Facebook entra em águas perigosas com a criptomoeda Libra. Por Martin Wolf

Espuma dos dias_moedabitcoin HIP 1

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

 

Um amigo meu uma vez, já lá vão cerca de três anos, disse-me que esperava que o mundo normalizasse economicamente quando se acabasse com a manipulação do valor das moedas pelos Estados e se passasse a utilizar a BITCOIN.

Olhei para ele e disse-lhe mais ou menos o seguinte: bom, queres substituir uma moeda, qualquer que ela seja, sobre o qual o Estado pode ter controlo, por uma não moeda que fica sob o controlo dos privados, se controlo pode haver nela. Ora a crise atual de que tu, eu, nós, nos queixamos deriva exatamente do controlo dos privados sobre os mercados, mesmo que esse controlo tenha assumido a forma de um descontrolo. E é a esses agentes que queres dar de novo o controlo de uma peça fundamental nas sociedades modernas, a CRIAÇÃO MONETÁRIA?

Mudemos de assunto, foi a minha proposta e foi o que fizemos.

Na sequência desta conversa pensei fazer uma série de textos sobre o tema mas desisti, pois tinha coisas mais prementes a estudar.

Anos depois, ontem mesmo, encontrei-me com esse meu amigo na região de Pombal e quando chego a minha casa tenho no meu email um artigo de Martin Wolf sobre as criptomoedas. Li-o, achei interessante e fui à coleção de textos que antes tinha preparado e rebusquei dois textos de Jean Claude Werrebrouck, um sobre o que é e não é a moeda Bitcoin, intitulado Ce qu’il faut savoir sur le bitcoin de 18 Novembro de 2017, e um segundo, La monnaie créée par Amazone ou Facebook va-t-elle détruire les Etats?, de Maio de 2019. Este último texto é uma atualização do primeiro pelo que reuni os dois textos num só, e penso que a sua leitura muito ajuda a perceber alguns subentendidos do texto de Martin Wolf.

São pois estes textos que, antes de partir de férias, aqui vos deixo.

JM

26/07/2019

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Facebook entra em águas perigosas com a criptomoeda Libra

Na pior das hipóteses, isto pode levar a um mundo dominado por um mono-banco

Martin Wolf 2 Por Martin Wolf

Publicado FTimes por  em 25 de junho de 2019 (ver aqui)

Republicado por Gonzallo Rafo  (ver aqui)

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Na semana passada, o Banco de Inglaterra divulgou o resultado de uma análise independente sobre o futuro das finanças, juntamente com a sua resposta. Como se fosse para provar a importância destas questões, Facebook e 27 parceiros anunciaram um plano para uma moeda digital global a ser chamada Libra, e um sistema de pagamento associado. Como avaliar a importância, a promessa e os riscos destes desenvolvimentos? Como devem reagir os reguladores? A resposta é: com muita cautela.

A revolução da informação, agora aumentada pela inteligência artificial, certamente revolucionará a finança. Ela oferece enormes benefícios potenciais, sob a forma de pagamentos mais rápidos e mais baratos, serviços financeiros superiores e uma melhor gestão do risco. Já assistimos a um acentuado declínio na utilização de numerário e a um crescimento explosivo dos pagamentos digitais. Na China, a revolução na tecnologia de pagamentos, liderada pela Alipay (agora parte da Ant Financial) é extraordinária. O Facebook está a tentar criar um rival. Note: os EUA estão aqui a seguir os passos da China.

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No entanto, o financiamento é também uma infraestrutura crítica. Um colapso financeiro é provável que crie uma enorme crise económica. A inovação mal compreendida já provou, e por muitas vezes, ser uma parteira de tais calamidades. É vital, portanto, garantir que as implicações de grandes inovações, como a Libra, sejam bem compreendidas. Mark Carney, governador do BoE, argumentou na semana passada no seu discurso na Mansion House que o banco “aborda Libra com uma mente aberta, mas não com uma porta aberta”. No entanto, a mente não pode ser totalmente aberta.

Uma primeira pergunta deve ser se podemos confiar no patrocinador de uma inovação tão sensível. O Facebook tem sido grosseiramente irresponsável pelo seu impacto nas nossas democracias. Obviamente, não se lhe pode confiar os nossos sistemas de pagamentos. O Facebook tem uma resposta: ele tem apenas um voto na Associação Libra, que terá uma governação independente localizada em Genebra. O objetivo é ter 100 membros até ao seu lançamento em 2020. Mas é provável que o Facebook domine o desenvolvimento técnico da Libra. Isso certamente dar-lhe-á uma influência predominante.

