A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura: 11. A leitura de Santiago Alba Rico – A esquerda, ou não?

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Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares

Obrigado a Santiago Alba Rico e a El País

11. A esquerda, ou não?

Frente à revolução neoliberal e o seu contraponto ultradireitista, a necessidade de uma travagem radical passa por encontrar um ponto de apoio civilizatório, uma combinação de rebeldia, reformismo e conservadorismo

Santiago Alba Rico Por Santiago Alba Rico

Publicado por El Pais, em 20 de fevereiro de 2019

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Raquel Marín

Como bem explicava o historiador Josep Fontana, foi a existência da URSS, ditadura imperial não socialista e não democrática, a que permitiu que, a partir de 1945 e durante três décadas, a pequena Europa capitalista vivesse algo parecido ao socialismo e bastante próximo à democracia. Não é uma casualidade, portanto, que a derrota soviética na Guerra Fria coincidisse com a derrota do espírito de 45, com a explosão neoliberal (mal chamada globalização) e, depois de sucessivos vaivéns, com a contração ao mesmo tempo dos direitos sociais e dos tabiques (e desejos) democráticos. Quase trinta anos depois, e agora em todo o mundo, a confusão entre capitalismo e mafia, a traumática reconversão do Leste, o fracasso do “ciclo progressista latinoamericano”, a reversão trágica das revoluções árabes e o regresso do multimperialismo do século XIX, ativaram uma galopante desdemocratização geral ou Weimar global, traduzida numa radicalização —religiosa e laica, eleitoral e antropológica— muito desencorajante. Embora continue a haver muitas guerras, hoje existem menos que em 1989, mas há muito mais candidatos à ditadura.

Estabelecer um paralelismo com o período de entre guerras do século passado tornou-se quase um mantra. Existem sem dúvida duas semelhanças. A primeira é que os votantes do fascismo não votavam no “fascismo”, que só existiu como tal uma vez vencido; era gente normal que não se apercebia do que estava a provocar. A segunda é que, como então, a desdemocratização surgiu de maneira natural como uma reação defensiva frente ao tsunami do Mercado sem freios. Quanto às diferenças, as mais profundas têm que ver com a ecologia e a tecnologia, mas a mais decisiva em termos políticos situa-nos já noutro mundo: porque enquanto que o indignado de 1930 podia dirigir o seu mal-estar tanto para a esquerda como para a direita, hoje só pode fazê-lo para a direita. Pense-se o que se pense da esquerda de 1930, ofereciam um projeto, um refúgio e uma cultura. Isso já não existe. A metade marxista da esquerda ficou fora de jogo depois da experiência soviética; a metade social-democrata após ser cooptada pelas políticas neoliberais dos anos oitenta e noventa, políticas estas responsáveis agora pelo regresso de Weimar. Se acrescentarmos outro quarto de quilo a esta unidade grande e confusa, delapidou-o o chamado socialismo do século XXI, tão parecido nos seus estertores ao seu renegado antepassado.

A esquerda elegeu o campo de batalha naquilo em que é mais vulnerável, o do puro reconhecimento comunitário

Como avaliar esta crise sem precedentes da esquerda? Desde há 15 anos que resumo numa fórmula animada a tripla vertente que, na minha opinião, deve assumir uma política de mudança: revolucionária quanto à economia, porque o capitalismo não conhece limites, reformista na vertente institucional, porque o direito é uma invenção irrenunciável e melhorável, e conservadora na vertente antropológica, porque o ser humano rompe-se muito mais facilmente que um ramo seco. Pois bem, na luta realmente existente entre neoliberalismo e destropopulismo, o neoliberalismo ficou com a revolução; o destropopulismo com o conservadorismo (Trump o Bolsonaro, por certo, ficaram com as duas coisas), e quanto ao reformismo, vale dizer a democracia, começa a ser um significante demasiado cheio que já ninguém quer disputar. A esquerda abandonou as três frentes e, em troca, escolheu o campo de batalha em         que é mais vulnerável: o do puro reconhecimento comunitário.

Sou otimista: o modelo revolucionário clássico é já inviável. Sou pessimista: o modelo revolucionário clássico é inviável. O capitalismo não é um modo de produção —ou não só— mas antes uma civilização, e as civilizações não se derrubam mediante revoluções, mas antes cedem à sua própria decadência interna ou ao impulso saudável dos bárbaros. A decadência do capitalismo não augura nenhuma “fase superior” do género humano, mas antes retrocessos, interdependências feudais, violências sem contratos, ecocídios apocalípticos. Quanto aos bárbaros, teriam que vir do exterior e o capitalismo já não tem exterior, salvo que confiemos, como certa seita trotskista, no desembarque libertador de extraterrestres.

