Ainda na sequência da publicação de alguns textos ligados ao desenvolvimento das forças produtivas, onde o ensino é peça chave, publicámos em A Viagem dos Argonautas um texto de Rebecca Gordon sobre o ensino (ver aqui), onde, surpreendentemente a estrutura atual do ensino é considerada equivalente a um sistema de Ponzi, ou seja, equivalente a uma vigarice.
Assistimos, sem que uma voz discordante se levantasse, aos lamentos de que os exames deste ano teriam sido mais difíceis que os do ano passado, ano também de pandemia e que por isso mesmo se deveria flexibilizar o número de vagas de modo a que mais gente possa concorrer à Universidade. E isto para não criar situações de desigualdade, face aos alunos do ano anterior [1]. O argumento de base, a dificuldade das provas de exame de final do secundário teria sido semelhante ao que se passava antes da pandemia e que isso prejudicou os alunos deste ano.
Duas conclusões a tirar: a primeira e imediata é que o ensino à distância exige para iguais resultados aos do ensino presencial que os exames sejam mais fáceis. Dito de outra forma, com o ensino à distância aprende-se quantitativa e qualitativamente menos.
Segunda conclusão: se a primeira conclusão traduz de facto o que se passa na realidade, tira-se então uma segunda conclusão: os nossos reitores, o nosso ministro da (Des) educação e o nosso ministro do Ensino Superior, que se quer ministro do Ensino inferior, querem digitalizar o ensino Universitário e isto significa então baixar ainda mais o seu nível, já muito baixo, em que nos situávamos antes da pandemia. Uma fraude portanto.
Ora, a fraude no ensino superior é o tema de fundo do texto de Rebecca Gordon. Mas há mais. No texto de Rebecca Gordon está subjacente a tenaz que é exercida sobre cada jovem e respetiva família: estamos perante uma massificação do ensino, perante uma diversidade de graus universitários, perante uma enorme pressão na procura de emprego, o que leva os estudantes a subirem na escala dos graus e tanto mais quanto estes estudantes sabem que quanto menos vale um diploma menos vale quem o não tem. Por isso é preciso tê-lo, e isto força à subida na escala dos diplomas, o que por seu lado significa um maior endividamento das famílias. E isto quando a taxa de inflação sobre o setor serviços, o do ensino superior em particular, é de longe superior à taxa de inflação da economia. Este é, em termos de síntese, um dos lados da tenaz.
Um outro braço não menos poderoso da tenaz que se exerce sobre cada estudante, sobre cada família, está relacionado com os mecanismos de seleção no mercado de trabalho. Hoje, face ao desemprego de massa, os concorrentes a cada posto de trabalho são muitos, daí que para as empresas os custos de seleção do pessoal por posto de trabalho são elevados. Uma forma de os reduzir, e a mais imediata que as empresas têm à mão, é aumentar os filtros de seleção. Aqui entra a dança dos diplomas: para muitos empregos em que o simples curso do liceu ou curso profissional seria suficiente, passa a exigir-se licenciatura, por exemplo. Noutros casos exigem-se diplomas complementares de pós-graduação, quando não mestrados ou mesmo doutoramentos. Curiosamente, como Rebecca assinala, em muitos dos casos as competências e saberes adquiridos com os diplomas exigidos nada ou pouco têm a ver com as exigências do posto de trabalho proposto. Um desperdício enorme em recursos utilizados e em tempo de aprendizagem para quem frequentou os cursos. Estes alunos poderiam estar a ter formação profissional, muito mais útil, para o próprio, para as empresas, para a sociedade como um todo, em centros de formação públicos bem estruturados, completados depois por formação específica ao nível das empresas onde seriam colocados.
Mas isto é sair da visão “presentista” e de muito curto prazo, em que as empresas e os nossos políticos se situam. Não é o Estado que paga, não são as empresas que pagam, é o bolso do cidadão comum, dirão os nossos neoliberais, é o resultado das escolhas individuais de cada um, portanto tudo está bem. Como se o indivíduo vivesse à margem da sociedade, ou como se esta não fosse o resultado, não a soma, das interações entre os indivíduos. Os filtros de seleção reduzem o número de candidatos elegíveis para os postos de trabalho e, por essa via, se reduz os custos de seleção de pessoal e por essa via, os diplomas se assumem como a via real para a obtenção de um posto de trabalho.
Estes são os dois lados da tenaz cuja pressão traduz a espiral a partir da qual se cria um problema grave: o do endividamento das famílias para fazerem face aos encargos escolares.
A pressão das empresas para recrutar trabalhadores com níveis superiores de formação académica é um aspeto curioso que em Portugal nunca vi referido, mas sobre o nosso país deixem-me apresentar dois casos de seleção de pessoal:
1º. Uma federação de fabricantes de material elétrico quer contratar uma pessoa para um cargo de secretariado. Contrata uma empresa especializada para o efeito. São colocados anúncios nos jornais e aparecem mais de mil candidatos. A empresa aluga uma série de salas, dezenas delas, para as provas de seleção que terão decorrido, se a memória não me falha, no Instituto Superior Técnico. O custo: uma fortuna. O responsável da empresa ficou vacinado quanto a seleção de pessoal por esta via.
2.º Um ilustre advogado de Coimbra precisa de contratar uma secretária. Coloca anúncios nos jornais locais. Respondem largas centenas de pessoas. Passa a pente fino os curricula e pré-seleciona 10 dos candidatos que passam à fase seguinte: uma entrevista. Curiosidade deste volume de candidatos; cerca de 8 em cada 10 candidatos tinham o curso superior; no total, nenhum destes fazia parte do lote dos 10 pré-selecionados.
