréstimos por atacado contraídos nos mercados globais, ou seja, de todo o mundo. O que cortou o acesso do Northern Rock ao financiamento foi o anúncio do BNP Paribas de 9 de agosto.

Isto enviou um sinal aos credores por “grosso” no sentido de que havia mais bancos com ativos podres do que alguma vez se teria pensado antes que existiam. Com a extensão do contágio a ser desconhecida, o crédito por grosso ficou bloqueado. Cinco dias depois, o Northern Rock informou os reguladores britânicos de que precisaria de ajuda.

A paralisação do financiamento bancário rapidamente teve um efeito em cascata pelo sistema financeiro global, atingindo mesmo a Rússia e a Coreia do Sul, países remotos da falência do mercado dito subprime, mas cujos bancos confiaram nos mesmos mercados por atacado que agora tinham entrado em disfuncionamento. O mundo estava a assistir a uma corrida bancária de milhões de milhões de dólares, uma corrida transnacional.  

No final de 2007, o mundo estava a assistir a uma corrida transnacional aos bancos de milhões de milhões de dólares

As pessoas tendem a pensar na globalização como envolvendo o aparecimento dos chamados mercados emergentes como a China e a Índia, e na indústria transformadora e na obtenção das matérias-primas estes países foram de facto os motores de crescimento. Mas no início do século XXI, a globalização financeira ainda funcionava em torno do eixo transatlântico, e foi entre os Estados Unidos e a Europa que o verdadeiro desastre disparou. O Banco de Pagamentos Internacionais estimou que, tudo somado, no final de 2007, os bancos europeus teriam necessitado levantar fundos num montante situado entre 1 milhão de milhões e 1,2 milhões de milhões de dólares para poderem cobrir as lacunas nos seus balanços entre os ativos em dólares e o financiamento em dólares. Nos bons tempos, estes bancos obtiveram facilmente financiamento através de swaps cambiais e nos mercados “por grosso”. Agora, com os mercados interbancários a ficarem “secos”, eles necessitavam desesperadamente de dólares.

No outono de 2007, as autoridades  dos Estados Unidos começaram a temer que os bancos europeus, numa tentativa frenética de obterem dólares para pagarem as  suas contas, liquidariam as suas carteiras em  dólares numa  venda gigante e em condições de saldo. E porque estes bancos possuíam 29 por cento de todos os valores mobiliários de alto risco garantidos por hipotecas nos Estados Unidos, este problema não era apenas um problema europeu.

O cenário do pesadelo para os americanos era que os bancos europeus despejassem no mercado os seus ativos em dólares, o que conduziria a que os preços dos ativos garantidos por hipotecas descessem a pique e forçando os bancos americanos que detinham quantidades bem maiores destes ativos que os outros bancos  a assumirem pesadas perdas, o que, por seu lado, desencadearia assim uma corrida bancária que teria ameaçado perigosamente os enormes esforços das autoridades americanas para restaurar a estabilidade. Foi esse risco de implosão simultânea em ambos os lados do Atlântico que fez de 2008 o ano da crise mais perigosa jamais testemunhada.

Chamando os homens do FED

Com um desastre a ameaçar, a questão tornou-se em saber como reagir. No outono de 2008, os governos de todo o Ocidente correram para socorrer as suas instituições financeiras doentes. Nos Estados Unidos, Washington veio em auxílio dos bancos de investimento Bear Stearns, de Fannie Mae e de Freddie Mac, e da gigante de seguros AIG. O Reino Unido efetivamente nacionalizou o HBOS, o Lloyds e o Royal Bank of Scotland. A Bélgica, a França, a Alemanha, a Irlanda e a Suíça todos tomaram medidas de emergência para resgatar os seus próprios sectores bancários.

Quando o problema se espalhou por todo o lado, começou a atuar a diplomacia da crise. A cimeira inaugural do G-20 foi convocada em novembro de 2008, reunindo também chefes de Estado de países em desenvolvimento como o Brasil, a China e a Índia, além dos países do mundo desenvolvido. O nascimento do G-20 refletiu uma economia mundial multipolar em que os mercados emergentes tinham um novo peso. Mas também recorreu a instituições como o Fundo Monetário Internacional, que muitos países em desenvolvimento viam com uma clara hostilidade. Ninguém em Washington queria uma repetição das controvérsias da crise financeira asiática no final dos anos 1990, quando os empréstimos draconianos do FMI foram vistos pelos seus destinatários como violações da soberania nacional.

Nos bastidores, as autoridades americanas estavam a colocar em prática um mecanismo alternativo de resgate. O problema central era que os bancos do mundo precisavam do financiamento em dólares. E a única instituição que podia preencher essa necessidade era a Reserva Federal.

