A GALIZA COMO TAREFA – vol de nuit – Ernesto V. Souza

Parapeito-me em livros fora da moda, e refugio-me nestes escritos, procurando uma evasão ou quando menos uma sensação de distância com o presente. Até poderia dizer de protesto intelectual, por vezes civil, ao contra do andar do mundo. Sinto-me muito de fora da realidade circundante há anos, e não sei como dizer, enfim, decapitado? Out of place? Como se parte de mim continuasse numa vida de diário e a minha cabeça andasse sempre noutras.

Talvez por isso volvo uma e outra vez aos anos 20-30. Percebo-os como um momento frustrado de vida e entusiasmo, entre períodos de enorme destruição e deceção. Por uma banda esperanças de que a modernidade exuberante (as técnicas, a tecnologia, a higiene, a medicina, a alfabetização, as mudanças sociais, as artes aplicadas, a arquitetura, a música, a pintura, a política, as comunicações, a literatura, o álcool e as drogas, o pensamento, a teosofia, a filosofia) e a civilização permitissem empreender à humanidade um novo caminho. Por outra a advertência e testemunho de personagens traumatizadas, de cínicos sobreviventes, de hesitantes, de inadaptados com um pé no século anterior e outro num presente de rápidas evoluções, saídos dos cenários da Grande Guerra.

T. E. Lawrence, Siegfried Saasson e os poetas ingleses das trincheiras seus contemporâneos, Barbusse, Rolland, Isadora Duncan, Vicky Baum, as sufragistas, as atrizes do Hollywood dourado; os nossos Manuel Antonio, Luis Seoane, Cunqueiro, Casal, Maria Miramontes e as mulheres das IF, tão do seu tempo. Fascinam-me mais quando os convoco justo nesse momento. Num cenário de desenhos e produção, de arquitetura moderna, com os bolsos repletos de livros, de capas e panfletos reivindicativos com tipografias de vanguardas e imprensa política, rodeados pela técnica do Ocidente e o fulgor de fundo da luz do Oriente.

Antoine de Saint-Exupéry, é outro velho amigo que perfeitamente calha nesse ambiente que trato de evocar-lhes. É um prosista meticuloso e sóbrio, melancólico, que bem reflete na sua obra (num ambiente de salto tecnológico e modernidade) a humanidade arredor. O problema das relações humanas, a incompreensão e a soidade.

Comprara há uns meses, com outros livros da Dédalo, a primeira edição castelhana de “Vol de nuit”, (“Vuelo Nocturno” .- Madrid : Diana, Dedalo, 1932, nº 7 da Col. Selección Literaria). A capa, Decó, com esse azul característico, não é, infelizmente, das melhores. Talvez hoje resulta, muito direta, plana. Não sei se na época quiseram dar um matiz “engenheiral”, mas acho que o efeito é não conseguido, muito longe doutras desta mesma editora.

Foi este segundo romance, logo de Courrier Sud, e continuando a temática, que catapultaria à fama internacional o autor. São entrados os anos 20, após a Grande Guerra e rapidamente passada a surpresa da aventura das primeiras viagens aéreas transatlânticas. A aviação comercial aparece, como negócio, com um boom de materiais experimentais, aparelhos de medição, motores, técnicas, logística e criando uma sensação e ambiente de eficiência, velocidade, luxo e conforte.

Uma noite, do solpor à alvorada; um turno ou um jeito de “De 4 a 4” em prosa narrativa, que conformam um poliedro de personagens e ações paralelas em terra que iniciam com o decolar do Correio da Patagónia cara Buenos Aires e terminam com a sua catástrofe.

A estrutura episódica do romance pivota sobre o trabalho e pensamentos de Rivière (o diretor todopoderoso de uma companhia aérea pioneira em voos noturnos) no escritório central de Buenos Aires, na Argentina, e nas horas iniciais e finais do piloto Jules Fabien, perseguido e submerso num forte trovão, na corrida da Patagónia.

Rivière, como destaca Gide no Prólogo, é um chefe duro e rigoroso, mas também paternal, «indifférent de paraître juste ou injuste», que mede os tempos; sanciona, exige, quantifica os sacrifícios e perdas humanas. Apenas focado na causa em que acredita: que o correio chegue pontualmente todas as noites para demonstrar a importância da aviação comercial. No sucesso em tempos do correio noturno competindo com a estrada e o ferro-carril joga-se o futuro.

A soidade, os pensamentos, a viagem noturna dos pilotos; a técnica, a cuidada engenharia de fuselagens e motores, a logística de peças, entregas, armazéns, o detalhe e complexa administração dos responsáveis em terra nos segundos e mais profissionais tempos pioneiros da aviação moderna.

