A domesticação da finança, será ela possível? Por Jean Claude Werrebrouck

Espuma dos dias_globalização_financeirização_taxas juro negativas 2

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Publicado pelo blog do autor La crise des années 2010 em 30 de julho de 2019

http://www.lacrisedesannees2010.com/2019/07/la-domestication-de-la-finance-est-elle-possible.html

 

Este título é um pouco a questão que Michael Vincent se pergunta no seu livro «Le banquier et le citoyen», obra já evocada na introdução do artigo precedente publicado neste blog, em 25 de julho último. Michael Vincent insiste na sua conclusão sobre a urgente necessidade de formar todo o mundo: cidadãos, políticos, os próprios banqueiros e reguladores, para compreenderem bem o desafio colocado por esta enorme indústria sobre a qual apresentámos – naquele artigo – alguns dos seus principais aspetos.

Gostaríamos, no presente texto, precisar outros pontos e tirar algumas conclusões sobre as condições necessárias à securitização da finança.

 

A difícil distinção entre economia real e especulação

De certa forma, o mercado é sempre uma aposta. Empresários da economia real, seguradoras, banqueiros, são todos especuladores, sobre um produto ou serviço para os primeiros, sobre a probabilidade de um evento para os segundos, e sobre quase tudo para os terceiros … Com efeito, o banqueiro do moderno “banco universal” especula sobre um produto ou serviço acompanhando o empresário da economia real, especula sobre a probabilidade de um evento, e especula cada vez mais sobre flutuações no preço dos ativos reais ou imaginários, seja para outros ou por conta própria.

De facto, a distinção mais eficiente é aquela que separa entre as expectativas sobre uma procura real de bens ou serviços (economia real que está interessada no volume de vendas possíveis) e as expectativas sobre os riscos de uma muito forte volatilidade dos preços. Este último risco é também o que diz respeito à economia real, mas de uma forma mais secundária: o empresário da economia real está interessado na segurança do seu quadro de ação e, para este efeito, é acompanhado por vendedores de títulos sobre acontecimentos prováveis – companhias de seguros – ou acontecimentos menos previsíveis, tais como flutuações imprevisíveis nos preços do consumo intermédio ou mesmo dos produtos acabados. Esta distinção revela claramente que, para o empresário na economia real, a questão real é a procura solvente do produto ou serviço que ele gera, enquanto as flutuações de preços no seu consumo intermédio são apenas um elemento potencialmente disruptivo. Simetricamente, as flutuações de preços são o assunto real e talvez mesmo o único para a finança. A priori, um campo de jogo ou uma matéria-prima fundamental seriam bem definidos: uma aposta na procura de solventes, por um lado, e uma aposta nas flutuações de preços, por outro.

No entanto, o ponto de partida da finança é o campo de jogo da economia real. As companhias aéreas investem em aeronaves apostando numa evolução positiva da procura de transporte, mas são potencialmente afetadas pelas flutuações do preço do querosene, que é de longe o custo de exploração mais elevado. Estão dispostos a abrir-se ao mercado de um futuro em que trocam uma garantia de preço, ainda que o preço futuro da querosene seja desconhecido. Os compradores temem um aumento e querem proteger-se contra este evento, enquanto os vendedores antecipam uma diminuição e esperam beneficiar com isso. Este mercado do futuro foi – num rudimento de conceptualização – criado na Grécia antiga por Tales de Mileto que, apostando numa colheita abundante, comprou o serviço dos lagares a um preço modesto e depois sublocou, a um preço elevado, o mesmo serviço que era anormalmente solicitado devido à abundância de azeitonas a processar. Este exemplo histórico mostra que a especulação financeira baseia-se de facto numa realidade económica, mas que é muito rapidamente externalizada em relação a esta mesma realidade económica. Tales era apenas um filósofo matemático, nem olivicultor nem dono de um lagar e viu-se transplantado para uma finança que, na verdade, ele tinha engendrado. Este exemplo permite também compreender que os mercados financeiros que se seguirão a esta primeira experiência serão massivamente ocupados por puros financeiros e marginalmente representados por verdadeiros empresários económicos. É evidente que o mercado de futuros de querosene é povoado por operadores muito afastados da matéria-prima, dos seus produtores e consumidores. Daí a ideia de que a finança é puramente especulativa, embora o seu pico se baseie na economia real.