Os altos funcionários do FED já tinham começado a ficar preocupados com as lacunas de financiamento dos bancos europeus no final de 2007. Em dezembro daquele ano, Bernanke e Timothy Geithner, então Presidente do Federal Reserve de Nova York, tinham começado a oferecer programas especiais de liquidez para Wall Street, concedendo às instituições financeiras americanas o acesso a dinheiro barato, na esperança de estabilizar os seus balanços e evitando uma venda massiva e a preços de saldo de ativos garantidos por hipotecas.

Imediatamente, os bancos europeus começaram a aproveitar-se destes fundos. Os europeus tomaram mais da metade dos $3,3 milhões de milhões disponibilizados através do programa Term Auction Facility do FED em que se colocou em leilão a concessão de créditos de curto prazo e a baixa taxa de juro, e 72 por cento das transações foram efetuadas no quadro das operações de open market, mecanismo pouco divulgado pelo FED como programa de liquidez que funcionou de março a dezembro de 2008 (só o Credit Suisse levantou um quarto dos fundos do programa.).

Estar o FED a atuar como emprestador de último recurso para os bancos estrangeiros foi, sem dúvida, uma situação fora do comum, mas estes eram tempos de desespero, e o que era preciso era evitar uma venda massiva e a preço de saldo de ativos americanos feita pelos bancos europeus. Contudo, à medida que a crise se intensificou os altos quadros do FED constataram que simplesmente fornecer aos bancos europeus o acesso aos programas de liquidez de Wall Street não seria suficiente. As necessidades de financiamento destes bancos eram demasiado grandes, e não tinham garantias de alta qualidade suficientes em Nova Iorque. Então Geithner e a Reserva Federal de Nova Iorque recorreram a um mecanismo indireto para fornecê-los com dólares, redirecionando um instrumento há muito esquecido conhecido como “linha de troca (swap) de liquidez”.

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Larry Downing / Reuters. Primeiros a responder: Henry Paulson e Ben Bernanke testemunham em Washington, Julho 2008.

 

As linhas de troca (swap) de liquidez são contratos entre dois bancos centrais, neste caso, o FED e um banco central estrangeiro, para trocarem temporariamente as suas moedas: o FED fornece o seu homólogo com um montante fixo de dólares e em troca recebe deste uma quantia equivalente da sua moeda local (o banco central estrangeiro também paga uma margem de juros ao FED). As linhas de troca da liquidez tinham sido utilizadas extensivamente nos anos 60 para tratar das tensões no sistema de Bretton Woods – que, obrigando os países a garantir a sua moeda em ouro, conduziu a desequilíbrios cambiais frequentes – mas desde então tinham sido confinadas a situações de emergência, como quando estes contratos de swap foram usados para ajudar o banco do México durante a crise do peso de 1994-95. A retoma das linhas de troca de liquidez em 2007–2008 assegurou que não haveria picos perigosos nos custos de financiamento dos principais bancos asiáticos, europeus e latino-americanos. Se o financiamento interbancário estivesse muito apertado, o sistema financeiro global receberia dólares diretamente do FED.

Os principais beneficiários das linhas de swap foram os bancos centrais do Japão, Europa e dos principais países de mercado emergente, que agora poderiam levantar dólares do FED para apoiar os seus próprios bancos em dificuldade. O FED introduziu as linhas de swap de liquidez em dezembro de 2007, e estas linhas foram rapidamente aumentadas para um limite admissível de 620 mil milhões de dólares. Em 13 de outubro de 2008, as linhas passaram a não ficar sujeitas a um valor limite, dando aos grandes bancos centrais estrangeiras direitos de saque ilimitados em dólares. Em dezembro de 2008, as linhas de swap constituíam o item mais importante no balanço do FED. As linhas de swap operavam em várias maturidades, variando de uma noite a três meses. Mas se, para fins contabilísticos, elas foram padronizados a uma maturidade de 28 dias, entre dezembro de 2007 e agosto de 2010, o FED forneceu aos seus homólogos asiáticos, europeus e latino-americanos uns tímidos  $4,5 milhões de milhões de dólares em liquidez, dos quais o BCE por si só tomou $2,05 milhões de milhões. Que a enorme falta de financiamento dos bancos europeus não se tenha agravado e transformado numa crise financeira transatlântica completa foi graças, em grande parte, a estas linhas de swaps.