Uma conclusão curiosa: no segundo caso não se recorreu ao filtro utilizado pelas empresas americanas (candidaturas somente de detentores de curso superior) e o resultado mostra que com vantagem para a entidade que não o utilizou. Não me espanta, hoje. Lembro-me de um aluno de mestrado, um professor já na casa dos 50 anos que tinha sido professor na Escola secundaria Jaime Cortesão em Coimbra e que na altura em que era meu aluno de mestrado era professor num Instituto Politécnico em Contabilidade e Administração de Empresas. Dizia-me ele com profunda revolta que era inadmissível que num Politécnico desse menos aulas de Contabilidade dos que as que lecionou na Escola Jaime Cortesão para os alunos do secundário. Mas era assim.
No caso português não é pois de estranhar o que se deu com o meu amigo advogado: excluir gente com o diploma de ensino superior por razões de maturidade e não só, a favor de gente apenas com o curso do secundário feito em melhores condições e alguma experiência de vida profissional. Isto superava, neste caso, a suposta vantagem do curso superior.
Nas Universidades devia-se ensinar a aprender e nas empresas devia-se ensinar a fazer, mas isto pressupõe que as Universidades façam o seu papel, o que é cada vez menos provável, como se mostrou com este exemplo.
Leiam o texto de Rebecca e procurem colocá-lo no caso português. Um bom trabalho para percebermos o triste mundo universitário em que vivemos.
Um exercício tanto mais válido quanto muito em breve teremos o impacto do Programa Nacional de Recuperação e Resiliência sobre as Universidades em termos de reformas de ensino a caminho da digitalização da Universidade e de criação de cursos novos, cursos curtos de matriz profissional. Penso que nas Universidades iremos ver crescer como cogumelos os cursos e cursinhos de formação profissional extracurriculares e pagos a bom preço [2] em paralelo e em concorrência com os Politécnicos [3]. E tudo a ser bem empacotado e vendido aos necessitados de mais linhas nos curricula para concorrerem no mercado de trabalho, tal como nos fala Rebecca Gordon sobre os Estados Unidos.
NOTAS
[1] Noticiava o jornal Público e o Expresso no princípio de agosto:
” os professores de Matemática pedem “justiça”. “Os melhores alunos deste ano estão em franca desvantagem relativamente aos que se vão recandidatar com as notas do ano passado”, diz o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), João Araújo. (…)
“Já antes contactámos o ministério e apelamos agora aos reitores para que, em conjunto, façam o possível e o impossível para aumentar o número de vagas nos cursos de médias mais elevadas. É um problema de justiça. Os alunos deste ano não podem ficar fora do curso em que entrariam em condições normais apenas pelo facto de Matemática ter um exame muito mais difícil este ano”, explícita João Araújo.”
[2] Faça-se uma pequena investigação sobre os preços dos atuais cursos de mestrada e fica-se espantado quando encontramos alguns já a serem pagos a vários milhares de euros.
[3] Com este texto à espera de publicação no nosso blog leio as informações sobre o Congresso do PS, sobre o discurso de António Costa. Quanto ao ensino superior, assiste-se à mais pura demagogia, ao mais puro populismo. Esta é a minha opinião.
Os principais problemas seriam primeiramente:
- questionar a utilidade dos mestrados atuais, uma espécie de fábrica de diplomas em que estes se fabricam um pouco como as salsichas de má qualidade. Não tocar nas estruturas atuais do ensino desde a licenciatura aos mestrados e doutoramentos, como está implícito no discurso de António Costa, é cair no sistema de Ponzi de que fala Rebecca Gordon, quer em termos de dinheiro gasto quer em termos de tempo desperdiçado;
- perceber qual a razão de ser dos valores monetários exigidos aos alunos, muitos já vão na ordem de milhares de euros, e da lógica financeira que está por detrás da lecionação dos mesmos.
- reagrupar saberes uteis, teóricos e práticos, e criar mestrados a corresponderem às necessidades de formação de que a sociedade precisa, exigindo previamente qualidade na admissão dos candidatos e qualidade nos níveis de formação alcançados. É sobretudo na base destes requisitos que se deve colocar o problema das bolsas de mestrado e mesmo até de outros estímulos adicionais que possam ser oferecidos a quem deles se apresentar como merecedor.
Isto é o contrário do que António Costa propõe: manter o statu quo, que desde há muito tempo tenho criticado, e fornecer bolsas aos alunos de mestrado, qual passe de mágica para aliviar os encargos das famílias com a formação universitária dos seus filhos, o que significa, entre outras coisas, encher os bolsos aos professores do topo da hierarquia, possivelmente remunerados em regime opaco de pagamento dos custos de lecionação.
Poderei estar enganado, se o estiver as minhas desculpas, mas não o creio por aquilo que sei que são os mestrados de hoje. Das referências no discurso sobre o ensino superior ressalta uma coisa: o PS tem medo de assumir a necessidade de reformas mas esse medo é comum a muitas outras áreas, como a saúde, como o trabalho, urbanização e habitação, etc. Os meios financeiros necessários são importantes mas a prioridade deveria ser dada às reformas necessárias para a sociedade portuguesa e depois decidir o que gastar e como gastar. Dito de forma mais simples; seria primeiro que tudo necessário reverter as medidas criadas pela Troika e aplicadas pelos governos de Sócrates e de por Passos Coelho e sustentados sem estado de alma pela política austeritária e cega de Mário Centeno e António Costa na primeira das suas duas legislaturas.