“Considerações sobre os efeitos da pandemia nas crianças em geral- e alguns textos de apoio”
Coimbra, 8 de Novembro de 2021
Hoje mudo de tema dominante – ainda que política e economia não possam deixar de estar presentes – para me centrar num tema muito especial: os efeitos da pandemia sobre os comportamentos presentes e no que diz respeito às crianças, sobre eventuais efeitos futuros também.
Nessa base aqui vos apresento quatro textos:
- os dois primeiros são pequenos textos ligados à queda muito recente dos Democratas no Estado de Virgínia e na base de uma campanha eleitoral violenta feita pelos republicanos em termos da educação;
- o terceiro texto, pode ser visto como uma reflexão sobre a desarticulação entre os diferentes níveis de ensino e entre estes e o que a sociedade objetivamente precisa deles e, tomando como base um provérbio do século XIV, fala-nos da importância de cuidar do elo mais fraco de um país o que, na presente situação pandémica, nos leva a pensar nas gentes mais jovens desprotegidas com a pandemia Covid: as crianças.
- o quarto texto é um longo texto sobre formação das crianças e a pandemia.
Dos dois curtos textos, o primeiro deles fala-nos da derrota dos democratas no estado de Virgínia, em que o candidato vencedor republicano, Glenn Youngkin, conduziu uma campanha eleitoral assente no ódio, no racismo, e assim venceu. Acusou duramente o seu opositor, Terry McAuliffe, de ter vetado um projeto de lei que teria feito da Virgínia o primeiro Estado – antes do Mississippi, antes de qualquer um deles – a permitir aos pais bloquear o acesso dos seus filhos à leitura de livros com material sexualmente explícito. Foi a política democrata no ensino que Youngkin questionou duramente, tomando como exemplo do seu ataque contra Terry McAuliffe o livro de Tom Morrison, “Beloved Bill”. Contra Youngkin, o candidato perdedor, Terry McAuliffe, argumentava que não caberia aos pais dizer às escolas o que deve e não deve ser ensinado e este candidato perdeu.
O segundo pequeno texto fala-nos de uma política nacional de ensino, profundamente democrática que deve ser desenvolvida em todas as escolas americanas e por oposição às teses do vencedor ao cargo de governador do estado de Virgínia, Glenn Youngkin.
O terceiro texto, retomando como base um provérbio do século XIV – uma pequena negligência pode gerar grandes males -, reequaciona o problema da educação de qualquer país e problematiza a desadequação existente entre os diversos níveis de ensino e entre o que se pretende em cada um deles e o que a sociedade deles objetivamente precisa. Na linha do seu autor, sublinhe-se que o resultado final de um sistema educativo depende inteiramente da capacidade funcional de cada um dos seus níveis, de cada um dos seus elementos ou preparação. Imagine-se um ciclo primário disfuncional -tudo o resto corre o risco de se tornar disfuncional. Lição a tirar daquele provérbio: Um sistema de ensino é apenas tão forte e fiável como o é o seu elo mais fraco.
É um texto que claramente nos traz à mente o estado do ensino em Portugal. Dito de outra maneira, se queremos que o nosso sistema de ensino seja tão forte e fiável como o seu elo mais fraco, não seria má ideia repensar a Lei de Bases do Ensino em Portugal e aqui relembro o que John W. Gardner escreveu:
“Um excelente canalizador é infinitamente mais admirável do que um filósofo incompetente. A sociedade que despreza a excelência na canalização porque é uma atividade humilde, e tolera a má qualidade na filosofia porque é uma atividade nobre, não terá nem uma boa canalização nem uma boa filosofia. Nem as suas canalizações nem as suas teorias cumprirão as funções que delas seria de esperar”
O quarto texto, texto que justifica esta série, intitulado “Será que a pandemia modifica o cérebro das crianças?”, assinado pela jornalista Jackie Mader, publicado por The Hechinger Report com o apoio de Dart Center for Journalism & Trauma, um projeto da Escola de Jornalismo de Columbia. Neste caso trata-se de um texto extenso, profundo, um texto que nos fala dos impactos da pandemia sobre as crianças, sobretudo sobre as de tenra idade.
Vale a pena falar deste último tema, tanto mais que é um tema sobre o qual se tem passado como gato sobre brasas, muito rapidamente e sem grande reflexão.