Embora as linhas de swap pudessem ser consideradas como acordos técnicos internos entre os bancos centrais, eles representaram uma transformação fundamental do sistema financeiro global. Os bancos centrais do mundo tornaram-se eficazmente divisões offshore do FED, veículos especiais através dos quais o FED alimentava em liquidez dólar as necessidades do sistema financeiro global. Ou seja, o FED transformou-se num emprestador global de último recurso. Considerando que antes de 2008 muitos esperavam uma iminente venda massiva de dólares ao desbarato, a crise acabou por confirmar a centralidade do FED para o sistema financeiro global. E tendo gerido com sucesso a crise, o FED reforçou a atratividade do dólar como moeda comercial mundial.

Mas ao estabelecer o sistema de linhas de swap, o FED também confirmou a hierarquia de bancos centrais.

O sistema incluía os óbvios bancos centrais europeus, como o BCE, o banco de Inglaterra e o Banco Nacional Suíço e os bancos centrais do Canadá e do Japão. Mas também incluía os bancos centrais dos principais centros financeiros de mercado emergente, como Brasil, México, Singapura e Coreia do Sul. Eles estavam incluídos enquanto que os bancos da China, da Índia e da Rússia não estavam incluídos. Veteranos do programa das linhas swap no FED, que falaram comigo sob condição de anonimato, admitiram saber que, ao fazerem essa hierarquia, estavam a entrar num terreno geopolítico. Eles compilaram cuidadosamente uma lista dos 14 bancos centrais que participavam no programa, tendo todos eles que ser aprovados pelo Departamento do Tesouro dos EUA e pelo Departamento de Estado. As minutas do FED a partir da reunião do Comité Federal de Open Market em 29 de outubro de 2008, registam que pelo menos dois candidatos a estas linhas foram rejeitados, mas os seus nomes foram eliminados da lista. Nem todos eram suficientemente importantes – ou, do ponto de vista político e económico, suficientemente alinhados com os Estados Unidos – para se qualificarem.

O sistema de linhas de swap não era secreto, mas também não foi alardeado. Este não era nenhum momento tipo plano Marshall e as autoridades dos EUA não desejavam divulgar o facto de que eles estavam a atuar no sentido de resgatar o mundo.  A incapacidade dos mega bancos europeus obterem os milhões de milhões de dólares representava um risco tão grande para a economia americana que não fazer nada não era simplesmente uma opção a considerar. Assim, muito discretamente, o FED ofereceu aos europeus uma mão amiga.

Os bancos centrais do mundo tornaram-se efetivamente divisões offshore do FED.

As linhas de swaps de liquidez reduziram-se rapidamente em 2009, à medida que os mercados de crédito privados começaram a recuperar. Os detalhes completos dos programas de liquidez não foram divulgados até 2011, quando o Supremo Tribunal dos EUA ordenou que o FED libertasse os dados para os repórteres da Bloomberg. Havia uma boa razão para o sigilo: os bancos centrais não desejam estigmatizar os mutuários a cujo apoio recorrem quando necessitam, e andar a publicitar que os bancos centrais mais importantes do mundo estavam desesperados pela necessidade de financiamento em dólares poderia ter assustado os mercados internacionais.

O resultado, contudo, é que as ações do FED para salvar o sistema financeiro global foram amplamente esquecidas. Uma intervenção sem precedentes desapareceu efetivamente num buraco da memória.

O fogo da próxima vez

Hoje, as linhas de swap são uma parte obscura da narrativa nos Estados Unidos; na Europa, foram completamente esquecidas. A Comissão Europeia é livre de vender a sua narrativa sobre o que se passou, segundo a qual, foi a ação rápida das autoridades europeias que salvaram a Europa de uma crise feita nos Estados Unidos.

Bancos europeus como o Barclays e o Deutsche Bank podem orgulhosamente proclamar que, ao contrário dos seus homólogos americanos, eles saíram da situação de crise sem assistência estatal, apesar terem sacado centenas de milhares de milhões de dólares em liquidez fornecida pelo FED. Embora tais descrições sejam profundamente enganadoras, elas expressam bem o estado das relações transatlânticas no início do século XXI. Os Estados Unidos e a Europa permanecem massivamente interdependentes, mas carecem de uma história comum para assegurar o relacionamento em conjunto.

O ano 2008 pode, portanto, ser visto como um momento alto de transição. Por um lado, marcou uma crise global do século XXI. Por outro lado, a gestão dessa crise dependia de redes de interdependência da relação transatlântica moldadas pela história do século XX— redes que eram profundas, mas que os dirigentes de ambos os lados do Atlântico parecem agora estar ansiosos em deixar para trás.

