A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ? Texto 26. Europa: nem a força de se transformar nem a de se destruir. Por Martine Orange

Berlim encontro refazer o muro

Um mês de março intenso em reuniões, em tragédias, em desacordos afirmados, em acordos adiados, em ameaças feitas e desfeitas ou adiadas, tudo isto se passou na União Europeia que se mostra claramente impotente face à tragédia Covid 19 e à crise financeira que nos bate à porta com uma enorme violência.

Um relato destes dias que mais parecem dias de loucura é o que aqui vos queremos deixar nesta série de textos intitulada A Europa impotente face à perspetiva de uma tragédia global ?

31/03/2020

JM

___________________________________

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

Texto 26. Europa: nem a força de se transformar nem a de se destruir.

Martine Orange Por Martine Orange

Publicado por Mediapart (Coronavirus: les mauvaises priorités de la BCE et de l’Europe) em 10/04/2020 (ver aqui)

 

Na reunião do Eurogrupo de 9 de abril, foi adotado um plano de apoio europeu no valor de 540 mil milhões de euros. Por detrás dos números ruidosos estão, na sua maioria, receitas antigas e desatualizadas. A Europa é incapaz de articular uma resposta à altura da crise sanitária.

 

O ritual europeu é conhecido há muitos anos e foi perfeitamente respeitado na reunião do Eurogrupo de 9 de abril: horas de confronto, declarações trovejantes, posições que parecem inconciliáveis, conciliações em todas as direções, conversações na cimeira, alinhamento da França e da Alemanha em torno de posições comuns e colocam todo o seu peso na procura de um consenso; e depois a declaração final triunfante para assinalar o grande passo em frente.

No encerramento desta última cimeira do Eurogrupo, em 9 de Abril, que foi apresentada como uma reunião decisiva para o futuro da União, todos os Ministros das Finanças, que nela participavam por videoconferência, aplaudiram: a União está lá, disseram eles. “É um grande dia para a solidariedade europeia“, comentou o Ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, enquanto o Presidente do Eurogrupo, o Ministro das Finanças português, Mário Centeno, saudou “estas propostas ambiciosas, que teriam sido inimagináveis há apenas algumas semanas“.

No encerramento desta última cimeira do Eurogrupo, em 9 de abril, que foi apresentada como uma reunião decisiva para o futuro da União, todos os Ministros das Finanças, que nela participavam por videoconferência, aplaudiram o facto de, na sua opinião, a União sabe estar presente. “É um grande dia para a solidariedade europeia”, comentou o Ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, enquanto o Presidente do Eurogrupo, o Ministro das Finanças português, Mário Centeno, saudou “estas propostas ambiciosas, que teriam sido inimagináveis há apenas algumas semanas”.

Jean Monnet, um dos pais fundadores da União Europeia, afirmou que “a Europa só avança na crise“. Os representantes dos países europeus subscrevem plenamente esta referência: sentem que deram um grande passo em frente na União com a ideia de terem  ultrapassado esta nova crise. Face à pandemia de Covid-19, que está a causar uma hecatombe de mortes em todos os países europeus, que põe a nu todos os discursos sobre o Estado-Providência europeu destroçado por décadas de neoliberalismo, que revela as falhas dos sistemas de saúde, que põe de joelhos as economias do continente, a resposta comum parece estar à altura da urgência: 540 mil milhões de euros vão ser mobilizados a nível europeu para fazer face à devastação da crise do coronavírus. Este é um exemplo de solidariedade sem precedentes, dizem os líderes europeus.

Os números são impressionantes. No entanto, um estranho sentimento “familiar” e de “déjà vu” paira sobre estes anúncios. “A Europa não pára de nos dececionar. Mas este já quase não é o problema. Na altura da crise do euro, era o tempo da Europa. Já não é mais. Estamos numa fase em que não há nem força para a transformar, nem força para a destruir“, diz Benjamin Coriat, de “economistas aterrados”, professor na Universidade de Paris-XIII.

Texto 26. Europa nem a força de se transformar nem a de se destruir 1
O Presidente do Eurogrupo, o ministro português das Finanças, Mário Centeno, aquando da reunião de 9 abril. © Ludovic Marin/ AFP

 

E é precisamente esta impressão de remendo, de perpetuar o que já existe porque já não há nem força nem vontade de inventar outra coisa, que predomina na leitura das propostas apresentadas pelo Eurogrupo e que devem ser definitivamente adotadas no próximo Conselho Europeu. Os ministros europeus querem utilizar as mesmas receitas, os mesmos mecanismos [1], os mesmos efeitos de alavanca que durante a crise da dívida soberana.

