A Universidade em declínio a Alta Frequência: depois de Bolonha, o Covid e o ensino com as suas avaliações à distância acentuam fortemente a degradação da Universidade – Novos comentários e encerramento da série de textos

 

Nota do editor:

Quando o último comentário de Rogério Leal me apareceu no blogue para aprovação, no passado dia 19 de Março, enviei-lhe a seguinte mensagem:

Caro Rogério Leal

O seu comentário ao texto “Aprofundamento do debate, nomeadamente sobre o processo de Bolonha”, e que me apareceu há pouco para aprovar, creio que merece outro tratamento. Dado o interesse do que diz e desenvolve, colocá-lo-ei como texto no blog, uma vez que aparecendo apenas como comentário poderia suscitar menos atenção e leitura por parte dos leitores do blog.

Ao que Rogério Leal me respondeu:

Caro Francisco Tavares:

Por mim estou de acordo com a publicação, mas penso que poderá ser um pouco deselegante fazê-la sabendo que o Júlio Mota não comentará o texto. Penso que ele deve ser ouvido sobre a oportunidade deste post e, no caso de concordar, ser convidado a responder, se achar útil e necessário, só mais esta vez. Com o meu compromisso de não responder ao comentário dele! Penso que dos diversos textos resulta claro que estamos de acordo no essencial. A única divergência está em eu achar que a Universidade (todas as Universidades) não terão feito todos os possíveis para lutar contra o que de mau a Declaração de Bolonha podia trazer e para aproveitar alguns aspectos que poderiam levar a algumas melhorias.

Naturalmente, já havia conversado com o Júlio Mota sobre o assunto quando enviei a minha mensagem a RL. E embora o comentário de Rogério Leal tenha sido aprovado enquanto tal, o Júlio Mota acabou por concordar em pronunciar-se sobre este último comentário.

E assim, e dado o seu interesse e importância autonomizamos ambos os comentários enquanto textos no blog, o que encerra, por ora, o debate ocasionado pelos textos inseridos em “A Universidade em declínio a Alta Frequência: depois de Bolonha, o Covid e o ensino com as suas avaliações à distância acentuam fortemente a degradação da Universidade”. Dada a sua extensão, publicámos ontem o comentário de Rogério Leal  (ver aqui) e hoje publicamos o de Júlio Mota.

Como tive ocasião de dizer na publicação do último texto “Em jeito de encerramento da série de textos, que não do debate…” (aqui) o debate “não se encerra”. Estes textos são, afinal de contas, um convite à reflexão e “esperamos que sejam um incentivo ao prosseguimento do debate e que dele se tirem as devidas e necessárias conclusões com vista à reformulação do sistema de ensino superior no nosso país”.

FT

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Comentário de Júlio Marques Mota (20 de Março de 2021)

Diz-me o Rogério Leal

“Começaria por dizer o seguinte: ambos concordamos com as consequências e com o instrumento usado. Para mim, a primeira dúvida estará em saber se o instrumento poderia ter sido usado de outra forma ou se é o único culpado das consequências. A segunda dúvida é saber se, mesmo mal-usado, seria possível, com tal instrumento, ter melhores consequências.

Quanto à (minha) primeira dúvida parece que o Júlio Mota não a tem; o culpado da situação é o Processo de Bolonha. Quanto à segunda parece que também não, com tal Processo as consequências seriam sempre as que foram.”

Meu caro

Mantenho o que disse, não é possível fazer melhor com Bolonha do que o que estava antes de Bolonha. Não se corrigiram problemas com esta reforma e quando muita coisa estava mal, antes se agravaram os problemas e se criaram novos, e é sobre esta adição de problemas no ensino que irei tecer algumas considerações nas linhas que se seguem.

