Obrigado a José Félix Rivas Alvarado e a Question Digital
Publicado por em em 29/04/2019 (texto original aqui)
A Venezuela está incapacitada para fazer os seus pagamentos internacionais (entre eles o do serviço da dívida externa), vender as suas exportações petrolíferas e utilizar os seus ativos internacionais, porque a sua economia e toda a sociedade está a ser submetida a um bloqueio económico e financeiro que se centra em estrangular as suas transações comerciais e financeiras, com o único fim de tentar o derrube do governo constitucional de Nicolás Maduro.
A pergunta que se coloca é: que pode o Estado venezuelano fazer para enfrentar esta operação mundial de acosso, que viola os princípios e as normas estabelecidas pelo direito internacional e pelas próprias Nações Unidas?
Asfixiar para fazer ajoelhar, em nome da liberdade
Impedir a venda de petróleo, e assim impedir as importações básicas, faz parte de uma “fórmula de caos” para derrubar governos, fórmula aplicada no passado pelos Estados Unidos. Consiste em gerar as condições sociopolíticas que justificam uma intervenção internacional, um golpe de Estado ou uma insurreição interna. É a procura de apoio político baseado na fome, na morte, na destruição e no terror. É o “capitalismo do desastre” e a “estratégia do choque” aplicada à realidade venezuelana.
As crescentes medidas de bloqueio comercial e financeiro têm profundas consequências sobre os direitos humanos fundamentais do povo venezuelano, especialmente sobre os direitos económicos e sociais, e têm sido e são de tal magnitude que não se deve hesitar em descrevê-las como genocidas. O paradoxo é que os impactos criminosos causados ex profeso sobre as condições de vida da população e a produção do país, em uníssono são usados como desculpa para justificar uma ação intervencionista que, cinicamente, está coberta com o manto ideológico de “ajuda humanitária”.
As medidas de bloqueio financeiro foram acompanhadas pelo sequestro, apropriação e utilização de ativos externos. As sanções emitidas pelos Estados Unidos e pela União Europeia atuaram como verdadeiras patentes de corso para ativar uma operação de pirataria no século XXI, cujo modus operandi se expressa em ações ilegais de apreensão de bens que pertencem à Nação. Tal como aconteceu com a CITGO (a petrolífera estatal venezuelana que opera nos Estados Unidos), com o ouro em reserva depositado no Banco da Inglaterra e com a retenção de fundos em bancos internacionais.
As sanções foram tomadas passando por cima do sistema das Nações Unidas. São sanções unilaterais, arbitrárias e ilegais, como destacou o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela, baseadas no poder da força bruta, na chantagem e na construção de um relato comunicacional demonizador que permite aos habitantes dos países imperialistas aceitar passiva e inconscientemente envolverem-se numa ação genocida contra uma nação soberana.
Que pode fazer o Estado venezuelano para enfrentar o acosso?
Existe uma ligação entre os princípios, consagrados no direito internacional, da não-intervenção e autodeterminação, e a defesa jurídica e política contra o bloqueio e a pirataria dos ativos internacionais da Venezuela.
Historicamente, com base na Doutrina da Estrada, a política externa do México desde 1930 apresentada pelo seu Secretário de Relações Exteriores, Genaro Estrada, o reconhecimento de um governo por outro governo estrangeiro envolve o respeito dos princípios de autodeterminação e não-intervenção nos assuntos internos de qualquer país. Basicamente, esta doutrina exprime o respeito que deve haver pela coexistência, a nível mundial, de diferentes modelos económicos, políticos e sociais.
Nesse sentido, o objetivo é evitar que um Estado se arrogasse o direito de reconhecer um governo eleito de acordo com as regras estabelecidas por essa nação. A Doutrina Estrada, nascida na América Latina, foi assimilada pelo direito internacional, assumido pelas Nações Unidas. Quando foi enunciada, foi considerada uma prática denegridora conceder reconhecimentos governamentais se isso afetasse ou ferisse a soberania de outras nações na medida em que interviessem em assuntos internos, atribuindo-se a si mesmas o poder de qualificar (nem apressadamente nem a posteriori) o sistema político e de decidir favoravelmente ou desfavoravelmente sobre as capacidades legais de regimes estrangeiros.
Nesse sentido, todas as declarações do Grupo Lima, bem como os reconhecimentos de pessoas não nomeadas pelo atual governo da República Bolivariana da Venezuela para desempenhar funções diplomáticas e de gestão em empresas públicas venezuelanas localizadas no exterior, violam a soberania venezuelana na medida em que violam os princípios de não intervenção e autodeterminação. Da mesma forma, a tentativa de introduzir “ajuda humanitária” em território venezuelano sem o consentimento do Estado venezuelano é também um ato que viola os princípios acima mencionados. A Doutrina Estrada, e outras contribuições legadas pela América Latina, no exercício do direito dos interesses nacionais dos seus países, são ferramentas sólidas para nos defendermos (como Estado e nação) contra o cerco neomedieval.
Evidentemente, as medidas contra a nação venezuelana que as potências imperialistas estão a praticar não estão em conformidade com o direito internacional, mas antes com a capacidade de ameaçar e chantagear com o uso da força e impor os seus interesses políticos e económicos. Existe legislação multilateral e internacional para defender os interesses da Venezuela.
Fazê-lo imediatamente não só reafirmaria os direitos da Venezuela perante qualquer autoridade, como serviria também para esclarecer perante uma opinião pública nacional e internacional – manipulada e confundida – os direitos soberanos que assistem a Venezuela, face à brutal e gigantesca usurpação de que é vítima.