E quanto a esses impactos futuros levanto uma hipótese: veremos num futuro próximo como a pandemia funcionou como um elemento dinamizador do aprofundar das desigualdades e isto a partir exatamente das crianças de tenra idade de hoje.
Com a pandemia, tomemos como exemplo as crianças que entraram para a primeira classe no ano escolar 2019-2020. Para esta faixa de alunos, em todo o lado houve crianças que fizeram a primeira e segunda classes em confinamento total ou parcial e com ensino à distância, ou seja, tudo se reduziu a aprendizagens mínimas e a passar de classe. Nestas condições ou havia alguém em casa culturalmente em condições de substituir o professor e o ensino poderia funcionar mais ou menos bem, ou não havia gente preparada em casa para tal missão e a aprendizagem reduzir-se-ia a pouco mais do que aos mínimos nunca até aí pensáveis para se passar de classe.
Nesta segunda hipótese e nas condições enumeradas, passando-se de classe, quem entrou em 2019-2020 chega à terceira classe em 2021-2022 sem os conhecimentos mínimos para fazer uma terceira classe em condições, sem condições para fazer depois uma quarta classe e assim sucessivamente. Por outras palavras, criámos uma multidão de coxos de que em termos de ensino muitos deles nunca serão capazes de se livrar dos efeitos da pandemia. Serão os novos analfabetos do futuro e sem que se veja perspetiva de melhorar a situação, estas crianças de hoje engrossarão a multidão de gente descartável da sociedade a ser construída na base do sistema Uber – aquilo a que já se chama a uberização da sociedade, mas a que mais corretamente se poderia chamar a precarização [1] estensiva da sociedade.
Mas esta situação tem um aspeto curioso: mesmo havendo gente em casa e em teletrabalho, o apoio à criança em aprendizagem à distância torna-se uma missão de Hércules para muitos pais porque a constante inovação pedagógica (eu chamar-lhe-ia desconstrução pedagógica) é de tal forma intensa que muitos pais, e também muitos avós, mesmo licenciados, não estavam pedagogicamente à altura de ensinar os seus descendentes! Perguntem a alguém na casa dos sessenta para cima se já ouviu falar em contas em pé. Dir-lhe-ão seguramente que nunca ouviram falar em tal coisa. Ora, referimo-nos a alunos de uma faixa etária em que ou se segue o método do professor a ensiná-los, e em casa não se é professor primário, ou podemos estar perante um efeito perverso ao querê-los ensinar e levá-los assim à rejeição das matérias que se lhes quer ensinar! Dito de outra maneira bem mais dura: criou-se uma minoria de eleitos futuros e transversal a todas as classes.
Mas, como se sabe, em matéria de educação continuamos politicamente em frente como se nada se tivesse passado. Pois bem, o quarto artigo que aqui vos deixo coloca exatamente a questão dos efeitos da pandemia sobre as mentes ainda em início de construção, as mentes das nossas crianças de primeira infância, e levanta ainda a problemática dos enormes meios financeiros necessários para que a sociedade se contraponha a estes efeitos e os anule quando ainda se está a tempo de o fazer.
Vivemos uma sociedade preocupada com o equilíbrio das contas públicas presentes e futuras, as contas certas de que nos fala António Costa. Ainda agora e face à crise política criada em Portugal e em que para cada partido, e independentemente da posição assumida face ao Orçamento, considera que a culpa é apenas dos outros ou até que a culpa é do Presidente, o problema das contas esteve sempre na base da crise, mas desse equilíbrio das contas mal se fala, pelo menos pela parte dos partidos do arco do poder. Não deixemos dívidas para as gerações futuras é a tese de muitos destes neoliberais de pacotilha e isto quando se trata de dívida para exatamente salvar as gerações futuras dos desgastos agora provocados que, a verificarem-se, serão irreversíveis.
Podemos, pois, estar certos de que esta problemática não será uma preocupação central da nossa Administração Pública, habituada que ela está a considerar que basta reduzir o insucesso escolar reduzindo o número de reprovações para que o problema esteja resolvido! É assim que se tem sistematicamente feito no ensino superior, melhor dito, ensino inferior, é assim que se continuará a fazer, transpondo esta prática para os escalões de ensino abaixo.