Mas, se é verdade que a ponta é estreita, o corpo está a ficar cada vez mais largo e a dar a impressão de um montante de financiamento desproporcionado. Porque o problema passa a ser o da gestão do risco de mercado: o comprador transfere o risco de um aumento no preço do querosene que penaliza a sua atividade, mas o seu contrato perde se o preço futuro cair. O mesmo se aplica ao vendedor que pode ganhar se o preço baixar, mas pode perder se subir. Assim, o vendedor de querosene -especialmente se for apenas um financiador- pode perder todo o seu investimento se for obrigado a entregar o comprador no futuro a um preço mais elevado. É por isso que a procura de segurança exige uma transferência permanente de riscos e uma procura de maior segurança. Compradores e vendedores procurarão proteger-se contra os riscos do próprio mercado gerados e imaginados para fins busca de segurança. Daí a emergência e generalização de derivativos e opções de compra. Explica também as operações de titularização, o desenvolvimento de CDS (Credit Default Swaps) com posições nuas (posição curta, que não está coberta pelo risco de crédito subjacente), especulação por conta própria, etc. Temos aqui a compreensão deste facto bem conhecido: os contratos financeiros representam montantes desproporcionados em relação às realidades físicas do comércio, sendo comum uma multiplicação de 100 ou 1000 ou mesmo mais. A turbulência financeira é ela mesma fonte de confiança potencial: quanto mais agentes há, mais profundo é o mercado, mais líquido ele é, e mais fácil é transferir risco no mercado e, portanto, mais o próprio mercado é procurado….

As coisas podem seguir um movimento assimptótico se a base da finança, e portanto a economia real, se tornar financeira. Este será o caso se o mundo passar gradualmente de uma organização mais ou menos planificada, com preços mais ou menos administrados, para uma economia de mercado, ou mesmo uma sociedade de mercado. Quanto mais o liberalismo se torna o contrato social dominante, mais o motor do financiamento é alimentado pelo seu combustível natural, a flutuação dos preços. Quanto mais preços forem liberados, mais flutuações eles podem experimentar sobre as quais as apostas podem ser feitas.

Este regulador último, o Estado, pode ele próprio dar origem a pirâmides financeiras. Se, politicamente, lhe for proibido fabricar sua própria moeda e que a dívida pública que daí resulta dê origem a contratos (especulação sobre taxas de juros, especulação sobre taxas de câmbio, etc.), mais sobrepeso ganhará a máquina financeira. Quanto mais avança a globalização, mais o combustível da finança alimenta uma máquina que eventualmente ultrapassa todos os seus atores…… Daí os estranhos discursos contraditórios entre os “saberes” que já não sabem se vamos ou não para uma nova crise financeira. No entanto, o senso comum convida-nos a observar que uma pirâmide assente na sua ponta (economia real) conhece, provavelmente e infelizmente, um centro de gravidade fora do seu perímetro de sustentação…

É que o trabalho de transferência de riscos é simultaneamente muito simples e muito complexo. Porque que as flutuações de preços são também o resultado de rumores, de efeitos de anúncios, de publicidade, desinformação ou mentiras, dão origem a correntes miméticas sobre as quais se podem construir estratégias abertamente criminosas. Foi o caso das subprimes cujo investimento intelectual correspondente nada teve a ver com o difícil e honesto cálculo económico que se encontra na economia real.