As sanções unilaterais estabelecidas pelos Estados Unidos, pelo Grupo de Lima e pela União Europeia violam de forma flagrante os mecanismos estabelecidos pelas Nações Unidas para resolver diferendos entre países.
No caso da dívida externa venezuelana, os representantes do capital financeiro em conluio com atores políticos antipatrióticos – alguns porta-vozes e agentes das políticas imperialistas de Donald Trump – não só se apropriaram ilegalmente do património como, atualmente, alegando representar os interesses económicos do Estado venezuelano, estão a realizar reuniões em Nova Iorque e Washington para negociar com os detentores de títulos de dívida pública externa venezuelana que têm pagamentos em atraso.
Neste último sentido, é urgente enfrentar esta ofensiva, e o Estado venezuelano tem duas razões para se impôr e estabelecer as regras de negociação, em vez daqueles que agora estão a usurpar as suas funções. Em primeiro lugar, o atraso no compromisso de pagar a dívida deve-se ao facto de a capacidade e a vontade de pagar terem sido afetadas por fatores alheios à sua responsabilidade. Ou seja, houve uma alteração das condições que existiam originalmente, quando a dívida foi emitida. A Venezuela não pode cumprir com o pagamento da dívida por causa das sanções que os próprios agressores provocaram.
O segundo argumento para o tratamento do pagamento da dívida externa é que esta não deve estar acima dos direitos humanos económicos, sociais e culturais básicos e inalienáveis do povo venezuelano.
Na prática, por sinal, o governo venezuelano, ante a limitação dos recursos, já começou a estabelecer prioridades, alocando recursos para alimentação, saúde e outras necessidades básicas. Se não foi capaz de continuar com o pagamento da dívida externa, é porque foi impedido pelas condições do bloqueio e pela sua obrigação de atender às necessidades básicas em face de uma sociedade sitiada.
Aqueles que agora se atribuíram ilegalmente a gestão dos ativos da CITGO nos Estados Unidos, e aqueles que estão a “negociar” pagamentos do serviço da dívida com os detentores dessa dívida, estão a mostrar com este acto usurpador que as suas intenções finais são satisfazer o capital financeiro face ao sofrimento dos trabalhadores.
Conclusões em jeito de proposta
1) A Venezuela tem uma base legal no direito internacional para estabelecer uma estratégia de defesa bem-sucedida contra o bloqueio e a pirataria de fundos. No caso contra a Exxon Mobil Corporation, em 2008, as ações judiciais foram derrotadas graças ao trabalho impecável de uma equipe técnico-jurídica organizada para defender os interesses da nação.
2) Deve ser construída uma rede internacional de apoio para a defesa jurídica e política da Venezuela. Especialmente nos países do capitalismo central, onde existem importantes setores académicos e profissionais que apoiariam esta iniciativa. Nos países da América Latina, existe uma importante experiência de profissionais e académicos neste campo que pode e deve ser aproveitada. No Brasil, Argentina, Uruguai e México encontramos um conjunto de doutrinas, conhecimentos e experiências que podem servir para nos defender contra as invasões bárbaras do século XXI.
3) A Venezuela não pode pagar a sua dívida externa por causa das sanções que esses países provocaram. Neste sentido, existe um acervo jurídico e experiência internacional que favoreceria a Venezuela, mesmo nos territórios institucionais de alguns países que, por convicção ou pressão, se conluiaram contra a Venezuela. A opção de declarar uma moratória sobre o pagamento da dívida pública externa é uma medida soberana, que levaria à ratificação de que os detentores de obrigações devem sentar-se para negociar exclusivamente com o Estado venezuelano, através dos representantes do governo constitucionalmente eleito. Trata-se de uma medida de grande importância não só do ponto de vista jurídico e económico, mas também do ponto de vista geopolítico. Essa moratória de jure sobre a dívida externa não afetaria os acordos de cooperação bilateral assinados pela Venezuela que se baseiam no respeito da soberania.
4) Em condições de asfixia e bloqueio, o governo tem todo o direito e obrigação de priorizar as necessidades da população. O uso de moeda estrangeira deve ser orientado para a compra de bens e serviços para alimentação, saúde, prestação de serviços públicos, produção, educação e cultura. A tentativa ilegal de pagar a dívida por agentes não autorizados pelo governo venezuelano não é apenas uma ação que coloca em risco legal os envolvidos, mas também revela que os interesses políticos da oposição estão inclinados a priorizar o pagamento da dívida externa e não as necessidades da população. A Assembleia Nacional, em desrespeito, não só colabora com um governo estrangeiro que se apropria dos bens da nação, como também dispõe (ilegalmente) dos recursos que lhes destina para pagar aos abutres.
As reservas internacionais e outros ativos externos pertencem à Nação. Abutres e tubarões têm vindo a preparar-se, há mais de um ano, para partilhar entre si este património, numa das maiores ações criminosas que têm sido desenvolvidas desde a época colonial e dos corsários imperiais.
O que está em jogo é o sofrimento do povo venezuelano, que passa por um ultraje à sua dignidade e à sua pátria, na medida em que os princípios da autodeterminação e da não ingerência não são respeitados.
Urge tomar medidas contra esta arremetida.
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O autor: José Félix Rivas Alvarado, Economista Venezuelano, professor de Desenvolvimento Económico, foi embaixador representante da Venezuela na Mercosur e Aladi, ex-diretor do Banco Central de Venezuela, Ex-viceministro de Desarrollo Económico. Actualmente investigador associado do Centro Latinoamericano de Análise Estratégica (CLAE)