A masculinidade heroica, mas não pouco traumatizada dos pilotos, o seu alheamento fora do trabalho; a eficácia das oficinas e comunicações modernas, com uma exibição de materiais e indicadores, técnica de componentes, motores, precisão nos trabalhos, disciplina férrea, renuncia ao amor, à família; e sacrifício individual tudo desfila com uma ideia de futuro presente e estética, que, hoje, nos lembra mais à sci-fi ou aos filmes de Flash Gordon, quando em realidade é do que estes bebem.

As personagens e as máquinas, os procedimentos, uso de indicadores e materiais, as sensações embriagadoras dos pilotos, os descuidos e erros imediatamente punidos, os dramas pessoais e o stress constante do pessoal de terra estão inspirados nas experiências de Saint-Exupéry como piloto de correio aéreo e como diretor da companhia aérea Aeropostal Argentina de Buenos Aires.

A tempestade cercando os aviadores por toda parte, o fragmentário, e o silêncio medonho das comunicações, o dia que não dá chegado. A angustia da mulher e o pessoal em terra. A impotência do diretor. O avião no final quase sem combustível e descendendo sem esperança cara o Atlântico.

Isto tudo e mais, numa prosa sóbria compõem os 23 capítulos curtos de Vol de nuit. Que com prólogo de André Gide, foi publicado pelas Éditions Gallimard em 1931 ganhando o Prêmio Femina daquele ano.

O romance foi um sucesso internacional. Rapidamente traduzido, tornou num best-seller na França, Reino unido e nos Estados Unidos. E em 1933, a Metro Goldwyn Mayer adaptou o romance no filme “Nigth fligth” o que reportou o autor enorme popularidade.

O filme, dirigido por Clarence Browne e produzido por David O. Selznick, foi uma aposta da MGM, com complicados decorados, cenas de exterior e um elenco fabuloso de atores do Hollywood pre-code (John Barrymore; Helen Hayes, Lionel Barrymore, Clark Gable, Robert Montgomery, Myrna Loy…)

O roteiro modifica o argumento, para recrear 24 horas trepidantes das operações de uma aerolínea postal ficcional na América do Sul. Para incrementar a ação e procurar uma lógica argumental os produtores introduziram um cenário que rompe a quotidianidade e dá sentido à urgência e à tragédia.

Uma epidemia de pólio faz estragos no Rio de Janeiro, o remédio mais perto está em Santiago de Chile e os pilotos têm que desafiar as inclemências climáticas e atravessar de noite os  Andes. A vacina é necessária, com urgência, em um hospital infantil.

A pesar da boa receção do filme, da espetacularidade e aventura, de ser um dos primeiros filmes com cenas aéreas; da atuação dos atores, Saint Exupéry não gostou da adaptação e negou-se a ampliar os direitos que concedera apenas por 10 anos a MGM. De jeito que em 1942, o filme foi retirado da circulação. Exupéry desapareceu em 1944, os direitos não puderam ser mais negociados, e o filme não foi disponibilizado até 2011.

Resulta interessante, outra vez, considerar, nos anos 30, o impacto dos filmes na cultura popular mas também na arte, na moda e no desenho. O mundo de entre guerras é fascinante, com essa circulação dos feitos culturais para toda a parte, para as capas dos livros, da arte (roupa, desenho de mobília, complementos) ao cinema e para a vida e vice-versa.

Nas Wikis destaca-se que Jacques Guerlain, amigo de Saint Exupéry, em 1932, usou o título do livro como nome para um dos seus mais famosos perfumes femininos. Fazendo uma procura simples pela rede achamos que a garrafa era uma peça delicada, quase uma joia, mistura de vidro e metal em estilo Art Déco com um motivo de hélice, completada com uma caixa imitando pele de zebra.

É curioso como os livros da Dédalo, nomeadamente os desta coleção, participam desse ambiente, são combinação de best-seller, mundanidade e linguagem cinematográfico. Dá para a pensar também que eram uma coleção que procurava um público feminino. Não apenas pela profusão de autoras (nesse tempo rompedoras) quanto pela preferência da temática, aventura, a sensualidade, flirt, hotéis, as viagens, a aventura o cosmopolitismo, a estética artística nas descrições, o dinamismo, a velocidade. Em resumo, avançando essa imagem da mulher moderna, elegante, à moda, e ativa, mui século XX, dos anos 30, que aparecia nos filmes.

Realmente, a partir da ascensão do nazismo ao poder e já depois da Guerra civil espanhola, é como que tudo escachou. E depois com a Guerra Mundial e a Guerra fria nunca mais houve um momento assim. O mundo que surgiu após a guerra foi muito mais concentrado, estanco, especializado.

Eu diria que no fim dos anos 60 e nos primeiros 2000 houve outros momentos de fulgor humanístico e agitação mundial. O último por causa da expansão da Internet e da febre tecnológica para compartilhar e criar por fora das dinâmicas estabelecidas, talvez daí, desse fracasso constatado, estas saudades.

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