Dois exemplos de como neste país se vê o direito à saúde nos jovens, ambos referidos às minhas duas netas a viverem numa cidade que se anunciava ser a Capital da Saúde em Portugal, a cidade de Coimbra:
Exemplo 1.
Tenho uma neta de 19 anos que sofre de gaguez, um problema delicado nestas idades. Fez terapia da fala numa Instituição Pública, o Pediátrico de Coimbra, não tendo dado resultado significativo e, por sugestão da terapeuta, entendeu-se fazer uma paragem de cerca de 2 anos no tratamento, até que desaparecesse algum sentimento de rejeição pelo lado da minha neta. Por volta de 2014, tentou-se retomar o processo na mesma Instituição. Foi difícil, muito difícil conseguir que voltasse a ser admitida a consultas de gaguez no Pediátrico, e fico-me por aqui, mas conseguiu-se. E qual foi depois a resposta clínica nesta instituição? Uma consulta de seis em seis meses! Explicação plausível, para esta situação: não havia recursos humanos disponíveis. Por isso, fingia-se que…Senti-me gozado e desisti.
Se os nossos políticos não querem dispor de meios para se tratar situações como a que acabo de descrever relativamente à minha neta, como se pode pensar que os nossos políticos quererão dispor de meios para tratar os impactos da pandemia sobre os nossos jovens de tenra idade? Neste campo, o da gaguez, vejam-se os consultórios privados, quanta gente por lá anda com este problema, uma vez que cerca de 5% dos nossos jovens sofre de gaguez e, neste total, cerca de 80%, a gaguez desaparece com a idade. Com um dado curioso, em cada quatro recuperados naturalmente da gaguez, 3 são meninas. Ainda esperei que a minha neta caísse nesse lote, mas não, caiu no outro late, no lote das crianças não naturalmente recuperáveis.
Exemplo 2.
Há três anos, uma neta minha de 4 anos, na altura filha de pais sem recursos, sem rendimentos próprios, teve um problema de dentista: por efeitos de anteriormente ter tomado medicamentos à base de cortisona, possivelmente, fez várias cáries, gerando-lhe sucessivos abcessos. Começou a ser tratada num consultório particular. Na primeira ida ao dentista tudo correu bem, muito bem mesmo. Depois foi o inferno, mal via a seringa começava a chorar e não deixava que a tratassem. Ao fim de várias consultas, chegou-se à conclusão que teria de ser tratada num bloco operatório, pois precisava de ser sedada.
Tentou-se a unidade dentária ligada à Faculdade de Medicina da U.C.. A anestesista recusou, dizendo que não dispunha de meios de resposta caso houvesse um percalço. Na sua opinião, era um caso para ser tratado no Hospital Pediátrico. Assim se tentou: aí esbarrámos com a política de saúde, não com a estabelecida pelo Ministro da Saúde, mas sim com a estabelecida pelo Ministro das Finanças, Mário Centeno. Só assim se pode perceber a “boutade”de Adalberto Campos Fernandes, na altura o ministro da saúde: “somos todos Centeno”. Curiosamente, o Hospital Pediátrico de Coimbra não dispunha de meios humanos para tratar duas cáries dentárias de uma criança de 4 anos! Teria que ir para a longa fila de espera deste hospital, uma espera de meses! A solução foi então recorrer a um estomatologista e a um bloco operatório do setor privado. Recorri junto do Primeiro-ministro António Costa, recorri junto do Ministério da Saúde, recorri junto da Administração Hospitalar da região Centro e o resultado final foi considerarem o processo encerrado pela parte da Administração Pública, sem que nada tivesse sido feito para resolver o problema da criança.
Pela parte das autoridades e da sua incapacidade em resolver um problema tão simples, foi então, note-se!, considerado encerrado o processo quando a criança ainda nem sequer tinha sido tratada. Este é um exemplo da perversão das nossas Instituições democráticas. Um mês depois de receber esta informação, a pequenina de 4 anos entrava num bloco operatório onde foi convenientemente tratada. Depois disto, ela perdeu o medo dos dentistas e eu ganhei uma certeza: o governo só se ouve a si mesmo e ao ruído que ele próprio produz e, portanto, não vale a pena recorrer como cidadão junto dos órgãos de topo da Administração Pública. Serve apenas para mostrar a minha indignação face à minha leitura da realidade do país.
