O Grande Paradoxo: o Liberalismo Destrói a Economia de Mercado – Parte 3. Por Heiner Flassbeck

Espuma dos dias liberalismo destroi ec mercado

Seleção e tradução de Francisco Tavares

O Grande Paradoxo: o Liberalismo Destrói a Economia de Mercado – Parte 3

Heiner-Flassbeck Por Heiner Flassbeck

Publicado por flassbeck_logo em 5 de agosto de 2019 (ver aqui)

Originalmente editado em alemão em Makroskop

Traduzido para inglês e editado por BRAVE NEW EUROPE

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O capitalismo é celebrado pelos liberais como história de sucesso. Mas, este sucesso apenas é visível nos EUA – e mesmo nesse caso, por razões que são incompatíveis com a própria ideologia dos liberais.

 

Na segunda parte destaquei que a revolução neo-liberal na Alemanha depois de 1980 foi, sem dúvida, uma história de sucesso. O crescimento real do PIB tem vindo a declinar (Figura 1), um resultado que teria sido muito mais pronunciado se não fosse pelo enorme efeito de procura devido à reunificação alemã, iniciada pelo Estado, que resultou em taxas de crescimento muito elevadas durante vários anos.

Figura 1

Crescimento real do PIB na Alemanha

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Depois do início da União Económica e Monetária (UEM), foram os efeitos positivos do dumping salarial alemão que evitou um abrandamento ainda maior do crescimento do resultado económico.

Em France, estes dois efeitos positivos não ocorreram, pelo que o abrandamento foi muito mais forte. Após a Grande Recessão de 2008/2009, a economia não recuperou realmente e o desemprego permaneceu elevado.

Figura 2

Crescimento real do PIB em França

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Fraca dinâmica do investimento

O rácio de investimento (total da formação bruta de capital fixo) caiu em France de 2008 a 2014 (Figura 3) e recuperou ligeiramente desde então. Presume-se que o investimento empresarial ainda foi pior, mas infelizmente não dispomos quaisquer dados legíveis sobre isso.

Figura 3

Taxa de investimento em França

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Mais ainda do que a França, a Itália sofre com a dominação do neoliberalismo, em particular com a variante que prevalece na UEM. Porque a Itália já tem um elevado nível de dívida, as regras absurdas do Pacto de Estabilidade e Crescimento obrigam-na a praticar a austeridade contra toda e qualquer razão. Por outras palavras, apesar da falta de investimento privado e da dinâmica da dívida (a taxas de juro zero), a Itália deve abster-se de estímulos governamentais. Como mostra a Figura 4, o resultado é catastrófico.

Figura 4

Crescimento real do PIB em Itália

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A taxa de investimento em Itália atingiu um nível historicamente baixo (Figura 5). E isto num país que no passado se caracterizava por uma dinâmica atividade de investimento, especialmento no setor industrial – mais do que quase todos os outros.

Figura 5

Taxa de investimento em Itália

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Menos dramática é a evolução em Espanha, onde os primeiros anos da UEM foram acompanhados por uma forte expansão da construção de habitação, com taxas de PIB correspondentemente elevadas (Figura 6). No entanto, se tivermos em conta que, recentemente, houve dúvidas consideráveis sobre o cálculo oficial do PIB de Espanha, provavelmente não há melhor desempenho económico em evidência aqui.

Figura 6

Crescimento real do PIB em Espanha

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Em Espanha, a taxa de investimento foi aumentada pelo boom imobiliário da década de 2000, mas revelou-se insustentável (Figura 7). Não houve recuperação real após 2008/2009.

Figura 7

Taxa de Investimento em Espanha

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Um país que está ligeiramente fora da grelha acima é o Japão, onde o boom durou muito mais tempo, até ao final dos anos 80. Mas, no final, o boom também foi alimentado por uma bolha imobiliária grandiosa e irracional. Depois o crescimento entrou em colapso e ainda não recuperou (Figura 8). As taxas de crescimento de cerca de 1% foram atingidas somente com a ajuda de intervenção massiva do governo. Ao mesmo tempo, porém, a situação do emprego no Japão é melhor do que nos países industrializados ocidentais.

Figura 8

Crescimento real do PIB no Japão

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A taxa de investimento, que tinha atingido um nível enorme de mais de 30 por cento nos anos de 1960 e 1980, está agora ao nível dos países industrializados ocidentais, e mal aumentou desde 2010 (Figura 9).

Figura 9

Taxa de Investimento no Japão

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É tudo isto tecnológico?

Agora, muitos argumentam que a desaceleração do crescimento não se deve tanto a uma política económica errada, mas sim a uma tendência geral de declínio da inovação em economias maduras, da qual nenhum país pode em última instância escapar. Isto é comprovado, dizem eles, pelo declínio das taxas de crescimento da produtividade do trabalho. É uma afirmação que pode ser feita, mas certamente não pode ser provada.

O que vemos no enfraquecimento das taxas de crescimento da produtividade do trabalho é sempre uma mistura de mudanças tecnológicas com a rapidez com que estas inovações são implementadas, ou seja, convertidas em atividade de investimento. O fraco investimento impede um elevado crescimento da produtividade mesmo quando as taxas de desenvolvimento das inovações tecnológicas são elevadas.

