Coronavírus: o dia depois será diferente do dia antes? – “Os guardiões do sistema”. Por Eduardo Luis Junquera Cubiles

Espuma dos dias 2 Coronavirus Mudança Paradigma

Seleção e tradução de Francisco Tavares

“Os guardiões do sistema.”

Eduardo Cubiles Por Eduardo Luis Junquera Cubiles

Publicado por logo ctxt  em 25/02/2020 (ver aqui)

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Thierry Breton durante uma sessão do Parlamento Europeu, 14 de novembro de 2019. PIETRO NAJ-OLEARI

 

O novo comissário europeu do Mercado Interior e Serviços, o francês Thierry Breton, confirma a máxima do neoliberalismo de que a determinados lugares chegam sempre pessoas com as mesmas ideias

 

Há uma realidade que corre paralela à história infantil e adocicada dos meios de comunicação e tem a ver com a ascensão imparável do neoliberalismo que, como um pote de mel derramado, tudo impregna com a sua substância espessa. Enquanto olhamos absorvidos e entretidos para os nossos telemóveis e computadores, uma legião de fiéis servidores do pior capitalismo trabalha na sombra, dia e noite, sem descanso, a fim de aumentar o poder do setor privado até ocupar todas as áreas de decisão política nas nossas sociedades. Fora da indústria do entretenimento, que tão habilmente nos mantém ocupados, e de “notícias francamente irrelevantes” como os surtos de delírio dos eurodeputados da Vox, as actividades sempre nobres, com certeza, de Greta Thunberg, ou o próximo Barcelona-Madrid, e dentro da actividade frenética do poder neoliberal na Europa, houve uma nomeação de grande significado dentro da nova Comissão Europeia, especificamente no Comissariado para o Mercado Interno e Serviços, no qual o francês Thierry Breton foi eleito como novo Comissário em Novembro passado. O mais lógico, na estratégia sem paralelo do neoliberalismo para evitar que exista um movimento político-económico com esse nome, a fim de alcançar uma invisibilidade essencial para o seu triunfo, é que quase não tenhamos ouvido falar de Breton, mas que, como o seu mentor Emmanuel Macron, ele vem da banca de investimentos (Banco Rothschild).

“Será explicado um dia como os cidadãos do século XXI entregaram as suas democracias a demagogos sombrios e medíocres e a pessoas cuja carreira sempre esteve ligada ao capitalismo mais depredador.”

Na história dos desvarios humanos, um dia será explicado como os cidadãos do século XXI entregaram as suas democracias não só a demagogos sombrios e medíocres, mas também a pessoas cuja carreira sempre esteve ligada ao capitalismo mais depredador, que não é exatamente o perfil que se exige a um funcionário público. Breton encarna na perfeição o protótipo de um político neoliberal: esse tipo de gestor que tanto serve para presidir um banco como para gerir uma multinacional, ou para dirigir um ministério da defesa ou qualquer outra instituição pública a partir da qual, paradoxalmente, tentará destruir tudo o que é público e reduzir o tamanho do Estado. Não importa onde eles estejam, porque em todas as áreas eles aplicarão fielmente as suas ideias. O sistema é enormemente eficaz quando se trata de treinar os seus servidores, que depois deixa que atuem com total liberdade, porque normalmente não mordem a mão que os alimenta. Breton pertence a essa elite parisiense na qual coexistem altos funcionários, banqueiros, grandes homens de negócios e políticos de primeira linha. Mais de um terço dos diretores de empresas cotadas na bolsa de Paris são provenientes de duas universidades, que são também as que formam a maioria dos altos funcionários e políticos franceses: a Ecole Nationale d’Administration, onde Macron estudou, e a École Polytechnique (Supélec), onde Breton foi formado.

Conflito de interesses

De 2009 até ao final de outubro de 2019, Breton liderou a Atos, uma multinacional francesa de consultoria em tecnologia da informação que opera numa ampla gama de campos, incluindo segurança cibernética, telecomunicações e consultoria em serviços financeiros, cuidados de saúde, eletrónica aeroespacial e defesa. Isto dá origem a um óbvio conflito de interesses no que diz respeito às áreas que reportam directamente ao Comissário da União Europeia para o Mercado Interno e Serviços: política industrial, defesa, tecnologia e espaço. A Atos não só tem um claro interesse em políticas que serão agora geridas pelo que foi o seu diretor executivo até há três meses, como também algumas instituições da UE têm sido uma fonte de financiamento para a empresa. Só em 2018, a Atos recebeu algo mais de 107 milhões de euros através de diferentes fundos da Comissão, tais como o fundo UE-LISA ou o Horizon2020. Soubemos também que um sistema de monitorização criado pela empresa Bull, propriedade da Atos, chamado Eagle, foi objecto de uma investigação por parte do Ministério Público de Paris, porque o programa foi vendido a várias ditaduras como a de Marrocos, o regime líbio de Kadhafi e o regime tunisino de Ben Ali. O sistema concebido pela Bull permitiu a esses países controlar os cidadãos e, mais especificamente, os jornalistas.