Dois exemplos bem ilustrativos de que as contas certas de que António Costa tanto gosta de falar são bem mais importantes do que garantir à nossa juventude de agora condições de vida e de saúde para o futuro. A austeridade, primeiro, o futuro, depois, é o que emana das políticas austeritárias que a União Europeia impõe e que os governos dos Estados membros religiosamente aplicam.
A austeridade e as políticas estruturais neoliberais que forçosamente a definem, são os verdadeiros dogmas que estão na base do debate sobre o Orçamento, são a base do que esteve em discussão na nossa Assembleia da República, são a raiz da nossa atual crise política que a maioria dos portugueses, entre os quais eu, não consegue entender.
Com a austeridade e as políticas estruturais neoliberais que lhe estão associadas, a opção do governo dito socialista, com a sua lógica das contas certas, é paradoxalmente explicada em termos de não se querer sobrecarregar as gerações futuras com a dívida pública, nem que para isso seja necessário recusar dar-lhes condições para que, como homens e mulheres de amanhã, sejam capazes de construir um futuro condigno. Tudo isso em nome dessas mesmas gerações futuras! Grotesco!
A ser assim, é então certo que não teremos nenhuma política especial destinada a combater os efeitos terríveis da pandemia sobre as nossas crianças de tenra idade, uma opção que no futuro nos pode sair muito, muito cara. Pode sair-nos tão cara, tão cara que venha a colocar como elo mais fraco do nosso país o problema da saúde mental dos nossos filhos e netos e, aqui, ganha um enorme relevo o texto construído em torno do provérbio sobre o cavalo e a ferradura, que remonta aos anos de 1390! Veremos então.
Dir-me-ão que sou um descrente na capacidade de modificação das estruturas de ensino pela parte do PS. Sou-o efetivamente, sou um descrente. Nesta descrença tenho muitos companheiros e aqui lembro um texto de António Gomes Marques sobre o tema em que nos diz [2]:
“Lembro, já que do Partido Socialista estamos a falar, uma proposta no capítulo 7 da Moção «Pensar Portugal», que trata do tema “Educação para o desenvolvimento e para a cidadania”, apresentada no XIII Congresso do PS, em Novembro de 2002, por Henrique Neto, Pereira da Silva e Carlos André, proposta essa que, se tivesse sido ouvida, teria também contribuído para resolver muitos problemas sociais e não apenas do sistema educativo. Mas o PS português não tem por hábito ouvir!
Mesmo que não houvesse dinheiro para ter em consideração a totalidade da proposta —há ainda tantas rotundas para construir de Norte a Sul do país, não é?—, poderiam começar pelo ensino pré-escolar, obrigatório para todas as crianças, garantindo, no mínimo, transporte e alimentação gratuitos para as crianças a viverem nas zonas mais degradadas, retirando-as da promiscuidade em que ali vivem, mantendo-as na escola entre as 08h00 e as 20h00, dando-lhes um ensino de qualidade e em instalações dignas, com todas as condições pedagógicas. Depois se iriam estendendo estas condições para os graus de ensino primário e secundário, hoje já gratuitos.
Já pensou, caro leitor, quantos cidadãos teríamos hoje, oriundos daquelas zonas degradadas, inseridos na sociedade e a contribuírem para o seu desenvolvimento, em vez de uns tantos, a maioria?, envolvidos nas teias da criminalidade, maior ou menor? Pense agora nos custos para o país por não se ousar esta pequena reforma.”
Nesta mesma linha e na ideia sintetizada neste último parágrafo de António Gomes Marques, citemos um economista americano especialista na matéria, a quem no final dos anos 90 foi atribuído o Prémio Nobel, James Heckmen, num texto intitulado Make greater investments in young children to see greater returns in education, health and productivity (original aqui).
“Fazer maiores investimentos na pequena infância para se obter maiores efeitos na educação, na saúde e na produtividade.
Tenha-se estes princípios em mente para fazer investimentos públicos eficientes e eficazes que reduzam os défices [de formação e os orçamentais também] e reforcem a economia:
Investir na educação infantil é uma estratégia eficaz em termos de custos – mesmo durante uma crise orçamental.