Sem sequer abordar estas questões de ética pura, é verdade que o risco de mercado que é sempre transferido e partilhado com uma multidão de atores nunca desaparece, daí as tentativas intelectuais de lançar luz sobre o que parece ser uma enorme desordem e de deduzir estratégias racionais. Serão desenvolvidos modelos matemáticos para avaliar riscos, otimizar a sua cobertura, calcular os custos de gestão de riscos, etc. A finura, a qualidade e a velocidade de execução dos algoritmos tornar-se-ão um elemento de concorrência entre diferentes modelos e, por conseguinte, entre diferentes empresas de especulação. As flutuações de preços, um elemento periférico da economia real, terão assim que mobilizar os melhores engenheiros que terão que ser desviados da economia real para investir em pura matemática financeira. Engenheiros agora chamados “quants” entram assim nas salas de mercado e são convidados a abandonar as tradicionais preocupações industriais. O empolamento da finança será também uma sangria para as competências mundialmente famosas dos engenheiros franceses e – há apenas dez anos – 33% dos “quants” mundiais provinham das melhores grandes escolas francesas. A transferência do risco, simples periferia do problema central da economia real, vem comer a economia real, sem sequer perceber que a incerteza da gestão não é uma questão provável… Daí a deplorável e contínua tagarelice dos “especialistas”, cuja escuta se torna esgotante.

 

Um quadro jurídico que não pode ser o de um verdadeiro Estado de direito.

O comércio em geral é uma troca de direitos de propriedade que dá origem a um ganho partilhado entre aqueles que trocam. A atividade correspondente pode dar origem a externalidades. No caso mais comum, a legislação intervém para limitar os efeitos externos da liberdade de comércio e conduzirá a medidas públicas para internalizar potenciais externalidades. É o caso do princípio do poluidor-pagador, que limita os ganhos às trocas, mas garante que as externalidades não são transferidas para terceiros.

Deste ponto de vista, a finança envolve trocas de uma natureza completamente diferente e os que trocam ganham ao transferir os riscos de mercado para outros intervenientes. E é precisamente esta atividade de diferimento que explica o gigantismo dos mercados correspondentes. Enquanto no mundo tradicional a internalização das externalidades é possível e muitas vezes verificada, o mundo da finança faz das trocas o meio pelo qual o objetivo é a externalização. Se a transferência de risco não fosse possível, os mercados financeiros simplesmente não existiriam.

Esta diferença na natureza profunda do intercâmbio entre o mundo tradicional e a finança está também consagrada no artigo 1965 do Código Civil francês – artigo que se repete nos mesmos termos em muitos códigos estrangeiros – que estipula que “a lei não concede qualquer ação por dívida de jogo ou não execução de uma aposta”. Com efeito, o legislador da época apenas aceitava ações com base numa troca concebida como real: os títulos de propriedade sobre os bens ou serviços trocados são claros? Existe alguma fraude sobre a qualidade das mercadorias trocadas? A troca foi livre e voluntária? etc. Nós ignoramos em grande parte o que impulsionava o legislador quando este artigo foi escrito. No entanto, pode-se supor que esta foi uma fundação construída sobre muitas experiências históricas que foram consideradas negativas. Podemos também pensar que se trata de uma metamorfose do interdito crematístico tão caro a Aristóteles: finalmente podemos aceitar o ganho em troca… mas deve corresponder a valores de uso concretos….

Permitir a infinita externalização de contratos financeiros entre atores implicou, assim, a violação do direito clássico, o que será concretizado no âmbito da lei de 28 de março de 1885 por seu artigo 1º, que dizia: “todos os mercados futuros sobre instrumentos públicos e outros, todos os mercados a serem entregues sobre mercadorias e bens são considerados legais. Ninguém pode, para evitar as obrigações decorrentes de operações a termo, valer-se do artigo 1965 do Código Civil, mesmo que tais operações sejam resolvidas pelo pagamento de uma simples diferença“. Todos os textos modernos relativos aos contratos financeiros, contidos no volumoso Código Monetário e Financeiro, deveriam validar e alargar o âmbito da lei de 1885. Enquanto o direito clássico procura limitar as externalidades em nome do respeito pelo direitos de propriedade e, em última análise, da qualidade de vida em conjunto, o direito financeiro só pode assegurar o funcionamento normal da indústria financeira com base na transferência incessante do que também pode ser a “batata quente” com uma lógica final de um “resgate” que é quase impossível de reduzir: os contribuintes têm de pagar por catástrofes financeiras.