“A influência da EOS é tal que as suas propostas foram por vezes adoptadas ponto por ponto pelas instituições da União Europeia, como foi o caso do Livro Branco sobre o Mercado Único.”

De novembro de 2014 até ao final de 2018, funcionários de alto nível da Comissão Européia realizaram 24 reuniões de lobby com representantes da Atos para discutir a economia digital, a estratégia industrial e a segurança cibernética. Estes dados contrastam fortemente com os números fornecidos pela Atos ao registo de lobbying da UE (o registo é voluntário!), que em 2018 ascendia a menos de 49.999 euros. Este dinheiro não cobriria sequer as despesas dos dois lobistas que representam a Atos em Bruxelas. Uma pesquisa dos dados da Atos em diferentes registos de organismos da UE mostra que a multinacional francesa pagou pelo menos 60.000 euros a três empresas de lobbying para defender os seus interesses: MSL Bruxelas, Schuman Associates e Gplus. A Atos é também um membro financiador da EOS, a muito poderosa e opaca associação que reúne as principais empresas de defesa da Europa. A influência da EOS é tal que as suas propostas foram por vezes adoptadas ponto por ponto pelas instituições da União Europeia, como foi o caso do Livro Branco sobre o Mercado Único, apresentado em 1985 pela Comissão Europeia, que era uma cópia a papel químico do relatório “Europa 1990” da ERT (Mesa Europeia de Industriais), o mais poderoso dos lobbies industriais que operam em Bruxelas. Surpreendentemente, a declaração da Atos no Registo de Transparência da União omite até mesmo as ajudas que a empresa recebe da Europa.

Anticor, a principal organização francesa de combate à corrupção política, apresentou duas queixas, uma em 2015 e outra em 2019, acusando a ANTAI, a Agência Nacional para o Processamento Automatizado de Infrações, de favorecer a Atos nos processos de licitação pública, e mencionou a porta giratória de Breton para explicar estes casos. Antes de ser nomeado comissário há apenas algumas semanas, Breton renunciou ao seu cargo de CEO da Atos e anunciou a venda das suas acções na empresa. Por esta operação recebeu 40 milhões de euros em troca dos seus títulos na própria Atos e 5,7 milhões pela venda de acções da sua filial Worldline. Quando Ursula Von Der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia, foi ministra da Defesa da Alemanha, Breton pressionava desde a Atos para a criação de um Fundo Europeu de Defesa que permitiria aos países da UE isentar os investimentos em gastos militares das rígidas regras de austeridade que hoje regem os ditames económicos no continente. Finalmente, o Fundo de Defesa criado foi diferente das propostas do próprio Breton, o que não constitui um obstáculo ao desenvolvimento das actividades da Atos em campos perfeitamente definidos como prioritários pelo Fundo e a que a multinacional francesa seja considerada como elegível para beneficiar de subsídios nesta área.

“Thierry Breton presidiu à Fundação Arnault da Bélgica, sendo patrocinado pelo seu compatriota, Bernard Arnault, o proprietário da Louis Vuitton e do luxuoso empório LVMH”

Muito antes da sua passagem pela Atos, Thierry Breton foi presidente da Fundação Arnault na Bélgica, patrocinada pelo seu compatriota, Bernard Arnault, proprietário da Louis Vuitton e do empório de luxo LVMH, considerado o terceiro homem mais rico do mundo em 2019, com algo mais de 106 mil milhões de dólares em ativos. Quando Breton era Ministro da Economia e Finanças da França, em 2005, Arnault transferiu parte do seu dinheiro para a Bélgica, fundando um conglomerado chamado Pilinvest, que assumiu parte das ações da LVMH. Arnault transferiu para esta empresa 90% das suas ações e posteriormente dividiu-as, dando a propriedade aos seus filhos e mantendo para si a capacidade de receber os dividendos, em um dos muitos artifícios legais permitidos aos poderosos. Juridicamente, foi necessário criar uma fundação, que recebeu o nome de Proctinves…presidida pelo próprio Breton. A operação foi realizada pelas razões habituais: as mesmas pessoas que exigem de nós um comportamento exemplar como cidadãos são aquelas que depois evitam pagar despesas de sucessão, doação ou qualquer outra coisa que seja feita. Eles, que normalmente não cobram mil ou mil e duzentos euros por mês, mas contam os seus rendimentos em dezenas, centenas de milhares e até milhões de euros. Ao abrigo deste acordo, o maior grupo de mercado de luxo do mundo, a LVMH, pagou 6% de imposto em vez dos 45% que teriam sido devidos. O caso foi revelado pelo diário francês Le Canard Enchaîné em 2013, e Thierry Breton, interrogado por este diário, jurou “não saber nada sobre isso”. 