A redução do défice só virá de um investimento mais sensato dos fundos públicos e privados. Os dados mostram que uma das estratégias mais eficazes para o crescimento económico é investir no crescimento do desenvolvimento de crianças pequenas em risco.
Os custos a curto prazo são mais do que compensados pelos benefícios imediatos e a longo prazo através da redução da necessidade de educação especial e de remediação, melhores resultados na saúde, menor necessidade de serviços sociais, menores custos de justiça criminal e maior autossuficiência e produtividade entre as famílias.
Dar prioridade ao investimento na educação infantil de qualidade para crianças em risco. Todas as famílias estão sob tensão crescente; as famílias desfavorecidas estão sob tensão até ao limite. Têm menos recursos para investir no desenvolvimento precoce eficaz. Sem recursos como o “apoio de formação aos pais” e os programas de educação infantil, muitas crianças em risco falham na evolução do seu desenvolvimento, que é a base do sucesso. Elas sofrerão para o resto das suas vidas – e todos nós pagaremos o preço em custos sociais mais elevados e de uma baixa na prosperidade económica.
Desenvolver cedo as capacidades cognitivas e de carácter. Investir na “criança como um todo”. Programas eficazes de educação infantil com competências cognitivas e de carácter, tais como atenção, controlo de impulsos, persistência e trabalho de equipa. Juntos, a educação cognitiva e a formação do carácter, a carreira e o sucesso na vida – sendo o desenvolvimento do carácter muitas vezes o fator mais importante.
Fornecer recursos de desenvolvimento às crianças. E também às suas famílias. O investimento direto no desenvolvimento precoce da criança é complementado pelo investimento nos pais e nos ambientes familiares. Uma educação de qualidade desde o nascimento até aos cinco anos de idade, juntamente com o acompanhamento dos pais, tais como programas de visitas domiciliárias para pais e mães adolescentes, provou ser eficaz e justifica mais investimento.
Investir, desenvolver e sustentar para produzir ganhos. Investir em recursos de desenvolvimento para crianças em situação de risco. Desenvolver as suas capacidades cognitivas e de carácter desde o nascimento até aos cinco anos de idade, quando é mais importante. Sustentar ganhos no desenvolvimento inicial com uma educação eficaz até à idade adulta. Ganhar cidadãos mais capazes, produtivos e valiosos que geram dividendos para as gerações vindouras.”
Ou ainda, num outro texto:
“Melhorar a economia, fortalecer a classe média e reduzir o déficit são prioridades nacionais. A solução desses desafios começa com o investimento no maior recurso da América: o seu povo. Programas de aprendizagem e desenvolvimento de qualidade na primeira infância para crianças desfavorecidas podem promover competências valiosas, fortalecer a nossa força de trabalho, fazer a nossa economia crescer e reduzir os gastos sociais.”
Enfim, esta é a tese de um dos mais importantes especialistas à escala mundial, em termos de economia do desenvolvimento humano, e que se pode sintetizar no que é chamado a equação Heckmen, quanto a “compreender os grandes ganhos que podem ser obtidos investindo no desenvolvimento precoce e igualitário do potencial humano”.
De nada disto ouvimos falar às gentes do arco do poder em Portugal. Os exemplos das minhas duas netas são disso um bom exemplo de que o problema da saúde das nossas crianças não é relevante, e muito menos agora em pandemia, mesmo que me digam que duas árvores não fazem uma floresta. É verdade, mas não é menos verdade que muitos conjuntos de duas árvores a farão. De novo relembro Gomes Marques, a comentar as elegantes posições teóricas assumidas pelo PS, quando escreve:
“não posso deixar de sorrir, tal o cinismo com que os políticos deste país nos vão enganando.”
E entre várias posições do PS cita a seguinte posição das gentes do Largo do Rato:
“No combate às desigualdades ilegítimas ou indesejáveis e na promoção activa da igualdade de direitos e de oportunidades, o PS considera essencial a prossecução do princípio da equidade. Entende-se este como a exigência da intervenção pública a favor dos membros menos favorecidos da sociedade, no sentido de corrigir as desigualdades de resultados, criar regularmente novas oportunidades e assegurar níveis aceitáveis de coesão social.”