O primeiro aspeto implementado, aprovado por unanimidade pelo Eurogrupo, é a utilização do Banco Europeu de Investimento (BEI) para ajudar as empresas. Os Estados europeus concordaram em conceder 25 mil milhões de euros em garantias, o que deverá permitir ao BEI conceder cerca de 200 mil milhões de euros em empréstimos às empresas, angariando dinheiro nos mercados e aproveitando ao máximo o efeito de alavanca. Haverá condições (não pagamento de dividendos, bónus de gestão, apoio a programas de transição ecológica, etc.). Nesta fase, nada está especificado.

A segunda parte do plano, sobre a qual não se chegou a consenso, visa financiar o desemprego parcial nos Estados-Membros. Dezoito países já dispunham de modalidades de financiamento do desemprego parcial. Contudo, dada a pandemia de Covid-19 e a quase paragem das economias devido à contenção, todas as outras precisam de um sistema de ajuda para proporcionar um rendimento mínimo aos desempregados, enquanto aguardam a recuperação das economias. Também aqui foi concebido um sistema de garantia. Os Estados-Membros concordam em fornecer à Comissão Europeia 25 mil milhões de euros como garantia, a fim de lhe permitir angariar 100 mil milhões de euros nos mercados para financiar auxílios ao desemprego parcial. No entanto, este regime será apenas temporário, como os Países Baixos exigiram.

O terceiro ponto foi ainda mais problemático. Diz respeito à utilização do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), criado em 2012, aquando da crise do euro. Com um orçamento de 410 mil milhões de euros, o seu objetivo é ajudar os países da zona euro que já não conseguem financiar-se nos mercados. Mas este auxílio está sujeito a condições rigorosas e inclui ajustamentos estruturais, como os que foram impostos à Grécia, para garantir que os Estados mutuantes, que se vêem a si próprios apenas como credores, sejam devidamente reembolsados.

A utilização do MEE tem estado no centro das querelas europeias ilustradas pelas discussões públicas entre os Países Baixos e a Itália. A Itália recusou que esta ajuda esteja sujeita a quaisquer condições, dadas as circunstâncias excecionais: o colapso económico causado pela crise da Covid-19 não estava de modo algum ligado a uma política desordenada, argumentou Roma. Os Países Baixos, por seu lado, argumentaram que as regras estabelecidas aquando da criação da MEE não deveriam ser alteradas de forma alguma e que, por conseguinte, deveriam continuar a ser exigidos os mesmos ajustamentos estruturais a fim de garantir aos países credores que seriam devidamente reembolsados.

A solução mágica dos eurobonds

Texto 26. Europa nem a força de se transformar nem a de se destruir 2
O Ministro das Finanças holandês Wopke Hoekstra em 9 de Abril. AFP

Os créditos concedidos pelo MEE, de acordo com o compromisso alcançado no Eurogrupo, podem ser utilizadas até ao limite de 240 mil milhões de euros, na única condição de esse financiamento ser utilizado para apoiar direta ou indiretamente as despesas de saúde. Cada país terá acesso a ele até um limite de 2% do seu PIB. Contudo, os Países Baixos argumentaram que as condições devem ser reinstituídas se os fundos forem utilizados para outros fins. “Havia um forte desejo nos Países Baixos de apoiar as despesas com os cuidados de saúde relacionados com o coronavírus. Mas por cada euro gasto na economia, devem aplicar-se as regras normais“, reiterou o Ministro das Finanças holandês Wopke Hoekstra após a reunião.

Texto 26. Europa nem a força de se transformar nem a de se destruir 3
O Presidente do Conselho italiano, Giuseppe Conte © Eliano Imperato/ Controluce

A minha posição e a do governo sobre o MEE nunca mudou e nunca mudará“, respondeu o Presidente do Conselho italiano, Giuseppe Conte no Tweeter. Roma está determinada a utilizar os meios do MEE para fazer face às dificuldades sanitárias e económicas do país, sem se sujeitar a qualquer condicionalidade. Em teoria, a Itália poderá, portanto, obter 34 mil milhões de euros para apoiar o seu sistema de saúde e o resto.

Faltou-nos sempre um instrumento na crise grega, e esse instrumento é a subvenção orçamental”. Face aos custos humanitários, teria sido importante para os países da zona euro fazer doações para apoiar o sistema de saúde, para garantir redes de segurança social“, explicou uma testemunha muito próxima do Eurogrupo na altura da crise grega, interrogada aquando da publicação das gravações feitas por Yánis Varoufákis (ver os nossos artigos aqui e aqui).

Ao ler o programa do Eurogrupo, que é suposto ser uma resposta à crise sem precedentes causada pelo Covid-19, o instrumento continua a faltar e os participantes não parecem sentir a necessidade de o inventar. É uma questão de empréstimos, de montagens financeiras e de dívidas que, a longo prazo, são susceptíveis de se tornarem insustentáveis para muitos países. Cada um conta as suas galinhas, equilibrando o que paga e o que recebe. Mas nunca se trata de um programa em grande escala, muito menos de generosidade ou de donativos. Mesmo a assistência material em matéria de saúde tem sido prestada em pequenas gotas entre os países da União.