No geral estamos de acordo, estamos perante um desastre global de que ninguém fala. Toda a gente se cala. Deixe-me dizer-lhe que numa coisa tem toda a razão: não dei a atenção devida ao RJIES, já agora um “objeto” que deve ter sido pago a peso de ouro a um jurista de esquerda, sempre um bom recebedor, por um bom pagador, Mariano Gago. O RJIES aparece quase em simultâneo com a reforma de Bolonha e a seguir adicionaram-se os despachos reitorais que rebentaram com o resto. Até os laivos de democracia nas escolas se eliminou! Hoje, em cada Faculdade temos um diretor para tudo e os estudantes passaram a decorar duas instituições, o Conselho Pedagógico e a Assembleia de Escola com esta a reunir uma vez por ano. A visão da prática da Democracia como aprendizagem e crescimento intelectual dos estudantes em cidadania simplesmente desapareceu e pelas mãos do PS, acrescente-se.

O meu amigo Rogério Leal parece concordar com Marçal Grilo que nos diz que isto nada tem a ver com o que entendiam os signatários da declaração de Bolonha. E eu discordo quer da posição assumida por Rogério Leal quer da posição assumida por Marçal Grilo, independentemente das razões de cada um deles, dizendo que o que se passa hoje é a consequência lógica dessa reforma e de tudo o que em simultâneo se lhe ligou. No entanto não podemos esquecer que em paralelo ao processo de Bolonha se deve também ter em conta o RJIES, como me sublinhou muito bem Rogério Leal.

E comecemos por uma questão de base. Estávamos numa fase delicada do capitalismo com o problema do desemprego a ser uma grande calamidade. Sobretudo para a juventude. Deixemos o verniz da declaração de Bolonha: foi entendido por toda a gente que esta representava o encurtamento da “formação longa” num ano. Tinha-se pressa em colocar os estudantes como mão-de-obra barata e acrítica. Não me parece que haja outra conclusão a tirar. Se sentido envia em termos de uma Europa que queria ser a economia competitiva do mundo em termos de ensino e investigação (Cimeira de Lisboa) era aumentar e aprofundar as formações longas.

Mas meu caro, um ano representa na época 25% da vida estudantil. Eu, Júlio Mota, como professor passo de uma licenciatura de 5 anos para 4 e depois de 4 para três e garanto-lhe não é comparável em nada a descida de 5 para 4 com a descida de 4 para 3 anos. Esta última descida foi uma hecatombe. As cadeiras anuais estalaram todas, as cargas horárias reduziram-se em todas as disciplinas fortes e as matérias tiveram TODAS de ser simplificados para ajustamento PRIMEIRO aos menores tempos de lecionação, depois… à menorização intelectual que se gerou nos estudantes a partir logo do primeiro ano. Passou a ser necessário mais tempo e para explicar menos matéria exatamente quando se reduzia o tempo de lecionação. Isto é Bolonha.

A este nível conto-lhe dois detalhes:

– O primeiro detalhe, quando a disciplina de Economia Internacional estava no quarto ano e era anual, mais tarde dividida em Economia Internacional e Finanças Internacionais, eu dava duas aulas teóricas de 1h e 30 minutos cada. Nos primeiros cinco minutos procura ligar algum acontecimento político económico ou social recente com a matéria abstrata que iria lecionar. Um desses exemplos foi-me lembrado há tempos por um antigo aluno meu e hoje empresário de sucesso que os caracterizou da seguinte maneira: o mais importante das suas aulas eram os primeiros cinco minutos em que parecia não falar da disciplina, mas era dela que falava. E o exemplo por ele citado foi a queda do Presidente Alan Garcia do Perú. Na altura terei explicado que a política de Alan Garcia, no seu primeiro mandato, um mandato progressista, era do ponto de vista da lógica imperial americana insustentável e ele teria de cair nem que fosse pela necessidade de secar a vaga social-democrata que a sua política poderia desencadear na América Latina e alterar por aí a Ordem Económica Internacional. Desse trabalho de sapa se encarregariam as Instituições Internacionais. Diz-me esse aluno na altura levantando-se: professor, ele já caiu. Um silêncio brutal caiu na sala e passámos à análise dos abstratos teoremas do 2º semestre de Internacional, a matéria de Finanças Internacionais, e na altura talvez fosse o teorema da paridade das taxas de juro e das taxas de câmbio com as mobilidades de capitais. Tudo isto seria hoje impossível, por falta de tempo para a exposição direta das matérias, mas sobretudo por falta de maturidade dos estudantes.