Quais são as implicações para o futuro? Muitos previram que, no rescaldo da crise, o dólar perderia o seu estatuto como a moeda central no capitalismo global mas aconteceu exatamente o oposto. De acordo com números compilados pelos economistas Ethan Ilzetzki, Carmen Reinhart, e Kenneth Rogoff, hoje o dólar é a moeda âncora – a moeda de referência contra a qual as outras moedas são ligadas – para os países que representam hoje cerca de 70 por cento do PIB global, contra cerca de 60 por cento na viragem do milénio. Foi a finança europeia que perdeu peso e não a americana. Os acontecimentos de 2008 deixaram os bancos europeus numa posição enfraquecida e, desde então, estes procuraram repetidamente o apoio de Washington. Quando a crise da zona euro foi mais aguda, em 2010, o FED reabriu as suas linhas de swap, e em novembro de 2013, tornaram-se permanentes.

Ao mesmo tempo que o FED ajudou a limpar os bancos europeus durante a crise, os reguladores americanos começaram a ter uma visão cada vez mais sombria quanto à sua estabilidade. Durante as negociações no Comité de Basileia sobre a supervisão bancária durante todo o ano 2010, os americanos e as autoridades europeias entraram em colisão sobre o endurecimento das regras bancárias e sobre os requisitos de capital. E depois de Obama ter assinado a regulação financeira chamada Dodd-Frank que passou a lei em julho daquele ano, os reguladores dos EUA começaram a utilizar as disposições dessa lei para forçar os bancos europeus nos Estados Unidos a cumprir com os padrões mais apertados estabelecidos na lei ou, em alternativa, saírem do mercado americano.

O resultado, em última instância, da crise foi, assim, a reversão das ligações extraordinariamente estreitas entre a finança americana e a europeia que tinham caracterizado a década de 1990 e os primeiros anos deste século. Entre 2009 e 2017, a parte dos créditos estrangeiras detida pelos bancos como parte do PIB global – uma boa aproximação para a globalização financeira – caiu em cerca de 22 pontos percentuais, ou seja, cerca de $9,5 milhões de milhões. A totalidade dessa redução foi devida aos bancos europeus, com grande parte a verificar-se no ano de 2009 através de uma redução drástica dos créditos europeus sobre os Estados Unidos. A decisão do Deutsche Bank em abril de 2018 de reduzir a sua presença em Wall Street foi um exemplo tardio deste mais vasto recuo europeu.

Ao mesmo tempo que as finanças europeias se desglobalizaram, os mercados emergentes tomaram a boca de cena. O financiamento em dólares a baixo custo permitido pela política do FED de baixas taxas de juro arrastou os mercados emergentes para um intenso e profundo entrelaçamento com o sistema financeiro dominado pelos Estados Unidos. Por volta de 2015, as empresas da China tinham contraído empréstimos de mais de $1,7 milhão de milhões em moeda estrangeira, a maior parte deste valor em dólares, para alimentar a sua necessidade desenfreada de financiamento de investimento.

Isto é lucrativo para todos os envolvidos e é amplamente visto como um prenúncio da integração da China na finança internacional; no entanto, com este novo desenvolvimento vêm novos perigos. As ações tomadas pelo FED para gerir a crise de 2008 foram sustentadas pelos remanescentes de uma relação transatlântica que remonta ao fim da segunda guerra mundial; em virtude do atual desfazer dos laços transatlânticos, é uma questão aberta se o FED poderá repetir os seus esforços numa escala verdadeiramente global quando a próxima crise chegar.

Também não é claro que o FED venha a ter tanta margem de manobra política como a que teve em 2008. Quando questionado sobre a política das linhas de swap na época, um veterano FED, que me falou sob condição de anonimato, comentou que tinha sido como se os banqueiros centrais do mundo tivessem  um anjo da guarda a assisti-los constantemente no Capitol Hill. Alguns legisladores compreenderam claramente o que estava a acontecer, mas não foram levantadas questões desagradáveis e potencialmente inflamatórias, como por exemplo a quem é que os milhares de milhões de dólares disponibilizados através das linhas de swap terão beneficiado em última análise. O FED tinha carta-branca para fazer o que era necessário. Dado o que desde então se soube sobre a escala das suas ações e tendo em conta a mudança no clima político nos Estados Unidos e a probabilidade de que a próxima crise será nos mercados emergentes, e muito possivelmente na China, talvez venha a ser necessário mais do que um anjo da guarda para salvar a economia mundial na próxima crise.

 

The Forgotten History of the Financial Crisis. What the World Should Have Learned in 2008.  Texto disponível em https://www.foreignaffairs.com/articles/world/2018-08-13/forgotten-history-financial-crisis

 

Nota

[1] N.E. Referência aos desenhos animados da Looney Tunes e Merrie Melodies, do Wlie E. Coyote (o coiote) e o Road Runner (o papa-léguas) em que o coiote tenta repetidamente, e sem sucesso, apanhar e comer o papa-léguas.

 

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