O gesto teria sido tanto mais significativo quanto a pandemia está novamente a causar um choque assimétrico na área do euro. Mesmo que todos os países europeus sejam afectados pelo Covid-19, mesmo que todos eles tenham de lamentar as mortes e estejam a assistir ao colapso das suas economias, “são os países do Sul da Europa, os mesmos que foram afetados pela crise do euro, que são os mais afetados“, observa David Cayla de “economistas aterrados”, professor na Universidade de Angers.

Esta falta de solidariedade é ilustrada pelo tema das “euro-obrigações”, tema de discórdia no seio do Eurogrupo, tal como este o reconhece no seu comunicado final. Defendido na altura da crise do euro, o projecto regressou em força há três semanas. Nove países da zona euro, liderados pela França, Espanha e Itália, declararam-se a favor da criação de um instrumento de dívida mutualizada a nível europeu para responder conjuntamente à devastação do Covid-19. Tal como em 2012, a Alemanha e os Países Baixos vetaram este projecto, que compararam a uma união de transferências, com os ricos a pagarem para os pobres, união a que se comprometeram a opor-se desde a criação do euro.

Mutualisar as dívidas através da criação de euro-obrigações ou “coronabonds“, como são chamados neste momento, seria para os seus defensores um meio de compensar as deficiências da zona monetária europeia, que não tem um orçamento comum nem um sistema fiscal comum, apesar de os seus membros terem a mesma moeda. “Para os países europeus, pedir emprestado em euros é um pouco como pedir emprestado em moeda estrangeira“, diz Eric Dor, economista-chefe da Escola de Gestão da IÉSEG. Escapa-lhes toda uma gama completa de alavancas económicas e financeiras.

As euro-obrigações, porém, não são a solução mágica para todos os males da Europa, como argumentam os seus apoiantes, segundo David Cayla. “Por detrás das euro-obrigações está a ideia de um empréstimo federal europeu em que as taxas de juro seriam as mesmas para todos. Mas isso não é possível. As diferenças entre os países são demasiado grandes. Além disso, pressupõe que por detrás deste empréstimo existam garantias. Os mercados financeiros vão exigi-lo. No entanto, a Europa dispõe de muito poucos recursos orçamentais. Ela não dispõe de orçamento. Isto limita as possibilidades de contrair empréstimos, a menos que os países europeus concordem em agir como garantes. Mas não vejo por que razão a Alemanha garantiria os empréstimos dos outros“, diz ele.

Mesmo que os defensores das euro-obrigações consigam arrancar a criação de tal instrumento, o seu poder de impacto seria, portanto, muito limitado, ou pelo menos notoriamente insuficiente face à provação sanitária, social e económica imposta pelo Covid-19. Fã dos Eurobonds, a economista e eurodeputada da Génération.s Aurore Lalucq reconhece o seu alcance limitado. “Mas a sua criação seria um sinal político“, acrescenta ela.

Sinais políticos no Eurogrupo não houve, apesar dos comunicados de imprensa de vitória. E pode não haver tão pouco no Conselho Europeu. Numa altura em que o mundo atravessa uma crise sem precedentes, em que ainda não é clara a dimensão da devastação que está a causar, os líderes europeus são incapazes de articular um começo de resposta comum. Protegidos – mas até quando? – pelo guarda-chuva do BCE, eles estão a deixar-se levar pelos acontecimentos. Correndo o risco de se deparar com uma força externa ou interna que decide em seu lugar transformar ou destruir a Europa.

Nota

[1] Nota do Tradutor. A confirmar o que nos diz o autor veja-se o documento da UE sobre o programa de apoio ao desemprego intitulado SURE -o programa de apoio ao desemprego intitulado SURE -Supporting Member States to help protect people in work and jobs.

____________________________

A autora: Martine Orange [1958 -], jornalista da área economia social em Mediapart desde 2008, ex-jornalista do Usine Nouvelle, Le Monde, e La Tribune. Vários livros: Vivendi: A French Affair; Ces messieurs de chez Lazard, Rothschild, um banco no poder. Participação em obras colectivas: a história secreta da V República, a história secreta da associação patronal, Les jours heureux, informer n’est pas un délit. Recebeu o prémio de ética Anticor em 2019.

 

 

1 Comment

  1. Numa altura em que o mundo atravessa uma crise sem precedentes, em que ainda não é clara a dimensão da devastação que está a causar, os líderes europeus são incapazes de articular um começo de resposta comum. Protegidos – mas até quando? – pelo guarda-chuva do BCE, eles estão a deixar-se levar pelos acontecimentos. Correndo o risco de se deparar com uma força externa ou interna que decide em seu lugar transformar ou destruir a Europa.

    Um alerta ou um lembrete?Maria

    Sem vírus. http://www.avast.com

Leave a Reply