– O segundo detalhe tem a ver com os meus exemplos relativos à dança das disciplinas e dos seus tempos de lecionação. O primeiro exemplo é o de Finanças Internacionais, uma cadeira nuclear no curso, a ficar em opção livre, isto é, em opção com disciplinas de outras áreas de ensino, como sociologia, direito, gestão. etc. Também esta, por uniformização cai de uma carga horária de 5 horas (3 horas de teóricas e uma turma prática por aluno de 2 horas) para uma carga horária de 2 horas de teóricas e 2 horas de práticas. Com essa queda perdeu um terço da matéria.

Será esta disciplina mais importante que as outras opções de diversas áreas de opção que com ela concorriam na captação de alunos e agora já com a carga reduzida? Em absoluto, claro que não é mais importante. Mas… quando se tem um diploma em Economia o aluno tem de dominar um dado conjunto de conhecimentos em Economia e nesse grupo de conhecimentos teriam de estar quase todos os que eram ensinados em Finanças Internacionais.

Tratava-se de uma cadeira difícil – só optavam por ela os bons alunos. E os restantes? Esses não contam, dir-me-ão, mas é pena que assim seja. As capacidades também se fazem, o caminho faz-se caminhando, é o que se diz. Hoje, já nem temos os tais bons alunos, desculpe-me e desculpem-me, se estes já não existem também lhes digo porquê, É PORQUE NÃO OS PRODUZIMOS. A continuarmos nesta lógica, um dia destes esta disciplina correrá o risco de fechar por não ser atrativa, será este o argumento posto na mesa se tal vier a acontecer.

Hoje, sabendo-se cada vez menos exige-se cada vez notas mais altas. Uma escala perigosa. Aqui um exemplo curioso. Durante anos um banqueiro deste país quando queria contratar alguém telefonava-me e dizia-me: indica-me três a quatro alunos com média de 12-13. Indicava-lhos e havia sempre alguém que entrava. Anos depois, depois de Bolonha ter já bem entrada nos costumes, a média exigida para que as candidaturas entradas sejam validadas na pré-seleção eram já de 16 e 17 valores. Esta é a espiral ascendente à nota que pressupõe a outra espiral, a descendente, a espiral para uma ignorância cada vez maior.

Eu lecionava uma outra disciplina semestral, Economia Internacional, com uma carga horária de 5 horas- 3 horas teóricas e uma turma prática de 2 horas. O aluno tinha assim 5 horas. Baixou-se a carga horária para 4 horas- 2 horas teóricas e uma turma prática de 2 horas. A disciplina perdeu igualmente 1/3 da matéria. Simples, como se vê. E ficou com os ECTS de todas as outras disciplinas formalizadas a 4 horas todas elas, se eu não estou enganado. Porque é que haveria de haver diferenças? Terão as disciplinas a mesma carga de esforço por hora letiva e por cada estudante? Terão as matérias a mesma importância no plano de curso? E tem o mesmo sentido uma hora lecionada ao primeiro ano do que uma aula lecionada ao quarto ano, perdão, ao terceiro ano, porque na licenciatura já não há quarto ano? Claro que não tem o mesmo sentido. Talvez, dir-me-ão, bom, mas a ser assim, caímos na análise neoclássica do cidadão médio em que tudo é deduzido tendo em conta o comportamento do cidadão médio e em que depois se considera que todos os cidadãos são iguais à média ! Não se estará aqui a fazer a mesma coisa?