Como membro do Conselho de Administração e Presidente do Comité de Auditoria da empresa química Rhodia, ele também nada sabia sobre o escândalo contabilístico na Rhodia, que quase a fez desaparecer, embora as atas do Conselho de Administração da Rhodia mostrassem que ele estava a par de tudo. Por esta razão, e devido à venda da Canal+Technologies, uma subsidiária da Vivendi Universal, à Thomson, da qual foi presidente entre 1997 e 2002, ele foi investigado na França. Os seus notáveis resultados na gestão de empresas como Bull, Thomson ou France Telecom foram alcançados graças a generosas injeções de dinheiro público – 6 mil milhões de euros no caso da companhia telefónica francesa – uma constante entre os neoliberais, que só apelam ao poder sagrado do Estado quando se trata de transferir dinheiro do tesouro para as suas empresas ou de socializar prejuízos, como aconteceu na própria France Telecom, quando foi considerado que os seus trabalhadores perderiam o estatuto de funcionários públicos, facto que, juntamente com as políticas de assédio da empresa, causou pelo menos 19 suicídios entre os seus funcionários, segundo a justiça francesa, que condenou a empresa por “assédio moral” em 20 de dezembro de 2019. 

A experiência como ministro

Durante o seu mandato como ministro [N.E., 2005-2007, sob Jacques Chirac], Breton supervisionou as privatizações – como a da empresa de eletricidade EDF (parcial) e da empresa de gás GDF (total). Como consequência destas operações, o preço da electricidade e do gás em França sofreu aumentos de 50% e 49%, respectivamente. Estas privatizações têm sido descritas como desastrosas no país vizinho porque privaram o Estado francês de grande parte da sua capacidade de conceber a política energética. Se retomarmos os editoriais da imprensa económica mundial – maioritariamente controlada pelos neoliberais – antes destas operações, todos eles tinham o mesmo tom e utilizavam a mesma linguagem cheia de eufemismos e destinada a convencer-nos de que não há outra forma de gerir a economia senão favorecendo o sector privado em detrimento do público: “A realidade económica de um país que não enfrentou, pelo menos durante 10 anos, nenhuma das reformas substanciais indicadas por todos os especialistas (os especialistas que, sempre de um ponto de vista neoliberal, nos ditam o que devemos fazer sem admitir nenhum outro ponto de vista alternativo): a modernização e redução do perímetro do Estado (privatizando o que construímos juntos para que o comprem os poucos que o podem fazer), a flexibilização do mercado de trabalho (tornando as condições de trabalho mais precárias e baixando os salários), a equiparação de direitos e obrigações entre o setor público e o privado” (sempre para baixo, igualando ambos os setores nas piores condições, que geralmente são as do setor privado).

Igualmente desastrosa para os cofres franceses foi a  privatização das auto-estradas francesas em 2006, gerida pelo ministério liderado por Breton. Em vários relatórios, o Tribunal de Contas francês e a Autoridade da Concorrência criticaram fortemente a forma como o Governo francês se subordinou aos interesses privados ao elaborar as propostas sem qualquer possibilidade de recurso para o Estado.

“Breton supervisionou a privatização da empresa de electricidade EDF (parcial) e da empresa de gás GDF (total). Como resultado destas operações, o preço da electricidade e do gás em França subiu 50% e 49%, respectivamente.”