Sobre estas posições do PS, Gomes Marques conclui:
“São, de facto, palavras bonitas, mas que nunca o PS pôs em prática.“
E sobre o panorama geral em Portugal conclui Gomes Marques:
“Não são diferentes na contradição entre as palavras e a acção os outros partidos. Neles impera o poder pelo poder, destacando-se os chamados partidos do arco da governação, com as suas juventudes a serem uma escola de imitação dos séniores, sobretudo dos seus vícios, «formando» membros futuros da governação sem experiência e sem saber, subservientes às direcções partidárias, condição indispensável para subir na hierarquia partidária.
Os políticos portugueses, nos seus partidos ou no governo, pensam nas eleições que se seguem; o futuro do país, a criação de condições para aproveitamento das capacidades dos jovens que hoje, apesar de tudo, têm melhor preparação, não constitui qualquer prioridade para eles.” Fim de citação
Muita gente, mesmo não o escrevendo, mesmo não o dizendo alinha pelas teses de Gomes Marques entre as quais eu próprio. A situação, no que diz respeito às crianças do nosso país, poderá ainda complicar-se mais com a eventual saída da crise política em final de Janeiro e qualquer que seja a saída que as eleições democráticas venham a estabelecer. Pessimismo de esquerda ressabiada? Não, não o creio e senão vejamos muito sucintamente os cenários que penso serem os possíveis.
Enquadramento geral:
- os novos eleitores, os recém-rechegados ao mercado dos votos, repartir-se-ão mais ou menos do seguinte modo: um quarto para o Chega, um quarto para a Iniciativa Liberal e o resto pelos restantes partidos,
- Com a disputa eleitoral interna, o CDS perde credibilidade e nas eleições cairá para menos de 3 por cento, tornando-se pura e simplesmente um partido politicamente irrelevante.
- A disputa eleitoral no PSD assumirá contornos diferentes. É evidente que Rui Rio quer poupar o seu partido ao espetáculo degradante que se dará publicamente com essa disputa. Uma atitude inteligente. Mas aqui a questão é; ganha Rio, ganha Rangel? Esta é uma questão relevante que marca toda a campanha política e de quase todos os partidos com assento na Assembleia da República.
Dois tipos de campanha serão então admissíveis, consoante ganha Rio ou Rangel. Vejamos então estes cenários um por um.
Cenário 1. Ganha Rangel
Neste caso a direita sobe o tom, parte das pessoas que fogem do CDS virão votar útil, e definitivamente no PSD, com alguns trânsfugas importantes a procurarem abrigo no PS. O PS sente a pressão e coloca quase todas as suas baterias contra Rangel, minimizando os seus ataques à esquerda, fazendo uma campanha que se dirá sobretudo dirigida para atrair o centro-direita, sabendo da fidelidade dos seus eleitores do centro-esquerda que nas urnas lhe ficarão reconhecidos por esta sua estratégia. Mas haverá um outro efeito, muita gente que votava útil na esquerda de corpo inteiro, no PCP, no Bloco de Esquerda, nos Verdes, sente o medo da direita e vai votar útil em Costa, deslocando assim o seu voto para o PS. A Esquerda de corpo inteiro irá perder votos para o PS mesmo que o PS a não ataque frontalmente. Quanto ao PAN, se por um lado recebe uma boa parte dos recém-chegados ao “mercado” eleitoral, por outro a polarização levará a que uma parte dos seus atuais eleitores se desloque para o PSD com medo da maioria absoluta do PS e haverá uma parte que desloca o seu voto, como voto útil, para o PS com o medo de o PSD ganhe. Esta dupla movimentação resulta do facto de ser um partido de coisa nenhuma. Igual movimentação do PAN poderá existir no cenário seguinte e pela mesma razão.
O mesmo se passará com alguma direita culta do PSD que não irá embalar na canção escrita por Rangel-Maduro e irá votar útil no PS. O PS pode assim atingir a maioria absoluta, difícil mas não impossível. Mas minimizando os seus ataques à esquerda, porque o adversário principal é a direita, protege assim as costas em caso de necessidade e, portanto, se ganhar e sem a maioria absoluta, o mais provável, significa que tudo irá ficar na mesma como estava antes das eleições. Dito de outra maneira, a posição do PS em querer antes a queda do governo do que fazer cedências à esquerda de corpo inteiro, terá sido uma opção falhada, falhada para o PS, falhada para os partidos à sua esquerda que não quiseram aceitar o comportamento golpista do PS em fingir estar a negociar o que não queria negociar, falhada para o povo português que vê assim morrer a esperança de uma nova gerigonça.