Teoricamente os ECTS diferenciam a nota final de licenciatura, um dado que ao mercado de trabalho é útil. Não critico nem apoio a lógica dos ECTS. Mas não vejo vantagens nisso face a alternativas sérias determinadas pelos respetivos Conselhos Científicos. De qualquer das formas, as normas ECTS não são um produto que dependa de Bolonha.

Aqui mais uma vez dou três exemplos:

  1. Um prémio de mérito para uma viagem a França: O Conselho Científico da minha faculdade pediu-me que selecionasse um aluno por ano e as estruturas associativas nomeariam elas, ainda bem, também um aluno por ano. E na altura havia estruturas associativas de jeito. Criei a minha regra de seleção atribuindo ponderadores de 1,5 às cadeiras nucleares do curso, sobretudo às de matemática, se bem me lembro. Fiz a hierarquia, exceto para o primeiro ano, que seria a média de entrada. Um aluno do último ano protestou pela sua ausência na lista dos selecionados porque na seleção feita por mim estaria em vez dele alguém selecionado com umas décimas a menos do que ele. Expliquei-lhe a regra, com algum desagrado a aceitou, mas com ela concordou!
  1. Deixei de fazer parte dos júris de admissão ao lugar de docentes na minha faculdade quando as coisas se homogeneizaram; quando não se aplicaram ponderadores diferentes face a disciplinas bem diferentes. Lembro‑me de que a última vez que fiz parte de um júri destes tive de me opor fortemente a um candidato que vinha com uma média de 17 de uma outra Faculdade e cujo historial eu conhecia bem: tratava-se de uma faculdade do Interior a quem não tinham sido dados os meios financeiros necessários para evoluir em qualidade. Mais uma vez sem meios não há resultados, sem ovos não há omeletes é o que diz o nosso povo, mas pior ainda, nem sequer se dá tempo a que as galinhas ponham ovos de jeito, saem ovinhos e de casca finíssima. Não suportam a mínima pressão entre os dedos!

Mas o Rogério Leal diz-me, defendendo com unhas e dentes os ECTS com o argumento da mobilidade. Diz-me:

Sobre este ponto temos, de facto, entendimento muito diferente. Para começar esclareço que a mobilidade a que me refiro é a dos formados quando saem do País para obter emprego no Espaço Europeu do Ensino Superior”.

O exemplo podia ser aplicado ao caso anterior e num espaço homogéneo, o espaço nacional, e daria o quê, se a Instituição de partida estava validada pela Agência Nacional de Creditação a A3ES (A3ES – Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior)?

Mas ainda sobre esta considerada importante mobilidade conheço o caso de uma amiga que apresentou o CV a uma importante instituição universitária inglesa, antes do Brexit. Foi admitida por exemplo a uma quinta-feira e para entrar ao serviço logo na segunda-feira seguinte. Pedagogia onde ? Meses depois veio-se embora por não aguentar o clima de que o estudante é rei. Seriedade nisto tudo? Só da parte dela, como é claro.

Lamberto Maffei dá-nos uma explicação clara para esta situação:

dificilmente a economia de mercado poderá ter entre as suas prioridades a formação de cidadãos críticos, que, de resto, se poderiam revoltar contra ela, defendendo uma economia de sobriedade e de sustentabilidade.  Este tipo de filosofia é certamente um dos fatores que levaram (…) à escassa consideração social e económica reservada aos professores que atinge agora também a universidade

  1. Não entrámos na nossa análise com o fenómeno epocal e este é importante, muito importante. Cultural e eticamente os tempos são muito diferentes. Imaginemos ainda que é a nota de licenciatura que determina a seleção de um candidato a assistente, sabendo que hoje já não é assim. Imaginemos que temos dois candidatos, um candidato com 21 anos de idade e média de 15 e o outro com 23 anos e com média de 16, mas em que muitas das notas que geraram esta média eram de cadeiras repetidas, inclusive de cadeiras repetidas do primeiro ano e repetidas quando já estava no 4º ano. Na minha opinião e com os meus ponderadores entraria o candidato com média de 15, mas hoje se tal acontecesse a Faculdade seria levada a Tribunal. Se passarmos à escala dos doutorados o panorama não é diferente: cada vez que há um concurso instalam-se quezílias, conflitos por vezes intensos que permanecem em suspensão no ar durante anos e a envenenar o clima académico. Mas com estes ponderadores todos, todos os ECTS possíveis e imaginários temos concursos com meses de diferença na mesma Instituição, com seriação estabelecida informaticamente, em que os candidatos A e B aparecem em ordem completamente díspares num e noutro concurso quando concorrem para o mesmo grupo de disciplinas!