Voltando à sua gestão na Atos: o inquestionável progresso da empresa sob a liderança de Breton, que a colocou entre os cinco maiores grupos de serviços digitais do mundo, foi alcançado através de aquisições de empresas menores, mas acima de tudo através de contratos com o Estado francês e a ajudas europeias. O neoliberalismo baseia o seu progresso à custa das despesas sociais, o que é levado a cabo sem contemplações, pois para os seus defensores o que manda é a “lógica” das regras do mercado. Assim, os directores da Atos receberam em 2015 a ordem de eliminar os empregados que eram demasiado “incómodos”: idosos, sindicalistas e trabalhadores deficientes. Ao mesmo tempo, como tantos defensores do paradigma neoliberal, Breton não perde uma oportunidade de nos recordar que aquilo que é o “responsável” é prolongar a vida profissional e insiste na importância da “moderação salarial”. Estes são os slogans dos nossos gestores políticos, pessoas que, apesar da impecabilidade do seu discurso ético, não consideram prioritário combater os paraísos fiscais, as alterações climáticas e a poluição causada pelos grandes empórios industriais e petrolíferos, os lobbies que operam em Bruxelas e Washington, ou a crescente desigualdade que ameaça a União Europeia, mas oh!, em caso algum devemos receber salários elevados ou aspirar à reforma antes dos 65 anos de idade! Temos sido massivamente enganados ao convencerem-nos que as suas ideias são as únicas que podem governar a economia de forma eficaz. A fim de “revitalizar o espírito empreendedor” na Europa para competir com os Estados Unidos, Breton propôs, seguindo a receita neoliberal, a abolição de impostos como o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF), criado na França em 1989 e substituído em 2018 pelo Imposto sobre a Fortuna Imobiliária (IFI). Até há pouco mais de dois meses, Breton fazia também parte dos conselhos de administração do Carrefour, do Bank of America e da Sonatel (uma empresa senegalesa de telecomunicações).

Não tenho nada contra empresários como ele, que defendem os interesses do sector privado porque isso pode criar riqueza e empregos, mas o Estado não pode renunciar ao seu papel regulador para limitar precisamente o poder dos empresários cujo único objectivo é o lucro, mesmo que à custa dos direitos dos trabalhadores. O que é realmente preocupante são as atividades que os grupos de pressão realizam em total opacidade, alcançando instituições que normalmente não são alcançadas pela palavra do cidadão comum. Através de práticas de lobby, as empresas obtêm enormes transferências de dinheiro público e depois dedicam-se a promover políticas que são profundamente contrárias ao Estado Providência que tanto custou a construir e do qual extraíram valiosos recursos. Por outro lado, é paradoxal e desgastante que tenhamos de defender o óbvio: que o papel de um Comissário europeu é defender o cidadão e a força do sector público, não os lucros das empresas privadas. Se a Comissão protegesse realmente os nossos interesses enquanto cidadãos, o historial de Breton tornaria simplesmente impossível a sua nomeação como Comissário após exame pela Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu, que já rejeitou os candidatos propostos pela Roménia e pela Hungria com base em várias incompatibilidades.

No entanto, nada disto nos deve preocupar, nem sequer os possíveis conflitos de interesses que mencionámos anteriormente e que o novo Comissário tem na gestão de assuntos que dizem respeito às empresas privadas que anteriormente dirigiu, porque também é disso que se trata o neoliberalismo: que pessoas com as mesmas receitas e ideias cheguem sempre a certos cargos. Se não for Breton, será outro, assim que estejamos preparados para assumir o inaceitável. Além disso, ele já prometeu no Parlamento Europeu que o seu passado no sector privado não interferirá nas suas decisões, bem como que não participará em decisões que envolvam qualquer uma das empresas em que esteve. E eles são pessoas de palavra. Você vai ver como ele cuida bem de nós e dos nossos interesses.

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O autor: Eduardo Luis Junquera Cubiles nasceu em Gijón, apesar de morar em Madrid desde 1993. É autor de Novela, Ensayo, Divulgación Científica y análisis político. Durante 2013 foi professor de História das Astúrias na Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Brasil. Na mesma instituição colaborou com o Centro de Estudos GE-Sartre, dando vários seminários em conjunto com outros professores. Foi também adido e representante cultural da Espanha no consulado de Fortaleza. Tem colaborado regularmente com a Fundação Ortega y Gasset-Gregorio Marañón e com a Transparência Internacional. Deu numerosas conferências sobre política e filosofia na Universidade Complutense de Madrid, na Universidade UNIFORM de Fortaleza e na Universidade da UECE da mesma cidade. Atualmente escreve regularmente no jornal InfoLibre; no Diario16; na revista CTXT, Contexto; na revista de divulgação científica da Universidade Autónoma, “Encuentros Multidisciplinares”; e na revista de história, Historiadigital.es .

 

 

 

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