No ponto de vista que aqui nos importa, continuará a verificar-se o que nos diz Gomes Marques no texto acima referido, o PS poderá depois mudar o discurso mas para ficar tudo na mesma, confirmando o que nos diz Lampedusa: é preciso que alguma coisa mude para que tudo possa ficar na mesma. Portanto, não há que esperar, neste cenário, uma política educacional, sanitária, de formação ao longo da vida diferente da que tem sido seguida até aqui e que, como mostra a evidência, tem sido um fracasso. Veja-se, por exemplo, o descalabro das nossas Universidades que mais parecem fábricas de ignorantes do que outra coisa e, nisto, muita da responsabilidade é da própria esquerda que é cúmplice do processo de menorização intelectual de muita da nossa população jovem. Se a direita, por princípio, foge do que pode ser tomado como educação/formação condigna, a esquerda, por cumplicidade, tem feito o mesmo ao longo destas últimas décadas.
Cenário 2. Rui Rio ganha
Aqui a campanha muda de figura face ao cenário anterior. O PS perde a capacidade de “caçar” votos ao centro direita e não pode endurecer a campanha contra a direita porque do lado da direita Costa tem pela frente o mais conciliador opositor de sempre, Rui Rio. A única solução possível para que o PS possa melhorar a sua posição em termos eleitorais é virar-se contra a esquerda de corpo inteiro, o PC, o Bloco de Esquerda, os Verdes. Acusa esta esquerda de pôr em perigo o país face à ameaça da direita (!) conseguir alcançar o poder, mas sem criticar grande coisa face ao PSD, acusa esta esquerda de votar contra o Orçamento mais à esquerda de sempre e de derrubar o governo, acusando este conjunto de partidos de terem uma agenda própria, descontextualizada da realidade portuguesa e à margem da população necessitada que o Orçamento viria favorecer. Na base destas suas razões, António Costa irá apelar fortemente ao voto útil no PS, e terá sucesso nisso. Trata-se de uma argumentação que no imaginário do povo português pode pegar e degradar assim a posição eleitoral dos partidos à esquerda do PS. O PS desloca-se para o centro e a esquerda poderá ficar diminuída e por muito tempo.
Esta situação faz-me lembrar um provérbio americano que transposto e adaptado para a situação presente pode ser assim enunciado: “quando um adversário te dá a ilusão de que se está a tentar suicidar nunca te metas entre ele e a pistola”. Com efeito podemos imaginar uma situação limite que é a de ser o PS a provocar a queda, uma vez que, por um lado, terá tido a União Europeia a exigir que não ceda às pressões da Esquerda de corpo inteiro para reverter as políticas da Troika até porque a força dos tratados impor-se-á em breve, logo que passe a pandemia, e, por outro, tem a pressão dessa mesma esquerda para a reversão das políticas da Troika que Centeno e Costa muito bem conservaram. A Esquerda de corpo inteiro acha que este é o momento de reverter a política austeritária da Troika. Ou agora que vêm os dinheiros do Plano de Recuperação e Resiliência ou nunca. Mas o nunca seria um suicídio político para o próprio PS, pensa esta esquerda que por isso força o PS e o Orçamento apresentado. Nestas condições e como é já habitual o PS cede à União Europeia e critica a esquerda, mas com esta cedência e para se aguentar no poder, teria que se agarrar ao PSD e partilhar o poder com este partido, constituindo o Bloco Central.
António Costa faria então o que António José Seguro se recusou a fazer e por isso pagou o preço da sua rebeldia face ao diktat de Bruxelas, Berlim, Frankfurt. E foi levado à queda de Secretário-Geral do PS e exatamente substituído por António Costa. Não o esqueçamos.
A hipótese extrema que agora apresentamos, uma espécie de jogo da galinha do PS face à esquerda, um jogo cooperativo, tipo dilema do prisioneiro na sua opção cooperativa, face ao PSD, pode não ser uma hipótese estranha. Lembremo-nos do que aconteceu neste mês de Agosto: um namoro entre António Costa e Balsemão. O que vimos não entendemos, vimos António Costa a homenagear com honras de Estado o VII Governo Constitucional, liderado por Francisco Pinto Balsemão. E ambos foram notícia de primeira página dos jornais e de relevo nos telejornais. Porquê? Não seria isto um sinal de uma entente a prazo, se necessário? É absurdo pensar nisto? Não o creio.