Por tudo isto prefiro as regras de bom-senso e este é cada vez mais raro mas sublinho que os ECTS não têm nada a ver com Bolonha.

Quanto à questão dos 333 também aqui que entra o espírito da época. Diz-me:

Parte do que o Júlio Mota diz no seu ponto 2 já está respondido em cima. Mas entremos na realidade e consideremos o exemplo que dá sobre os 333 diplomas a mais por ano. Evidentemente o Professor com quem falou só podia estar a brincar! Se o entendimento dele sobre a democratização do ensino fosse verdadeiramente este, então não seria, seguramente, um dos professores mais à esquerda da Faculdade de Economia.

Sinceramente eu não estava a brincar e ele também não. É também aqui que entra o espírito da época. Éramos todos do PS, estávamos em plena época Sócrates, tratou-se de alguém que se colou às teses do Partido, às ideias dominantes. E este meu colega era e é sinceramente um tipo de esquerda, mas claramente esta não era uma posição de esquerda, o que é diferente.

O texto vai longo. Até aqui não pretendi responder a nada em especial, apenas deixei expressar os meus sentimentos face ao que se passa e face às minhas histórias passadas. Que isso não dessagre ao Rogério Leal nem a ninguém.

No entanto, acabámos por não responder explicitamente às duas perguntas postas por Rogério Leal e com quais iniciámos o presente texto. Vejamo-las de novo:

Para mim, a primeira dúvida estará em saber se o instrumento poderia ter sido usado de outra forma ou se é o único culpado das consequências. A segunda dúvida é saber se, mesmo mal-usado, seria possível, com tal instrumento, ter melhores consequências

À segunda pergunta está respondido atrás, com um Não rotundo, não era possível melhores resultados. Estes são os resultados lógicos quando se rouba ao ensino algo que lhe é fundamental: O TEMPO DE APRENDIZAGEM, mas devemos sublinhar que a estes resultados não é estranho a dinâmica social de minimização dos valores a que se tem assistido, como também não é estranho o RJIES aprovado pelo mesmo ministro que aprovou Bolonha e que queria transformar as Universidades em Fundações. Ao que se dizia na altura, não terá mesmo hesitado, em recorrer á chantagem do financiamento para que essa mudança de estatuto fosse levada a cabo. Sabe-se lá porquê!

Quanto à primeira pergunta a resposta é aparentemente fácil. A reforma de Bolonha poderia dar outros resultados, isto é, poderia dar resultados muitíssimo menos maus, mas apenas se e só se fosse contornado o espírito de Bolonha!

Dito de outra forma, os resultados seriam muito menos maus se e só as Faculdades se mantivessem no que se chama mestrado integrado, isto é, a licenciatura de 4 anos habitual, a que se adicionaria um ano de aulas e de elaboração de um trabalho final de mestrado. É o caso da minha neta em Ciências Farmacêuticas e na última licenciatura em que haverá mestrado integrado. Depois desta licenciatura, a partir de 2026, não haverá mais mestrado integrado em Ciências farmacêuticas. Esta é a decisão do Ministro do Ensino “Inferior”.