A decadência do capitalismo faz prever retrocessos, violências sem contratos, ecocídios apocalípticos

Marx estava convencido de que o capitalismo produzia o seu próprio coveiro, mas produz sobretudo os seus próprios viciados suicidas. Hoje não é apoiado por alienados aos que haveria que revelar a verdade; todos a conhecemos já e, na plenitude das nossas faculdades e com toda a lucidez, entregamos-nos às suas delícias auto-destrutivas. Como acabar com um sistema que sobreviveu à sua própria transparência? A velha esquerda do longo século XIX e do curto século XX foi descarrilada pelos seus próprios erros políticos, sim, mas também, ou sobretudo, pela própria consistência de um capitalismo que apagou todas as fronteiras: entre coisas de comer, usar e olhar, entre gestão e política, entre trabalho e consumo, entre direito e desejo. A única força revolucionária que existe hoje no mundo é o neoliberalismo, com a sua produção de “homens novos” e a sua destruição de velhos vínculos. Assim que a esquerda não deveria pôr-se a pensar numa revolução impossível, de uma penada e desde zero, mas antes num cuidadoso desmantelamento democrático, que é —por certo— o mais transformador e revolucionário que se pode propor nestes momentos: desmontar em vez de demolir, segundo sugere o famoso aforismo de Lichtenberg. O programa social da Democracia Cristã europeia de —digamos— 1973 bastaria hoje para pôr em pé de guerra ao Ibex 35, ao FMI e aos fuzileiros. Para regressar atrás 40 anos, agora à escala global, faz falta muita —muita— companhia.

Frente à revolução neoliberal e ao seu contraponto ultradireitista, a necessidade de um freio radical, prévio a uma posterior “desmontagem”, passa por encontrar um ponto —um patamar— de apoio civilizatório. Em Espanha, país desmemoriado onde ninguém era já nem de esquerda nem de direita, ofereceu-o o 15-M, e Podemos —o partido que mais rapidamente viu a luz e mais rapidamente cegou— soube explorar a sua indeterminação quântica. Que há de politicamente verdadeiro no mal-estar de 2019? Uma combinação de rebeldia, reformismo e conservadorismo; uma —sim— rebeldia reformista conservadora à qual irritam os clichês retóricos, que suspeita das instituições e que quer recuperar as curtas distâncias. Isso, se bem se lembram, é aquilo que uniu milhões de espanhóis em 2011 na Puerta del Sol.

Porque razão hoje soa a muitos espanhóis, votantes de Vox ou arredores, mais rebelde o machismo, o racismo e o nacionalismo que o seu contrário? Porque se ganham votos pedindo a derrogação de leis progressistas ou reclamando reformas penais populistas e antidemocráticas? Porque razão o verbo “conservar” se relaciona com a identidade nacional-imperial mais casposa e não com a vivenda, o posto de trabalho, o planeta Terra e seus limites e, em geral, os vínculos “nupciais” de todo o tipo? Frente à revolução neoliberal e a rebeldia “franquista”, a esquerda entregou os três campos de batalha. “A paciência”, dizia Galdós, “é o heroísmo dissolvido no tempo”. Necessitaremos muita paciência para desmontar a civilização capitalista, mas agora temos pouco tempo para travar a caída civilizatória. Urge —farei uma proposta descabelada— uma aliança entre o capitalismo mais pragmático, o marxismo mais ilustrado, o feminismo mais humanista, o ecologismo mais realista e o papa Francisco. É isso de esquerda? Tanto como un desfibrilador ou um extintor de incêndios.

 

Texto disponível: https://elpais.com/elpais/2019/02/15/opinion/1550255151_794523.html

O autor: Santiago Alba Rico (1960-), é ensaísta, escritor e filósofo. Licenciado em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid. O seu último livro é Ser o no ser (un cuerpo) (Seix Barral). De formação trotskista e de esquerda, publicou vários livros de ensaio sobre disciplinas como filosofia, antropologia e política, além de colaborar como redator em várias revistas e meios de comunicação, como Gara, Archipiélago: Cuadernos de crítica de la cultura,  LDNM, Público, El País ou Rebelión.

 

 

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