No quadro desta hipótese limite, O PS precisa de fazer cair o governo e como? Face às exigências da esquerda de corpo inteiro, nomeia falsos negociadores que não negoceiam nada o que levou à rotura que se verificou. E isto porque pressionado entre as cedências exigidas pela esquerda, que o PS se recusa a aceitar, e as exigências determinadas pela pressão austeritária da União Europeia, que o PS sempre aceitou, António Costa, como seria de esperar, opta pelas teses do diktat Bruxelas-Berlim Frankfurt. Por esta via, acharia bem mais útil a queda do Governo e assim procurar alcançar a maioria absoluta e ficar livre destes “radicais” de esquerda que o sustentaram durante 6 anos. Endurece a sua posição de negociação e com a posição assumida pela Esquerda de corpo inteiro, o Orçamento não é aprovado, a arma dispara, na lógica do provérbio americano. A arma dispara, isto é, o orçamento não é aprovado devido aos votos da esquerda, o PS diz que o acidente político foi em sua legítima defesa, finge-se depois agredido pela esquerda, e esta. por sua vez, sai gravemente ferida e muito da contenda. Fica em convalescença por vários anos, 4 anos talvez…
Neste cenário, o PSD, nestas condições, sustenta, por seu lado, o seu eleitorado e poderá ainda captar votos dos trânsfugas do CDS mas, mais ainda, o PSD poderá absorver votos da Iniciativa Liberal que receosos de que o PS obtenha a maioria absoluta tornarão o seu voto útil votando em Rui Rio. Um comportamento semelhante ao de muita gente à esquerda do PS a votar útil neste partido. Chegados ao fim, neste cenário, as legislativas dão origem ao BLOCO CENTRAL. Nesta situação, os dirigentes do PSD/PS considerarão que a esquerda fica reduzida a um papel menor no plano político português. Se a nossa esperança de uma política educacional, sanitária e de formação profissional séria relativamente à nossa juventude era vizinha de zero no primeiro cenário, agora, neste segundo cenário, com a criação do Bloco Central e o pressuposto papel menor da esquerda, tudo aponta para uma política de bloco central e, aí, as nossas expectativas de uma política educacional, sanitária e de formação profissional séria deixam de ser perto de zero, serão negativas e muito. Neste cenário, pensamos que o que há a esperar é a continuação ou mesmo agravamento da degradação das atuais estruturas de ensino.
Por isso, aos jovens do meu país, que nesta crise nunca souberam verdadeiramente o que é um ter um verdadeiro abrigo face aos seus dramas, aos pais e restantes familiares que, com muito carinho, tentaram à sua escala contraporem-se aos efeitos nocivos que a pandemia estava a exercer sobre o desenvolvimento mental das nossas crianças de hoje, sobre os nossos homens e mulheres de amanhã, dedico a publicação destes quatro textos.
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Notas
[1] Há quem utilize o termo uberizando, termo de origem recente proveniente da empresa Uber e que se refere às plataformas da mal chamada economia colaborativa nas quais, graças à internet e às novas tecnologias, determinadas pessoas põem à disposição de outros particulares, supostamente sem necessidade intermediários, diversos bens e serviços. Mas como diz Mar Abad em Yorokobu (ver aqui), as multinacionais são tão poderosas que conseguem converter-se em verbos. Ao fazer de uma marca comercial um verbo, consagra-se, eterniza-se essa marca. Mas uberizar acabou também por se utilizar como sinónimo de precarizar, sinónimo de empresa que não assume que contrata trabalhadores e não paga a respetiva segurança social. Há quem defenda, como Albert Cañigueral (El País, ver aqui), que não se deve utilizar o termo uberizar uma vez que dificulta observar a diversidade de realidades que se dão em volta dos impactos das plataformas digitais no mercado de trabalho, preferindo este autor o termo pixelização ou fissuração do mercado de trabalho.
[2] Veja-se: António Gomes Marques, Afinal, que reformas?, publicado em A Viagem dos Argonautas em 24 de abril de 2018 e disponível aqui.