Pegando nesta ideia poderíamos fazer o seguinte: atribuir uma carga horária semanal de 18 horas no primeiro e segundo ano, passar para uma carga horária semanal entre 18 e 22 horas para o terceiro ano e para uma carga horária entre 20 e 24 horas semanais para o quarto ano, onde se desse relevo às disciplinas nucleares de cada ano. No quinto teríamos uma mesma carga horária no primeiro semestre e uma carga horária entre 10 e 12 horas no segundo semestre em que o aluno estaria a elaborar o seu trabalho de final de mestrado, a que é pomposo demais chamar tese. Hoje também já não se chama assim.

Teríamos assim o ensino centrado tanto na aquisição de conhecimentos como na aquisição de competências. De resto não sei o que será aquisição de competências sem a prévia aquisição de conhecimentos. Ter-se-ia de acautelar, e bem, este ano final, e para tal haveria que eliminar a massificação do ensino a este nível. Não se fazem mestres como se fazem salsichas, com os diabos. Poderíamos ter de colocar filtros nesta passagem do 4º ano para o 5º ano e só há um filtro aceitável: o do mérito, nunca o do dinheiro. Só seria admitido a um quinto ano, dito de mestrado, quem tivesse média acima de 14 valores e com bolsa de estudos para quem precisasse. O preço a praticar seria então o da matrícula de licenciatura. Seria um prémio ao estudante em geral, gratuito para quem tem mérito e não tem posses, a custo muito baixo para quem possui estas duas características, uma vez que o mérito deve ser considerado independente dos seus recursos. Um prémio é um prémio.

Precise-se que a opção ótima seria a apresentada por Rogério Leal Bastava, por exemplo, designar os primeiros três anos por “Licenciatura de 1º ciclo” e os dois seguintes por “Licenciatura de 2º ciclo”, para o terceiro ciclo continuar a ser mestrado e os estudos posteriores serem Doutoramento”. Mas Bolonha não é isso e a resposta que me é pedida pelo Rogério Leal é dentro dos quadros estabelecidos por Bolonha.

Situando-me nos limites de Bolonha para responder à pergunta e no sentido de respeitar a diversidade proposta por Bolonha, poder-se-ia criar depois deste mestrado integrado outros a que só se teria acesso com a aprovação no mestrado integrado e a um preço diferente: ao custo efetivo. Seriam aqui bem-vindos os diplomados em Engenharia para tirar pós-graduações ou mestrados em gestão ou em economia desde que temáticos, especializados, mas sinceramente não sou capaz de ver o sentido inverso: os alunos de economia a irem depois de licenciados a engenharia fazer uma pós-graduação ou um mestrado em engenharia. Percebe-se porquê, porque há saberes específicos e saberes gerais muito diferenciados entre os detentores dos dois tipos de diplomas garantindo mais mobilidade aos diplomados por engenharia. Naturalmente assim.

Esta mudança na estrutura dos cursos parece simples, mas não é nada simples. Estamos com vinte anos de Bolonha e a decadência criou interesses estabelecidos, criou os seus próprios mecanismos de histerese na ignorância face ao Saber. É sempre mais fácil destruir do que construir, é sempre mais fácil esquecer do que aprender. Lutar contra isso não é nada fácil e tanto mais quanto a maioria dos seus Prof. Doutores de hoje já são a chapa do canal estreito de conhecimentos que é Bolonha. Passar a carga horária de uma disciplina de quatro para cinco ou para seis horas, como neste caso se passaria com disciplinas eminentemente técnicas como Contas Nacionais ou Contabilidade Geral ou Contabilidade Analítica para me referir ao que conheço mais de perto, não é nada fácil, ao contrário do que se pode imaginar.

As alterações sugeridas exigiriam reestruturar todo o curso e isso leva tempo, muito tempo, muitas reuniões de grupo e de equipas de trabalho por disciplina. Para dar um exemplo de detalhe: exigir-se-ia mais rigor nas disciplinas de opção oferecidas aos alunos. Exemplo: as opções oferecidas em Sociologia não devem ser as mesmas opções que são oferecidas em Economia, nem as opções oferecidas em Economia poderiam a ser as mesmas que são oferecidas em Gestão de Empresas. As opções de forma coerente poderiam ser eventualmente oferecidas por pequenos blocos se necessário. O que não posso admitir é que um aluno em gestão não saiba manusear tabelas com dados macroeconómicos com múltiplas taxas de câmbio reais nem interpretar os eus valores. O que não posso admitir é que um licenciado em economia não saiba interpretar os movimentos numa balança de pagamentos por falta de noções de contabilidade geral.