O que pode parecer uma proibição para a indústria financeira de aderir ao direito consuetudinário é constantemente verificado nas laboriosas tentativas de regulamentação. Embora o direito tradicional permita limitar os efeitos de contágio através do controlo das externalidades, o direito financeiro é – pela sua própria natureza – bastante incapaz de o fazer. A verificação desta incapacidade pode ser lida – para além da tão clássica e bem conhecida “União Bancária” – tomando como exemplo o “Regulamento sobre Infra-estruturas de Mercado Europeu” (RIME). Trata-se de um texto que visa reduzir os riscos de mercado e de crédito geralmente associados – e, por conseguinte, as apostas perigosas sobre as flutuações de preços – tornando obrigatório o mecanismo de garantia através de uma contraparte central. A garantia ou chamada de margem é uma soma depositada numa câmara de compensação para garantir contratos e assegurar que o jogo de externalização padrão não provoque contágio e, portanto, uma crise financeira. Concebida em 2012, sob o impulso concreto do “Comité de Basileia” e da “Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários” (organismo que reúne os principais reguladores mundiais das bolsas de valores), a diretiva correspondente só está a ser aplicada com grande dificuldade e a sua eficácia é incerta.

A sua aplicação é difícil porque a colateralização e as câmaras de compensação são dispendiosas, o que significa que, inicialmente (2016), apenas estiveram envolvidos os intervenientes mais importantes, aqueles cujo valor nocional das carteiras era superior a mais de 3000 mil milhões de dólares. A resistência continua a ser forte entre os pequenos operadores (operadores industriais com uma sala de negociação) e a exigência de margens de segurança acaba de ser adiada para 2021… enquanto a diretiva foi publicada em 2012.

Mas a eficácia é duvidosa porque, por um lado, é uma medida pró-cíclica e a garantia consiste em gastar dinheiro quando ele é mais necessário e, por outro lado, há uma transferência pelo menos parcial do risco para as câmaras de compensação, que se tornam “demasiado grandes para falirem”… Com o “resgate” correspondente, ou seja, a punição do cidadão.

Assim, permanecemos numa situação que não é verdadeiramente a de um Estado de direito, isto é – já para não falar da democracia – um Estado capaz de impor o respeito pela vida em comum com base no respeito relativo pela segurança das regras do jogo.

Parece que as coisas estão a tornar-se ainda mais complicadas com a dívida pública, que demasiadas vezes se esquece que ela serve e servirá sempre de garantia em todos os mercados. Se as taxas se tornarem permanentemente negativas sobre as melhores dívidas, é também porque a correspondente dívida pública é muito procurada, que concordamos em pagar para dispor dela… para dispor da matéria-prima que se tornou essencial nos mercados financeiros. Sem uma dívida pública segura, que garantias seriam aceites nos mercados para continuar a especular sobre as flutuações dos preços? Por conseguinte, é compreensível que o aumento das taxas de juro seja dificilmente concebível para os bancos centrais, uma vez que conduziria a dificuldades insuperáveis no mercado de garantias e no equilíbrio do sector financeiro. Quanto melhor seja a especulação sobre o aprofundamento das taxas negativas mais sólidos serão os contratos financeiros… Com consequências opostas na rentabilidade dos bancos, a dificuldade de atrair capital e empréstimos por liquidar que já não estão a crescer.

A enorme pirâmide financeira não só é perigosa como também improdutiva.

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O autor: Jean Claude Werrebrouck é economista, antigo professor na Universidade de Lille 2. Inicialmente especializado em questões de desenvolvimento e economia do petróleo, ele destacou-se no problema da natureza da renda petrolífera. Como Diretor do IUT foi integrado na equipa fundadora dos Institutos Universitários Profissionalizados (IUP).

 

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