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Randal Quarles, presidente do Conselho de Estabilidade Financeira, tem razão em dizer aos líderes das nações do G20, reunidos no Japão, que “uma utilização mais generalizada de novos tipos de criptoativos para fins de pagamento a retalho justificaria um escrutínio muito atento por parte das autoridades para garantir que estão sujeitos a elevados padrões de regulação”.

Assim, além das dúvidas sobre o patrocinador, um novo sistema global de pagamento deve ser avaliado quanto à sua estabilidade técnica, ao seu impacto na estabilidade monetária e financeira (especialmente nos países em desenvolvimento) e à sua abertura a fraudadores, criminosos e terroristas. Grandes questões também se levantam sobre concentrações de poder, caso o empreendimento tenha sucesso.

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O plano de hoje pretende ser apenas para se criar um sistema de pagamento. A moeda em si é para ser, nas palavras do Livro Branco da Libra, “totalmente apoiada por uma reserva de ativos reais”. Um cabaz de depósitos bancários e títulos públicos de curto prazo será mantida na Reserva de Libra por cada Libra que for criada, criando confiança no seu valor intrínseco”. Esse valor será, no entanto, vulnerável a flutuações cambiais e choques financeiros (nomeadamente controles cambiais). Os seus movimentos em relação às moedas podem perturbar os utilizadores. Os reguladores terão de avaliar as instabilidades associadas a esse sistema.

Não posso julgar a estabilidade técnica do sistema proposto. A alegação de que se baseia na tecnologia de “blockchain” parece bastante questionável. Mas apenas apoiantes fanáticos de sistemas “permissivos” precisam de se preocupar com isso. O mais importante é que o sistema seja robusto, resistente a violações e proteja a privacidade pessoal, sendo suficientemente transparente para reguladores, autoridades judiciais e outros com um interesse legítimo sobre quem o utiliza.

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Uma questão crucial é a forma como a Libra iria interagir com os bancos tradicionais. Poderá privá-los de uma grande parte dos seus clientes, do lado dos pagamentos. Em vez disso, o sistema Libra poderia ter depósitos enormes nos bancos, igualados, do outro lado dos seus balanços, pela participação dos clientes na Libra.

Em alternativa, como disse Carney: “À medida que novos provedores e sistemas de pagamento emergem, o acesso à infraestrutura central do [BoE] deve mudar e faz sentido considerar se eles também podem manter fundos durante a noite no balanço do banco”. Na medida em que os bancos centrais criem estas reservas (uma decisão que só eles tomam), um sistema como o Libra pode contornar completamente os sistemas de pagamento tradicionais baseados em bancos. As vantagens históricas dos bancos como credores informados podem desaparecer.

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Surge uma possibilidade muito mais significativa: o sistema Libra, com o seu conhecimento dos clientes, tornar-se-ia ele próprio um emprestador, usurpando assim aos bancos tradicionais o lado do ativo dos seus balanços. Na pior das hipóteses, o mundo poderia ter um mono-banco dominado pelo Facebook. Os riscos são enormes: potencial instabilidade monetária e financeira, concentração do poder económico e político, falta de privacidade e muitas outras questões. Uma moeda global, criada pelo empréstimo de um banco global (já que os bancos criam dinheiro como subproduto dos seus empréstimos), uma moeda (a Libra) não apoiada por nenhum banco central, e sem nenhum regulador dominante, parece criar um risco gerador de enormes pesadelos para a estabilidade.

Existe, de facto, potencial para melhorar consideravelmente os sistemas de pagamento. Mas o surgimento de um sistema de pagamento numa rede da escala do Facebook levantaria algumas grandes questões. Se a Libra finalmente se tornar um verdadeiro sistema bancário, com a capacidade de criar a sua própria moeda fiduciária (artificial), as questões tornar-se-iam ainda mais prementes. Mesmo que os empréstimos do sistema Libra sejam excluídos, os reguladores não devem permitir que este plano avance sem se compreender plenamente as implicações. Isso seria verdade mesmo que o patrocinador principal não fosse o Facebook. Mas é. Por isso, tenha-se muito cuidado.

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O autor: Martin Wolf (1946-) é um jornalista britânico que se concentra na economia. É o editor associado e comentarista-chefe de economia do Financial Times. Bibliografia: The Shifts and the Shocks: What We’ve Learned—and Have Still to Learn—from the Financial Crisis (Penguin Press 2014), Fixing Global Finance (The Johns Hopkins University Press 2008), Why Globalization Works (Yale University Press 2004), The Resistible Appeal of Fortress Europe (AEI Press 1994).

 

 

 

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