Por outro lado, se se exigiriam modificações no que ensinar, também se exigiriam mudanças na forma de ensinar. Exigir-se-ia que seriam sobretudo as disciplinas de opção – estas têm menos alunos – a poderem funcionar em regime teórico-práticas enquanto as “grandes cadeiras nucleares” teriam de funcionar em regime de aulas teóricas e práticas com a obrigação das turmas práticas não terem mais de 25 alunos. Os alunos precisam também de uma relação de proximidade, de respeitar o professor, mas também de sentir que este lhes está próximo. Foi o que me ensinaram décadas de ensino em proximidade por muito distante que eu pudesse parecer.

Este seria um ponto de partida para reformular o que Bolonha estragou. Um projeto destes exigiria que a lógica de desempenho em vigor que massacra e captura a capacidade criadora dos docentes fosse radicalmente alterada e que o RJIES fosse revogado.

Mas meu caro Rogério Leal repare que o atual ministro eliminou já os mestrados ditos integrados. O nosso ministro do ensino superior tem pressa em ver os nossos mestrandos nas filas do Instituto de Emprego e Formação Profissional ou a atendê-lo como cliente numa qualquer loja de um qualquer centro comercial. Nada a dizer. Tem muita pressa o nosso ministro do Ensino “Inferior”.

A terminar deixem-me colocar aqui uma citação de Lamberto Maffei ( Elogio da Lentidão) em que afirma:

A antiga metáfora segundo a qual a ciência e em geral o conhecimento, se constrói subindo aos ombros de gigantes, dos cientistas que nos antecederam – não vejo como a coisa pode ser de outra maneira- perdeu muito da sua atração porque subir para os ombros de gigantes requer esforço e tempo e, não menos importante, a leitura de livros exigentes. (…)

Utilizando uma comparação ousada, mas talvez eficaz, nas nossas sociedades uma entidade chamada mercado promete-nos prazer e felicidade em troca da perda de algo semelhante à alma, que se se chama sistema de valores.

Esta é o espírito epocal que antecede e subjaz à Declaração de Bolonha e que está bem presente na atual dinâmica universitária, na dinâmica dos mercados e da sua mão invisível, que só é invisível para quem não quer ver que esta não existe, e cujos resultados são os que hoje bem conhecemos.

Depois deste texto concluído o Francisco Tavares mandou-me numa nota de uma intervenção conceptualmente não muito diferente do trabalho acabado de citar de Lamberto Maffei, excerto esse de uma conferência de Mia Couto no qual me revejo com o tipo de texto que acabo de escrever.

E revejo-me tanto mais neste excerto de Mia Couto quanto o presente trabalho foi escrito na base do que foram as minhas vivências profissionais e no ideário que as sustentou.

Diz-nos Mia Couto: 

vivemos este tempo em que tudo é simultâneo e tudo é imediato, e tudo é voraz e tudo é veloz.

Então, como é que isto aconteceu?

Eu acho que foi uma coisa que se chama o mercado, que é um nome terrível, porque não tem rosto, nem tem nome. Impôs-nos um outro tempo, um tempo de consumo, um tempo que se consome a si próprio, e nos consome a nós.  (…)

Esta intervenção que fiz com base em momentos, em lembranças, eu fiz assim porque essas lembranças, esses episódios não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei a minha alma de futuro, que eu investi. E falei nesses episódios porque eu acho que neles está uma espécie de um ideário, de um programa que eu tenho naquilo que é a minha intervenção cívica”.

 

 

 

 

 

 

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