A grande exceção

Para refutar empiricamente o argumento, é necessário encontrar um “cisne negro”, isto é, um país em que as condições se tornaram muito menos más. E, na verdade, esse país existe. O único grande país no mundo ocidental que tem sido capaz de escapar a esta tendência negativa numa extensão considerável são os EUA. Aqui, também, a dinâmica de crescimento desacelerou, mas muito menos do que em outros países (Figura 10).

Figura 10

Crescimento real do PIB nos EUA

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O rácio de investimento nos EUA tendeu a não cair, e recuperou enormemente desde 2008/2009 (Figura 11). Embora o grande aumento na década de 2000 possa ser claramente atribuído a um irracional boom imobiliário, não há explicação simples para a recuperação desde então.

Figura 11

Taxa de Investimento nos EUA

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Se acrescentarmos que os EUA conseguiram reduzir o desemprego para um nível que pode ser chamado de pleno emprego mesmo neste ciclo, temos de perguntar seriamente o que é que os EUA fizeram de diferente dos outros países. Já demos a resposta várias vezes ao analisar os equilíbrios orçamentais: os EUA seguiram uma política económica muito pragmática, num esforço para aproximar o desemprego dos níveis de pleno emprego em todas as fases de retoma.

Enquanto a dinâmica do mercado privado – impulsionada pela política monetária expansiva – fosse suficiente, o Estado recuou. Mas esta fase já tinha terminado em meados da década de 1970. Então, sem o estímulo governamental maciço da política orçamental, houve apenas um retorno ao pleno emprego. Somente durante a fase da chamada bolha dotcom, na segunda metade da década de 1990, o Estado foi capaz de sobreviver novamente sem nenhum novo endividamento próprio. Nessa altura, os agregados familiares privados aumentaram de tal forma os seus gastos que, no cômputo geral, ficaram endividados ano após ano e não pouparam (ver Figura 12, onde a desagregação, ao contrário da Figura 13, inclui todo o endividamento do Estado).

Figura 12

Saldo financeiro nos EUA por sector económico em percentagem do PIB nominal

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[Ausland = Exterior, Private Haushalte = Agregados familiares, Unternehmen = Empresas, Staat = Estado]

 

Posteriormente, as empresas economizaram novamente, ou seja, gastaram menos do que ganharam. Agora, na maior economia de mercado do mundo, não havia maneira de o Estado confiar nas forças de mercado. O fosso entre receitas e despesas tem vindo a aumentar e, mesmo agora que o pleno emprego foi atingido, o Estado continua a aumentar o seu défice. No ano fiscal passado foi de 3,9 por cento do PIB ou 700 mil milhões de dólares americanos (apenas para o governo central). De acordo com estimativas recentes, a soma absoluta para este ano fiscal (que termina em 30 de setembro) será da ordem de US$ 1.000 mil milhões.

Figura 13

Dívida do Estado e novo endividamento dos EUA

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[Endividamento do Estado em percentagem do PIB, corrigido de sazonalidade (escala do lado esquerdo). Excedente ou défice em percentagem do PIB (escala do lado direito esquerdo)]

A dívida total (em percentagem do PIB, que consideramos uma definição inadequada) irá certamente aumentar para 110 por cento em 2019. Ao contrário do que pensam os liberais e os neoliberais, isto não é um problema. Mostra, no entanto, que não pode haver desenvolvimento económico razoável sem um compromisso financeiro permanentemente maior por parte do Estado.

O que se segue?

Num mundo em que – através do monetarismo e da política neoliberal do mercado de trabalho (“flexibilidade do mercado de trabalho”) – as dinâmicas da procura são sistematicamente limitadas, só o Estado pode dar um remédio. Através da sua própria política de procura agressiva, pode criar na economia de mercado uma dinâmica suficientemente grande para atingir objetivos de emprego ambiciosos. Os Estados Unidos compreenderam-no e desenvolveram um pragmatismo impressionante entre ambos os dois grandes partidos em termos de dívida pública. Também no Japão, o Estado compreendeu que as empresas que poupam e não investem estão a criar uma situação completamente nova e estão a tornar o Estado direta e indispensavelmente responsável pela gestão da procura.

A Comissão Europeia e o Conselho Europeu, com o dogma de uma política orçamental “saudável” – impulsionado em grande parte pela Alemanha – deixaram para trás as fileiras dos governos racionais. O resultado é um desemprego persistentemente elevado. Uma mudança de guarda na Comissão poderia ter sido uma oportunidade para pôr as coisas a andar. Mas mesmo a primeira decisão, sobre a eleição do Presidente da Comissão, é um passo na direção errada. Por conseguinte, é inevitável que os problemas económicos e sociais ponham cada vez mais em causa todo o projeto europeu, porque os “populistas” podem apontar para o fracasso espetacular da política económica.

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O autor: Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987, tendo por tese Prices, Interest and Currency Rate. On Theory of Open Economy at flexible Exchange Rates (Preise, Zins und Wechselkurs. Zur Theorie der offenen Volkswirtschaft bei flexiblen Wechselkursen). Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo.

A sua carreira profissional teve início no Conselho Alemão de Peritos Económicos, em Wiesbaden, entre 1976 e 1980; esteve no Ministério Federal de Economia em Bona até janeiro de 1986; entre 1988 e 1998 esteve no Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW) em Berlim, onde trabalhou sobre mercado de trabalho e análise de ciclo de negócio e conceitos de política económica, tendo sido chefe de departamento.

Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Coordenador principal da equipa que preparou o relatório da UNCTAD sobre Comércio e Desenvolvimento. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Editor de Makroskop, https://makroskop.eu/.

Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

 

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